Nereida Carvalho Delgado prepara um solo sobre abuso sexual de crianças em Cabo Verde

Apresenta-se no Facebook com a frase “não sou a dona do mundo mas sou filha do dono!”. Tem 37 anos, três filhos, dois cursos, de Biologia e Teatro, e vai valorizando o currículo com aprendizagens, formações, viagens e experiências. É uma mulher tão planificada que consegue seguir o guião que traçou para a sua vida. É sobretudo, empática, de sorriso largo, olhos castanhos muito curiosos, cabelo curto cor de fogo e gestos assertivos. Nereida Carvalho Delgado conta-nos um pouco do seu percurso no teatro que começa em 2004 com a companhia Fladu Fla, na Praia, sua terra natal. Muda-se para São Vicente, onde vai estudar Biologia Marinha e onde fica por nove anos, dando continuidade a formações de teatro numa associação italiana, na comunidade onde vivia, Ribeira de Craquinha. Encontra-se em Loulé, no contexto do Festival Tanto Mar, a fazer uma residência artística de duas semanas sobre um tema tão difícil quanto a urgência de ser falado: a violência e abuso de crianças e adolescentes que, em Cabo Verde, dá-se muitas vezes no seio famíliar.

Nereida Carvalho, fotografia de Marta Lança Nereida Carvalho, fotografia de Marta Lança

No grupo Craq’Ótchod trabalhou com vários tipos de teatro comunitário, em que sentido?

Trabalhamos com crianças do centro Nô Djunga, fizemos apresentações, trabalhamos com pessoas  de comunidades de São Vicente, ministrando várias oficinas de teatro, trabalhamos com o centro psiquiátrico da Ribeira Bote. Com a companhia de Teatro Fládu Fla, que represento neste Festival Internacional das Artes Performativas de Loulé, o Tanto Mar, desempenho, ao longos destes anos, funções de coordenadora, formadora, produção além de atriz e figurinista em vários momentos, etc

Como articula os seus dois interesses, teatro e biologia?

No último ano de bacharelato criaram a Universidade de Cabo Verde, então tirei a licenciatura em biologia marinha com o percurso da área de pescas de gestão costeira. Dedico-me ao teatro em pós-laboral. Nem sempre era fácil durante a época escolar porque havia períodos que eu tinha testes, era preciso deslocar-me para outras ilhas para fazer trabalho com ONGs, por exemplo a ilha da Boavista na proteção de tartarugas, e era difícil conciliar. Por vezes tinha de abrir mão de uma coisa  mas fui conseguindo encontrar equilíbrio e continuar a fazer ambos, tanto nas áreas da ciências como na das artes. 

Gostava de ter vida académica também no teatro?

Também gosto muito e aguardei por uma oportunidade para fazer um estudo aprofundado dos conhecimentos a nível académico nesta área. Concorri ao projeto Pró-Cultura, ganhei a bolsa em 2019, e iniciei o meu mestrado em Teatro na Universidade de Évora onde fui aceite com o meu currículo e entrevista. Mesmo sem ter licenciatura de base porque em Cabo Verde não há licenciatura  nem curso profissionalizado em Teatro.

E fez mais formações na área de biologia marinha?

O meu curso de biologia marinha tinha bastante parte prática, já me ausentava muito, às vezes por dois meses para trabalhar na Boavista e não dava para fazer a formação porque coincidia que a época do verão, queria usar as férias para estar com a família. Fiz as formações de curta duração que consegui apanhar. Mas agora finalmente faço mais um mestrado, desta vez em Oceanografia e Tecnologia Marinha.

Acha que há de sensibilização em Cabo Verde para as questões do Mar? Ou seja, há consciência do equilíbrio dos recursos ou prima a lógica neoliberal de se fazer concessões sem planeamento?

Já sabemos das nossas riquezas. Quanto às fragilidades, precisamos de políticas mais assertivas e mais direcionadas para questões ambientais e socioeconómicas. É um setor bastante delicado. Exige uma visão mais ampla. Já se fez muito, temos que reconhecer, mas há muito por fazer. Um dos ganhos por exemplo foi a criação do corpo de inspetores de pesca do qual faço parte. Não existia e foi um grande passo. Acredito que um dia poderei dizer que estamos no bom caminho.

