"As festas de quintal, o fazer conversa, a beleza no dançar e no andar", entrevista a André Castro Soares

André Castro Soares, fotografia de Ana Brígida André Castro Soares, fotografia de Ana Brígida

Como se foi adaptando à vivência em Luanda? O que mais vai guardar desse experiência enquanto aprendizagem?

Tenho que fazer aqui uma declaração que me parece importante. Não tinha, antes de Angola, qualquer relação com África ou sequer ideia de Angola. Para muitas pessoas da minha geração, Angola significava pobreza e guerra e, ao ir para lá, na minha cabeça passava por conhecer um país estrangeiro e fazer o melhor para conseguir concretizar a encomenda que tinha em mãos: conseguir formar pessoas para o mundo mágico da televisão. Ninguém da minha família tinha vivido em África ou Angola. A minha família tem uma ténue relação com o Uruguai através de um tio-avô afastado. Então, quando cheguei a Luanda, nos primeiros dias senti-me num estaleiro tal era a quantidade de gruas e obras em curso. Senti-me numa cidade em profunda transformação, mas onde havia recantos de uma beleza impar, como a Ilha, a Fortaleza e o bairro do Miramar, onde se vê o mar de uma forma única. O Ponto Final da ilha para onde ia ler, sempre que possível, para conhecer a história do país. No restaurante Bordão, que penso já não existir li Pepetela, Manuel Rui, Ondjaki e Agualusa, alguns escritores, que conheço hoje. Mas na altura ajudaram-me muito a entender o país, sobretudo as pessoas. Como evoca muitas vezes José Agualusa, há um lado “maravilhoso” que podemos encontrar a cada instante na cidade de Luanda e também no país. A “banga” das pessoas no falar, na atitude, no vestir, na ironia, no humor. As pessoas em Luanda têm uma alma generosa, apesar das agitação, do dinheiro e da sobrevivência diária. Vivi na rua rainha Ginga alguns anos e ali aprendi muito sobre o dia-a-dia dos angolanos e das angolanas. As festas de quintal, o fazer conversa, a beleza no dançar e no andar das pessoas, as comidas de fim-de-semana com funge obrigatório e a luz, a luz de Luanda. Aquele céu ao mesmo tempo mágico e trágico só vivi naquele lugar.

Conheço o país muito bem e viajei muito, por isso não tenho dúvidas em afirmar que foi o lugar onde mais aprendi sobre a poesia dos dias e a alegria de viver, sobre o maravilhoso, mas também sobre o absurdo. Aprendi mais em Angola do que em todos os lugares onde estive e não sei porquê, mas tenho a sensação de que Angola irá continuar na minha vida por longos anos.

Porque decidiu investigar a kizomba e o semba?

Nos anos que estive em Angola o kuduro era aquilo que estava a “bater”, como se diz. E eu gosto muito do fenómeno, talvez das coisas mais originais criadas pelos angolanos com um potencial incrível de ligar o mundo ao país. Já conhecia o kuduro dos tempos da faculdade, mais o que mais gostava de dançar era a chamada kizomba, que inicialmente até pensava ser cabo-verdiana. A propósito da pesquisa para o Documentário I Love Kuduro, dos irmãos Patrocínio, encontrei-me com Eduardo Paim, para que me pudesse ajudar a entender as bases do kuduro. No piano conseguiu explicar-me, de forma casual, como chegou à kizomba desacelerando o ritmo do semba e como acelerando esse ritmo musical se chega ao kuduro. Eduardo Paim está na génese da música moderna angolana e o facto de ter exportado essas experiências levou-nos a conhecer melhor as vivências sociais dos angolanos, como a festa de quintal e a sentada familiar, espaços de vivência nos quais tive oportunidade de participar. Quando comecei a fazer o Mestrado em Antropologia no ISCTE-IUL hesitei se deveria abordar o kuduro ou a kizomba, mas a kizomba estava a tomar proporções de dança mais global e notei que se dançava cada vez mais em Lisboa e noutras cidades europeias que visitava em trabalho. Foi aí que decidi investigar esta dança e de que forma ela configurava um fluxo novo capaz de fazer falar de Angola, Cabo Verde e também de Lisboa, que é considerada a meca da kizomba, pois foi em Lisboa que se codificaram os passos de dança capazes de criar um produto comercial para consumo de massas. Nesse capítulo, tanto angolanos como caboverdianos contribuíram para essa formatação da dança. O festival Africadançar, organizado pelo produtor Paulo Magalhães, abriu esse espaço de criação de regras de aprendizagem de uma dança capaz de ser apropriada por todos os dançantes. Era isso que eu queria investigar: como se expandiu a partir de Lisboa e de que forma os discursos dos professores e promotores do kizomba são uma boa base para analisarmos as tensões e ideias sobre raça, género, comunidade e até de história. O facto de a kizomba se dançar em contacto com outras pessoas torna-a muito mais interessante de ser analisada a partir do corpo que experiencia e os discursos que saem dessa vivência da prática da dança em diferentes lugares do mundo como Luanda, Lisboa, Miami, Milão ou Cairo. Utilizei uma metodologia de pesquisa em antropologia que é a etnografia multi-situada (Marcus) onde o investigador tem de ligar estes cacos partidos dos fluxos culturais. As expressões artísticas urbanas como a kizomba requerem este trabalho de renda que os antropólogos devem fazer.

André Castro Soares, fotografia de Ana Brígida André Castro Soares, fotografia de Ana Brígida

Em termos de postura, qual a diferença de aceder a esta realidade como produtor de televisão ou como antropólogo?

É muito diferente. Um programa de televisão pretende contar histórias que são editas para captar os telespectadores. A televisão é um “tubarão” que tem que comer àquelas horas, com uma planificação e exigências muito grandes. Fazer um programa parte da realidade, mas depois de estar no ar é, em si, outra realidade muitas vezes fabricada, mas sempre à procura de captar a emoção das pessoas. Contar histórias através de imagens é das coisas mais fascinantes, mas não tem o grau de aprofundamento dos assuntos que a o antropólogo deve exigir nos teus trabalhos etnográficos.

E nos Festivais de kizomba? 

Nos festivais de kizomba que visitei para fazer o programa Kizomba Nation tive muitas vezes de pôr o chapéu do antropólogo com total conhecimento das pessoas envolvidas, os professores com quem viajava. Os festivais têm uma dinâmica muito própria e não foi fácil de entrar. Com o tempo os interlocutores que me interessavam para a tese começaram a confiar em mim enquanto jornalista, mas também enquanto investigador e isso criou laços de amizade. O facto de muitos destes professores terem convivido comigo fora dos festivais e do trabalho permitiu entender as bases de um percurso de difusão de uma dança que muitos deles não estavam à espera que viesse a tornar-se global.

Quando estes professores começaram ninguém queria saber de kizomba, muitos deles eram professores e praticantes de danças latinas. Com muito esforço conseguiram colocar a kizomba no lugar que merece nas danças de salão a par da salsa, do chachachá, do merengue ou do tango. Aliás, é muito interessante comparar o tango com a kizomba pois são danças em que no caso do tango foram apagadas às raízes negras e africanas e, no caso da kizomba, são estas raízes base que lhe dão força e projecção internacional. O antropólogo tem de passar muito tempo para compreender a realidade. Um produtor tem que ser capaz de construir realidades que possam ser vistas pelo maior numero de pessoas possível.

Pegando nas perguntas da sua tese: das várias narrativas para a origem da kizomba, qual lhe parece mais credível? E a disputa da origem com Cabo Verde?

Essa foi a primeira questão, mais controversa, em relação à kizomba. É, aliás, uma discussão muito comum no mundo da dança e ainda mais nestas danças que se estão a afirmar no espaço global. Nunca quis investigar isso, porque sabia que nunca chegaria realmente às origens.

Um estilo musical ou uma dança normalmente vão sendo construídos. Há muito tempo que se sabe que a dança a par fechado é prática comum em Angola, Moçambique e Cabo Verde. Interessava-me saber onde é que a dança tinha sido codificada para ser ensinada de forma mercantil e massiva nos festivais. Neste caso, parece evidente que festivais com o Andanças e o Africadançar ajudaram nesse processo. Muita gente do mundo da dança e da música contribuiu e acho que quer angolanos, quer cabo verdianos estiveram envolvidos, bem como portugueses e guineenses. Agora, a kizomba foi catalogada pelo Eduardo Paim enquanto género musical e a codificação que se lhe seguiu para ser dançada tem apropriações de outras danças do mesmo género, como a passada de Cabo Verde ou o zouk antilhano. Nada em dança é puro. Nem mesmo na música. Nos festivais de kizomba sente-se muito a disputa sobre as origens da dança. Daí eu me ter apropriado do conceito “campo de batalha”, de David Guss para analisar as dinâmicas dos festivais. Apesar de Eduardo Paim lhe ter dado nome, e depois o Mestre Petchu de Angola e Zé Barbosa de Cabo Verde terem fixado uma codificação de passos de dança, muitas outras pessoas estiveram envolvidas nestes “acrescentos” que a dança foi tendo até ser apropriada de diferentes modos. A kizomba, que se dançava nos anos oitenta, não é igual à que se dança hoje, mas ainda bem. É sinal de que é uma expressão artística capaz de evoluir.