Então há interesse em recrutar pessoas com conhecimento académico? 

A maioria de nós tivemos formação específica nessas áreas. Já há mais inspetores formados, estão a aguardar a chamada para a colocação para aumentar os recursos humanos, porque neste momento somos insuficientes para as necessidades do país. Mas acredito que uma política direcionada principalmente para a área da fiscalização e inspeção, melhorará muito. Para isso é preciso investir tanto em recursos humanos como materiais, porque é exigente e, para haver resultados efetivos não basta apenas fazer campanha de sensibilização e criar leis, mas ter pessoas preparadas (em todos os sentidos) e com os meios necessário, para complementar essas lei, promovendo o uso sustentável dos recursos marinhos, assim como a sua qualidade alimentar. 

Nereida Carvalho, fotografia de Marta Lança Nereida Carvalho, fotografia de Marta Lança Mas mesmo que se cumpram os acordos, concorda com a forma como se está a extrair os recursos do mar e as políticas da pesca em Cabo Verde? Há vozes críticas a alertar que se pode secar os recursos de peixes…

Vozes críticas existem e ainda bem. Há informação. O ponto principal compete aos decisores, que estão ali para representar o povo. A vulnerabilidade é que, por um lado, precisamos de apoio e isso limita muito a nossa capacidade, inclusive de negociação. Muitas pessoas e entidades podem não entender. Somos um país recém libertado, a independência foi só em 1975, temos muitas fragilidades. Sem chuva não há país fértil para cultivar e garantir alimentação. A nossa riqueza é o mar mas, ao mesmo tempo, somos um pequeno país para negociar com potências como a União Europeia ou o Japão. Obviamente não sairemos vitoriosos. Precisamos de apoio externo, dos acordos e protocolos para sobreviver. Para se tornar cada vez mais autosustentável, é preciso um bom planeamento, uma boa execução, o que implica muita coisa. Somos relativamente jovens, temos muito a aprender, mas acredito que podemos chegar a bom porto se houver abertura. Não é fácil, às vezes sentimos que recuamos. Falo como cidadã caboverdiana.

Pode fazer muito pela passagem de conhecimento. 

Como tem esse pendor para o teatro comunitário?

Foi através do trabalho da Associação Italiana String Colorati, a partir do qual criamos o meu antigo grupo de São Vicente. Fui percebendo que era aquilo que eu queria. O Craq´Ótchod procurou seguir essa pegada de trabalhar com as comunidades. Não tinha formação académica na área, desconhecia muita coisa, mas queria trabalhar com as comunidades, pelo que vi e senti na pele. As comunidades precisam de ser ouvidas, precisam de falar e também gostam de receber o que vem de fora. O teatro comunitário é uma oportunidade para dar voz a essas pessoas e, ao mesmo tempo, abrir portas para entrarmos, pois também têm preconceitos com as pessoas de fora. Não fazem por maldade, é uma defesa. Sofrem tanto preconceito e discriminação, devido à imagem de violência e marginalidade. Acabam por criar essa barreira. Furá-la é um desafio para quem quer trabalhar com teatro comunitário, mas também um aprendizado. É preciso desconstruir tudo aquilo.

Quais são as maiores carências e reivindicações das comunidades? 

Precisam de ser ouvidas não apenas em épocas de campanha. Também precisam de ter mais prática, que se faça algo de concreto para lutar com os problemas que têm, como por exemplo o desemprego, as famílias monoparentais, a violência igualdade e equidade de oportunidades.

Trabalha com pessoas de que idades?