Há coisas sabidas, que o nome da dança é angolano e quem esteve na sua génese foi Eduardo Paim, é o primeiro assumir que é um género cheio de “incrustrações”. As diferentes influências musicais presentes na música são as que estão presentes na dança.

André Castro Soares, fotografia de Ana Brígida André Castro Soares, fotografia de Ana Brígida

Como se dá a relação da festa de quintal/discoteca com a kizomba, o que veio de outros contextos e foi mudando com a crescente urbanização?

A festa de quintal é talvez o espaço de socialização mais importante para os angolanos e angolanas. Ali se jogam conversas, narrativas, histórias e encenações várias. Este lugar de comida, bebida, festa e alegria é o “laboratório” para múltiplas expressões culturais, que persistem no tempo e unem os laços societais. Foi lugar de família, de resistência cultural contra o colono e foi também onde se esboçaram danças e géneros músicais como o “açúcar”, que depois deu origem ao kuduro, e o semba que, mais lento, deu origem à kizomba. Os angolanos gostam de dançar tudo, não se limitam. Gostam de interpretar o ritmo à sua maneira, que normalmente é altamente espetacular e muito teatral, fundindo passos de diferentes danças e ritmos.

A discoteca é um espaço muito diferente, mas acabou por ser o lugar de prática da dança, quer em Angola, quer em Lisboa.

Em Lisboa dança-se muita kizomba?

É talvez a cidade europeia onde a dança mais se difundiu e implantou. Foi uma das coisas que mais me chamou à atenção. Por vezes mais fácil dançar kizomba e semba em Lisboa do que em Luanda. Em Luanda há poucos espaços para a prática da kizomba fora da festa de quintal. Eu ia muitas vezes ao Maiombe, no bairro do Rangel, para poder dançar ou às segundas, no Chá de Caxinde com a Banda Maravilha. É muito mais fácil vir aprender a dançar kizomba em Lisboa do que em Luanda. Muitos amigos meus angolanos aprenderam a dançar em Lisboa. A discoteca acabou por ser um lugar de mistura desprendido do espaço mais descontraído da festa de quintal. Na discoteca dança-se, na festa de quintal vive-se a angolanidade. A kizomba, como a temos nas discotecas em Lisboa, é muito mais formatada do que aquela que encontramos em Luanda.

Que ritmos tradicionais de outros lugares do mundo se dançam nas festas de quintal em Luanda, nomeadamente a relação com o Zouk? Explique a angolanização do que vem de fora.

Os angolanos, em geral, apropriam-se do que vão recebendo de uma forma muito interesante. Um dos casos é a kizomba que, a partir dos passos do semba, foi sedimentando de forma mais ou menos improvisada as bases para uma dança que acabou por se codificar de forma mais comercial em Lisboa. Os toques de kuduro também têm um pouco disso, pois muitos dos movimentos são misturas de experiências corporais a partir dos movimentos dos animais ou mesmos de filmes e revistas, que os dançarinos observam e vão experimentando nos desafios de dança nos musseques ou na discoteca. Quem vê o zouk e a kizomba a serem dançados pensa que são a mesma coisa, mas não são, pois a forma de interpretar a música é muito diferente, mesmo sendo ou parecendo subtil. A prova disso é a forma como o zouk chega ao Brasil e é transformado em lambada zouk, ou seja, as pessoas dançam zouk, mas com passos mais largos. A música de fundo é, muitas vezes, de kizomba o que no início me chamou à atenção. Ou seja, no Brasil dança-se uma espécie de zouk misturado com lambada ao som de uma batida que é de kizomba.

Em Luanda dança-se a kizomba com o semba e outras danças como a kazekuta (dança de Carnaval) como referência e, mesmo que seja uma música antilhana, ela é dançada a partir de uma referência angolana. É preciso não esquecer que os Kassav tiveram uma forte influência nos anos 80 do século passado em Angola e que a forma como o zouk aparece enquanto género é também a forma como a kizomba parece ter aparecido. Há muitas semelhanças entre os dois géneros de música e de dança para além de que kizomba e zouk significam festa em língua portuguesa.

Como é a kizomba vivida pelas várias gerações de angolanos?

Quando as primeiras batidas de kizomba apareceram foram muito criticadas, pois era um género musical electrónico feito a partir da inovação tecnológica que é o orgão electrónico, comummente chamado de caixa de ritmos, que mistura batida com ritmos a partir do mesmo aparelho. Neste mesmo multi-instrumento, Eduardo Paim fez muitas das suas inovações por tentativa e erro chegando a várias fórmulas musicais capazes de alimentar uma festa de quintal. Daí a kizomba significar festa. A kizomba é um dos géneros presentes na festa, mas há muitos outros.

Distinga algumas dessas influências.

Os “mais-velhos” que tiveram influências dos Kassav e da música antilhana, congolesa e caboverdiana criticaram a kizomba enquanto género musical, preferindo o semba como referência musial mais nacional de Angola. Os mais jovens estão completamente familiarizados e têm uma séria de músicos angolanos que são já catalogados como “kizombeiros” como o C4 Pedro, Pérola, Ary e claro Anselmo Ralph que veio de facto trazer uma renovação muito grande ao género. Mas durante muito tempo em Angola, os músicos categorizavam o género kizomba como R&B por ser mais internacional. Foi quando se começou a valorizar a kizomba enquanto género de dança os músicos foram atrás do que os dançantes precisavam. Lá está, uma das razões que me levou a fazer a tese em dança e não em música, foi o caso dos dançantes começaram a dar visibilidade a um género de música que até há dez anos não era de todo valorizado quer pelas letras, quer pelo ritmo, quer mesmo pelos preconceitos ligados à sensualidade e sexualidade despertadas pela dança. Hoje, a kizomba poderia ser uma excelente forma de os angolanos poderem exercer soft power mundial. Acho que também deveria haver mais escolas em Angola para as pessoas puderem aprender kizomba e outros ritmos angolanos como a kazekuta, por exemplo. Há muito a fazer neste capítulo da promoção da dança no país, pois a dança é poderosa como turismo cultural.

Destaque alguns nomes de protagonistas e difusores da kizomba.

Acho que o criador musical do género Eduardo Paim é a maior figura da kizomba. Na dança não podemos esquecer três nomes muito importantes e que, no contexto do Áfricadançar, que é o primeiro festival de kizomba com uma vertente internacional, se destacaram na codificação da kizomba como produto capaz de ser consumido que são o Mestre Petchú, Zé Barbosa e Tomás Keita. Há claro outros nomes como Kwenda Lima e Hélio Santos mas penso que com abordagens e filosofias diferentes em relação à dança. Esta, diríamos é a primeira geração que forja a entrada desta dança nas discotecas “não africanas” de Lisboa e do país. É ali, sobretudo nas discotecas latinas, que tentam dar um cheirinho de kizomba e depois veio o Áfricadançar. Depois do Áfricadançar que, para além da componente entretenimento tem uma componente competitiva, é que a kizomba começa a fluir um pouco por toda a Europa. Uma das histórias curiosas da difusão da kizomba fora de Portugal é que ela acontece através de um português chamado Benjamim, que já não dava aulas de kizomba. Ele é que avisou o Petchú e o Zé Barbosa que se deveria apostar na internacionalização do ensino da dança. Tomás Keita também vai pela primeira vez à Galiza com a kizomba. A partir dos finais dos anos 90 do século passado começa a haver este tipo de experiências de internacionalização. Mas a verdadeira circulação por festivais dá-se após o primeiro Áfricadançar em 2007. Após esta primeira geração há uma data de novos nomes que levam a kizomba pelo mundo como o Avelino Chantre, Hélio Santos, Ricardo e a Paula da cidade do Porto, muito influenciados pela experiência da escola Sabor Latino. Na primeira geração quase que não existem mulheres, na segunda começam a aparecer nomes como Vanessa, Joana Machado, Filipa Castanhas e Lisa Dunke. A primeira geração teve muitas dificuldades em se afirmar e é por isso que ainda restam algumas tensões desse tempo que tendem a ser vistas como conflitos entre pessoas de diferentes nações como Angola e Cabo Verde, mas que na verdade são a mobilização de um discurso de etnicidade de forma a justificar as diferentes apropriações de uma dança em fluxo, que vai ganhando diferentes interpretações. A primeira geração de professores de kizomba tende a não achar muita graça a estas novas interpretações, mas já não vai a tempo de fazer grande coisa.

Quais são as principais linhas da sua investigação?