Dos doze anos para cima, pessoas de várias faixas etárias, visões e fases da sua comunidade. Cada um dá o seu contributo com aquilo que viveu e tem. Sentem-se abandonadas e discriminadas. Querem mostrar que na comunidade existem pessoas trabalhadoras e honestas, existe arte, desporto, existe muita coisa a ser aproveitada e que pode incrementar e valorizar a comunidade. Com o projeto que levo também ajuda a libertarem-se, criam a sua própria história verídica e têm oportunidade de serem escutados, o que não acontece no dia a dia. Aprendo muito neste processo, por exemplo na comunidade Safende e Eugénio Lima onde constatei quea  imagem negativa não corresponde, percebi que as pessoas têm ânsia de revertê-la que vale a pena investir nessas comunidades, nos jovens, nas pessoas mais maduras, vale a pena apostar no emprego e nas outras áreas necessárias. Também trabalhei com algumas comunidades de Robeira Brava São Nicolau, também pude dar uma oficina intensiva na ilha do Maio, pelo que me sinto abençoada por partilhar e receber tanto deles. Este ano vou trabalhar com as comunidade de Ponta D’água e Achada Grande frente, acredito igualmente rico e intenso.

Nereida Carvalho, fotografia de Marta Lança Nereida Carvalho, fotografia de Marta Lança

 

É importante as pessoas dessas “periferias” ganharem outras referências.  

Sim, até porque a cultura em Cabo Verde está muito centralizada no centro da cidade, e só um grupo restrito tem acesso.

Também associamos a expressão artística das periferias apenas à arte urbana e ao rap.

Descobri pessoas com talento para a atuação que não fizeram nenhuma formação, nem sequer viram uma peça de teatro para terem alguma influência. Se eu pudesse fazer mais e dar-lhes oportunidade de serem vistas, de mostrarem o talento que têm. Gostaria de dar mais pois sinto que recebo muito, a entrega a paixão e verdade que dão, é uma riqueza impressionante. 

Pode arranjar uma maneira muito barata de ir transmitindo e registando…

Tenho todas as fotos, vídeos, faço a documentação completa das oficinas, depois no fim de cada oficina faço rodas de partilha. faço questão de documentar. Tenho tudo arquivado. Eu tenho vídeos de filmagens dos depoimentos das oficinas das sessões das oficinas. tivemos oportunidade da primeira oficina que eu fiz da primeira vez que eu implementei o projeto que foi que naquele foi mesmo o projeto final de mestrado, “O teatro comunitário-ensino do Teatro e cidadania”, com a comunidade de Safente, tivemos oportunidade com o apoio da Direção Nacional das Artes apresentar o Palácio de Cultura Ildo Lobo, com outras pessoas também que tive a oportunidade de ver e as pessoas saíram dali a chorarem emocionadas muitas afirmaram que há muito que não tinha visto tanta verdade, tanta sensibilidade em um trabalho de teatro. Também procuro convidar outros artistas da dança, da música para dar uma sessão dentro das oficinas, onde eu participo também com os outros participantes. Isso só enriquece. A arte é ampla, engloba tudo  música, dança, teatro, etc.

Aposta no trabalho colaborativo?

Sim, quero ter multiplicadores e não centralizar, quero deixar a minha sementinha para que se multiplique, para que todo o mundo possa ter acesso à arte no seu todo, na sua essência.

Como vai ser esta residência aqui com a Folha de Medronho em Loulé? Qual é o conceito? 

É sobre a violência sexual com crianças e adolescente, existe um pouco por todo o mundo e Cabo Verde não é excepção. Nos últimos anos tem sido mesmo chocante. ê um trabalho sensível, que mexe com muita coisa, que estou a desenvolver a partir de um poema que a minha irmã Larissa Andrade, poetisa residente em Holanda, escreveu a meu pedido para este projeto. É em crioulo, mas traduzi para português para que o público tenha mais noção do que se trata, é muito forte.

Vai trabalhar sobre violência sexual?

O trabalho que vou apresentar na minha residência é à base disso mesmo. Já fiz um pequeno ensaio aberto. 

Ainda para mais em Portugal saiu há pouco o relatório dos abusos sexuais da Igreja Católica…

Em Cabo Verde é um flagelo mesmo dentro do seio familiar. Pai, tios, irmãos, pessoas próximas. Conheço pessoas que vivenciarem. A ACRIDES criou um núcleo nacional de luta contra a violência e abuso sexual de crianças  jovens e adolescentes, a sua presidente me desafiou a apresentar durante esse fórum de apresentação desse núcleo nacional onde estavam várias entidades importantes uma pequena performance sobre isso. É um desafio por ser um tema bastante delicado mas ao mesmo tempo encarei como oportunidade, algo que precisava de fazer como artista para chamar à atenção para isso porque os casos são mesmo chocantes. 