Desenvolvi três eixos conceptuais na minha investigação: a ideia de um “campo de batalha”, de Guss, em que nos festivais os professores tentam ensinar diferentes estilos do mesmo género afirmando as suas diferenças. Não aceitar por exemplo que Angola perca na competição internacional, pois para alguns destes protagonistas quem cria uma dança não pode ser humilhado. Também a forma como se olha para a kizomba mediante o contexto. Enquanto que em Miami a dança é vista como “sensual”, no Cairo é vista como “meditação em pé”, o que prova que a mobilização de discursos sobre etnicidade que se revelam nesta pratica de dança. Por último a noção de “imaginário supranacional” de Canclini, ou seja, a ideia para muitos destes professores que funcionam como embaixadores de africanidade através da dança que pode ajudar a unir os povos e tornar o mundo melhor. Era muito interessante ver as aulas de alguns deles e sentir que estavam numa espécie de evangelização africana através da kizomba. Uma dança que aproxima e une os seres humanos num mundo cada vez mais individualista.

De que forma a kizomba ultrapassou as fronteiras de origem e se tornou uma dança globalizada? Que papel jogaram os angolanos na diáspora?

A kizomba veio nas bagagens dos africanos, que em finais dos anos 90 do século passado fizeram de Lisboa a cidade das suas vidas. A kizomba parece ter vindo do ambiente das festas de quintal de Luanda e Angola, mas claro que veio em jeito de passada de São Vicente ou da Praia, de Cabo Verde. Ao juntarem-se nas discotecas africanas em Lisboa e nas festas africanas nas universidades portuguesas a kizomba começa a entrar no léxico dançante das pessoas que visitavam estes espaços. Muitas das discotecas latinas tinham momentos de kizomba, o que também ajudou a levar o género um pouco à boleia da salsa e da bachata da República Dominicana.

Os angolanos são muito bons dançarinos e têm uma classe na pista de dança que chama à atenção. Não tenho dúvida que influenciaram de forma muito decisiva todos os outros dançarinos e ainda hoje, não é em vão que Pedro Viera Dias é chamado de Mestre Petchú. Ao transportar as vivências da festa de quintal para os territórios europeus acabaram por criar um espaço para um conjunto de micro-narrativas de que fala Frank Marcon para a afirmação de danças como a kizomba, o kuduro, o funaná e a coladeira, que também são dançadas pelos angolanos. Dá-se o caso que, ao nível do consumo, as pessoas começaram a querer aprender kizomba de forma mais sistemática e claro que aí os angolanos acabam por ser mais requisitados. Os angolanos deveriam exportar dança e fazer desta uma questão de prioridade cultural. Como Cuba faz com a salsa, Angola poderia fazer com a kizomba, o semba, o kuduro e as danças de Carnaval. Faltam escolas de dança e condições acessíveis de entrada em Angola. A dança poderia e deveria ser o cartão de visita dos angolanos e angolanas. Com as redes sociais e o youtube é muito mais fácil a circulação de informação e para a promoção de danças como kizomba ou kuduro não há necessidade de ir para Lisboa ou para Nova Iorque. A partir de Luanda é tudo possível.

Quais os principais circuitos de difusão da dança como Festivais e congressos de dança kizomba? Que interesses mercantis a promovem, ou melhor, em que reverte em termos de indústria?

O principal festival de kizomba é o Africadançar que acontece por alturas de Maio todos os anos e é organizado pelo Paulo Magalhães que é angolano e Inês Pinto, portuguesa. O Africadançar de alguma forma formatou a ideia de festival de danças africanas, apesar de o maior destaque ser para a kizomba. Nos festivais de kizomba não há só kizomba, há outras danças como o semba e o kuduro e até outras de Cabo Verde como funaná e coladeira, pois há aulas de todo o tipo. A ideia de um festival é ter aulas o mais diversas possível e depois as festas e os shows dos diferentes professores. A vantagem do Áfricadançar é ter a competição de kizomba o que faz com que pessoas de todo o mundo se ponham à prova com os ritmos de semba, kuduro e kizomba em coreografias cheias de espectáculo. Não é o mesmo tipo de coreografia que encontramos nas festas dos festivais, que funcionam um pouco como lugares de prática daquilo que se aprendeu nas aulas. A seguir surgiram festivais como o Feeling, em Madrid, Festival de Kizomba de Varsóvia na Polónia e agora não há fim-de-semana em que não haja um festival de kizomba.

Os festivais vendem dança como experiência de exotismo e muito poucos apostam em questionar outras questões como o racismo ou o colonialismo. O único festival onde vi fazer isso foi o em Praga através de um angolano organizador chamado Balumuka. Ali vi coisas interessantes serem discutidas e também chamar à atenção para o percurso das danças africanas. Pode não ser comercialmente muito interessante, mas acho que era essencial. Quem sabe por exemplo o lugar dos negros em Lisboa, onde existem tantos africanos? Quem sabe da herança cultural dos negros na capital portuguesa? Acho que não era mau os festivais alargarem a sua experiência para lá da dança, além de que será a forma de no futuro se desenvolveram e ficarem como lugares de aprendizagem.

Nas aulas de kizomba ensinam-se vários tipos de kizomba, quais são e como tem sido fixada? Como descreves a dança em termos rítmicos?

Há aulas para todos os gostos e finalidades a ideia é criar uma oferta o mais vasta possível, para que os dançantes possam, em ambiente de festival, conhecer o máximo da dança. Há aulas de “ginga para homens e para mulheres”, “movimentos de kizomba”, “truques de kizomba na pista de dança”, aulas de “kizomba show” ou até aulas sobre musicalidade, enfim, um sem número de nomes muitos deles em inglês, pois a maioria dos participantes dos festivais são internacionais e a língua de comunicação é a língua inglesa.

As aulas são espaços de aprendizagem, mas também de afirmação da especificidade de uma dança de raiz africana, que parece tecnicamente fácil, mas que, na prática, não o é. O ritmo da kizomba é feito de pausas e acelareções, um compasso ternário que vai variando e dançar os tempos da música exige conhecer a batida. Muitos dos dançantes em festivais estão a dançar semba em ritmo kizomba e às vezes o contrário. Os professores têm muita experiência em entender as dificuldades dos dançantes, porque têm muitos anos de discotecas. As aulas e as festas dos festivais são sobretudo uma panóplia de géneros de raiz africana em língua portuguesa a maioria das vezes. Os participantes têm mesmo que ir pelo ritmo, pois muitas vezes não entendem nada das letras das músicas que estão a dançar. Há um género que é a kizomba, mas depois há imensos estilos e variantes e isso dá à dança uma capacidade infinita de ser apropriada pelos diferentes dançantes.

As letras da kizomba são sobre o quê?

As letras da kizomba falam um pouco de tudo que se relaciona com vivências: amizade, amor e coisas que acontecem no dia-a-dia. São quase crónicas da vivência dos angolanos e cabo verdianos. Hoje em dia há letras em inglês como é o caso do Nelson Freitas, mas muitas são em criolo ou em português e são o resultado de histórias que acontecem e são comuns a todos os seres humanos. Por isso é que são tão envolventes, pois falam daquilo que os dançantes vivem e por isso as reacções interessantes na pista de dança como os pares de dançantes de olhos fechados enquanto dançam. Isso é muito revelador de um género que apela aos sentimentos que são reproduzidos através da coreografia.

Existe uma certa conotação com a sensualidade e o mundo erótico na kizomba?

Smpre houve essa conotação, mas não em Luanda, por exemplo. Os professores com quem falei para a minha investigação tentam combater esse esterótipo da kizomba como dança da “paquera”, mas como é óbvio o contacto da dança tem também esse lado. Na verdade e quando as pessoas entendem que a kizomba vem do espaço familiar da festa de quintal conseguem perceber que o contacto não é uma forma de engate ou sexo, mas como dizem alguns professores “um abraço” que remete para a ideia de ligação. Daí muitos festivais se terem nomes como “kizomba connection”, ou “feeling”. Agora não se pode excluir essa questão do erotismo e da sensualidade, porque numa festa há de tudo e a dança pressupõe o entretenimento e a convivialidade.

Como é que tantos dançantes de tantas partes do mundo se apropriam desta dança, como a transformam de acordo com a sua cultura local? Corre o risco de já não ter nada a ver com a sua matriz original?

A forma como a kizomba é apropriada pelos dançantes é por si só uma tese de investigação. A forma como um luandense dança kizomba é bem diferente da forma como um dançante do Cairo se apropria da dança. Essas apropriações são perfeitamente normais no mundo da dança. Em Paris a kizomba é dançada num estilo mais próximo do zouk, mas porque o zouk está muito implantado na capital francesa. Há aliás uma disputa entre os professores de Lisboa e os professores de Paris sobre esta questão. Os professores de Lisboa estão a denunciar aquilo que chamam de “kizomba francesa”, porque ela se centra muito na exploração de uma coreografia sem as raízes africanas na sua fórmula musical. Não há letra, é pura batida. Mas isso já acontecia em Lisboa antes, porque muitos professores imprimiram cunhos novos ao género como é o caso do Avelino Chantre e da Joana Machado com aquilo a que chamam “Ultimate kizomba”, que é uma abordagem diferente da dança e da música permanecendo a sua génese africana e de raiz, mas com nuances coreográficas originais. Não deixa de ser uma apropriação do género, mas com a marca destes coreógrafos. É de facto muito diferente da kizomba de matriz “original”, mas na verdade a kizomba não é ela já um resultado de “fusões” como refere Eduardo Paim? Então acho que a discussão permanente entre “original” e “novo” faz parte da evolução desta dança como ocorreu com outras como a salsa. A salsa de Havana é diferente da salsa de Cali, na Colombia. A luta entre a kizomba de Angola e de Cabo Verde será sempre o caso mais evidente destas apropriações, mas isso acontece em Lisboa e em Paris. Se formos à Praia isso não é uma discussão e em Luanda muito menos. Esse campo de batalha de que falava Guss ocorre com a festivalização da kizomba, que faz com que o produto possa ser embalado de diferentes formas para ser vendido.