Existem estudos sociológicos?

Na comunicação social comenta-se que esse flagelo aumentou muito, porque as denúncias cresceram exponencialmente. Ou seja, sempre existiu mas era camuflado, agora há mais coragem de denunciar e os casos estão a vir à tona. Com o aumento de denúncia automaticamente perspectiva-se o aumento de casos. Mas é preciso fazer um estudo social e aprofundado em relação a isso para ver exatamente a incidência desses casos. Os que são denunciados ou não, sendo isto o mais difícil porque muitas vezes a própria família acaba por camuflar. 

E porque vem a Loulé fazer esse trabalho?

A Folha do Medronho convidou a minha companhia para representar o nosso Festival de Internacional do Teatro do Atlântico, a Tearti, convidaram para fazer uma residência artística. Como eu já tinha esse projeto em manga…. foi o momento ideal.

E é só o poema ou usa testemunhos?

O poema é mesmo brutal, não tem tabu, a forma como está escrito é como se tivesse sido escrito por uma pessoa que viveu isso. Como se fosse um relato poético na primeira pessoa, com descrições. Na primeira vez que li tive de engolir um seco porque é pura realidade. Então viver isso na pele para mim como atriz não está é fácil, agora colocar-me na pele de quem já viveu na realidade…

Ouviu testemunhos de outras pessoas..

Tive conversas com outras pessoas mas não registei, foram conversas informais até porque é muito difícil para elas abrirem-se e mexerem nas feridas. São pessoas próximas de mim que confessaram que tinham passado por isso, eu nunca imaginei. Inclusive estão a lidar com traumas por causa disso. Quando lhes disse que ia fazer esse projeto sentiram-se à vontade para falar comigo o que deu mais importância ao que eu já dava. 

Foi vítima de alguma dessas violências?

Não fui vítima de violência mas sofri assedio sexual enquanto criança. Mesmo sem ter na altura a noção do que era. Sentia que tinha que denunciar aos meus pais, não sabia, mas agora, quando vejo aquele senhor, fico pensando que ele ainda faz isso com outras crianças, inclusive já disse à polícia que ele é um assediador, um pedófilo. Lembro-me quando tinha dez, onze anos e ele me me tentava assediar com doces, para ir na casa dele eu sabia que não era bom. Nunca fui porque sentia uma sensação estranha, muito negativa em relação a ele, e também porque os meus pais nos educaram a nunca aceitar presentes, doce etc, de estranho. Então não me aproximava nem nunca falei com ele. Mas sempre que o via sentia nojo dele. Na minha cabeça, mesmo com os meus dez, onze anos, tinha noção que ele era um homem. Agora deve ter por volta de uns sessenta e tal. Não é normal um homem chamar uma criança e usar determinados termos que ele usava comigo. Mas eu também não falava com os meus pais porque tinha medo que não acreditassem, não tinha noção da gravidade daquilo. A intuição falou mais alto, e tenho pessoas próximas bem próximas de mim que infelizmente não tiveram sorte. Já adulta, percebi o risco que estava a correr.

Então o que vai apresentar?

Tenho texto e quero dar mais corpo, mais intensidade e desenvolvê-lo mais. O João Alvim vai trabalhar comigo e, como temos a mesma linha de trabalho, pois eu trabalho muito com teatro corporal, acredito que será muito intenso. Vai ser um solo, ao qual pretendo dar continuidade em Cabo Verde.

Será uma parte de um processo maior. 

Para mim um trabalho de teatro está sempre em construção. Quero desenvolver mais.Vou trabalhar também com com o Fabrício, meu esposo que também é ator e trabalha em Évora no Teatro Garcia Rezende. Ele fez licenciatura em teatro, vai trabalhar a parte da sonoplastia porque queremos ter com instrumentos como ao vivo 

Acredito que é a altura certa para tratar desse assunto com toda a coragem.

 

O BUALA esteve a acompanhar o Tanto Mar, em Loulé, de 23 a 26 de maio.

por Marta Lança
Cara a cara | 27 Maio 2023 | Biologia, Cabo Verde, mar, Nereida Carvalho Delgado, teatro, Teatro Comunitário