O que tem mais força enquanto inovação e forma de expressão da cultura angolana: a kizomba ou o kuduro?

Como pude compreender, estes géneros estão muito próximos no que diz respeito à sua génes. Acho que a kizomba e o kuduro podem ser formas muito interessante de soft power angolano pelo mundo e são de alguma forma complementares. Nos festivais de kizomba também há kuduro ao passo que nos festivais de kuduro há menos espaço para a kizomba. Para mim, enquanto forma de “presença branda” angolana pelo mundo pode ser muito mais efectiva, porque é mais abrangente do ponto de vista etário, dá para “miúdos e graúdos” e arasta  as pessoas ao cerne da sentada familiar e à festa de quintal onde a comida e a alegria tem um papel fundamental. O “Caldo do Semba” organizado pelo Petchú todos os meses em Lisboa é um excelente exemplo da forma como se poderia vender Angola pelo mundo. Por ser mais suave e lenta a kizomba tem um poder mais a longo prazo de fazer as pessoas entrarem naquilo que é a forma mais genuína e autêntica de angolanidade, o espaço da festa da família.

Comente esta frase de Kalaf, citada na tese: “Lisboa é, inegavelmente, uma das cidades mais africanas do mundo e dos últimos anos para cá é interessante ver o papel que a kizomba tem vindo a assumir nesta cidade”?

A experiência do Kalaf é real e muitos de nós a vivemos. Há uma Lisboa africana que não é evidente para quem chega à cidade, mas que dela faz parte e a kizomba desempenha um papel fundamental nessa vivência. O Frank Marcon fala disso nas investigações sobre o kuduro, ou seja, há um “estilo de vida” africano em Lisboa. Toda a gente sabe que o B.leza, o Mwangolé, o Luanda entre outros espaços são lugares onde podemos dar um pulo a Luanda, São Vicente ou Maputo. Essas experiências vêm da facilidade com que nos podemos transportar para essa África longínqua, mas que através da kizomba ou do semba ou da coladera pode e está efectivamente aqui tão perto. O Kalaf propõe até um Museu da Kizomba, que eu acho que seria muito interessante para ser desenvolvido pela CPLP, pois se há dança que unifica e identifica todos os países africanos de língua portuguesa é a kizomba e nisso Eduardo Paim foi um génio e um visionário.

Que papel desempenham os musseques como laboratórios de música e dança. Como se dá o movimento de contaminação cultural periferia e centro?

Na minha tese falo disso muito sucintamente, pois não era o foco do meu trabalho apesar de ter de lá estar para se entender a expansão da kizomba pelo mundo. Ao contrário do que a generalidade das pesssoas pensa, o kuduro e a kizomba não foram propriamente forjados no musseque, pois para aceder aos meios tecnológicos de produção destes géneros era preciso ter dinheiro. Eduardo Paim trabalhava na Rádio Nacional e, além disso, dava-se com muita gente com capacidade financeira para aquisição de orgãos electrónicos e caixas de ritmos. Não podemos esquecer-nos que estávamos em final dos anos 80 e em Angola não havia estúdios de gravação, pois tinham-se encerrado por causa da guerra. De qualquer das formas esse trânsito entre o centro e a periferia onde se davam as festas era uma realidade. Ao contrário do semba, que veio dos musseques para a cidade, a kizomba foi nascendo na cidade e foi sendo levada para os musseques onde era consumida e dançada. O fenómeno da kizomba é muito mais tardio do que o do semba, por exemplo.

Outro capítulo do seu trabalho, como tem visto o desenvolvimento dos meios de comunicação televisivo em Angola?

Desde que fui trabalhar para Angola em 2008 os meios de comunicação deram um salto qualitativo muito grande. Houve uma mudança de paradigma, em parte provocado pelas empresas privadas de comunicação quer seja na televisão como a TV Zimbo, quer na rádio como a Rádio Mais. A forma como as histórias são contadas e os assuntos abordados pelos novos jornais como o Novo Jornal e o País mudaram de facto a informação e em geral os angolanos começaram a conhecer-se melhor através do jornalismo. Isso foi um transformação muito positiva. Acho que continua é a haver um problema que é o facto de os angolanos e angolanas não comprarem jornais e serem mais críticos em relação à aquilo que consomem. Há um grande analfabetismo mediático acompanhado pelos problemas da educação. Há estudantes universitários que não sabem escrever e pior do que isso não sabem ler um jornal ou ver como está feita uma notícia. Isso é muito evidente em Angola, apesar de haver boas universidades e bons professores. Continua a haver grandes carências como boas bibliotecas, edição de livros e boas revistas de especialidade por exemplo de arte que não existe.

As pessoas das equipas que formei na Semba Comunicação a maior parte acabaram as suas licenciaturas universitárias e isso deixa-me muito feliz, porque fizerem um percurso da prática jornalistica para o conhecimento mais teórico. São hoje muito bons profissionais e isso é muito interessante. Mesmo com extremas dificuldades os angolanos e angolanas gostam de estudar e conhecer, mas depois as contrariedades da cidade de Luanda especialmente ao nível das condições torna as coisas muito mais complicadas basta falar da falta de luz, água e transportes acessíveis. As pessoas precisam de ser encorajadas a acreditar que o conhecimento é bom para a vida do país e da sociedade.

É casado com um angolano, como tem sido assumir a homossexualidade no contexto ainda homofóbico?

As questões LGBT em Angola ainda são um tabu e enquanto as forças vivas da sociedade continuarem a olhar para esse elefante branco no meio da sala e não enfrentarem o problema com discussão e debate não se vão fazer os progressos que se fizeram, por exemplo, na África do Sul.

Tenho pena de o meu casamento ser reconhecido em Portugal e não ser reconhecido em Angola, país que sempre me tratou bem. A discriminação continua a existir, mas em Portugal também onde foram dados passos muito importantes pela igualdade de direitos. As primeiras conversas que tive em Angola apontavam para a não existência do amor entre pessoas do mesmo sexo dando a entender que isso são coisas “más” importadas do estrangeiro. Mas com o tempo fui conhecendo uma comunidade cheia de vontade de ter um futuro com mais igualdade e poder estar à vontade. A homossexualidade está ainda muito escondida e a comunidade parece ainda não ter a capacidade política para a discutir através de associações e criação de debates que façam a sociedade angolana trabalhar esses temas. Já há festas LGBT, mas não há palestras, nem associações verdadeiramento activas que façam mexer a sociedade civil. Os partido políticos devem começar a promover discussões em volta destes temas para que angola seja uma sociedade inclusiva. Os partidos têm um papel importante para a mudanças necessárias de forma a haver acesso de todos à cidadania plena.

Há cada vez mais pessoas fora do armário e de quando em vez os angolanos mostram que são uma sociedade avançada e que respeita as diferenças. O facto de haver pessoas como a Titica, que é uma trans kudurista pode dar visibilidade e criar discussão em torno de uma sociedade diversa onde todos têm o seu lugar. Mas as pessoas fazem piadas e graçolas e não entendem sequer que a Titica ao afirmar-se como mulher trans, está a abrir espaço para uma discussão sobre a igualdade e isso é muito interessante.

O que as angolanas e angolanos têm que entender é que a luta contra o racismo, o machismo é igual à luta contra a discriminação de qualquer tipo de amor seja. Acho que quando isso acontecer a sociedade caminhará no sentido da igualdade.

Pode resumir o seu percurso profissional?

Comecei a trabalhar muito cedo em jornalismo. Com 17 anos já estava a colaborar com um jornal local em Vila Nova de Gaia, o Jornal Notícias de Gaia. Antes de terminar a faculdade estagiei na rádio TSF, após ter estado a viver em Berlim onde estudei teoria do cinema. A rádio foi um fascínio, conheci pessoas incríveis mas, passados seis meses, acabei numa produtora de televisão, a Até ao Fim do Mundo, onde estive a fazer programas mais culturais como o Magazine da Dois para a RTP ou o Geração High Tech para o canal MOV, enquanto jornalista.

Como deu início ao trabalho ligado a Angola e depois no país?

Em 2008, a Semba Comunicação convidou-me para a formação de quadros angolanos e a criação e formatação de programas de televisão. Aprendi imenso em Angola e trabalhei com profissionais de primeira categoria. A televisão em Angola evoluiu imenso pelas mão da Semba Comunicação e foi possível mudar o panorama televisivo de forma radical. O Canal 2 da TPA deu voz à juventude, à criatividade e foi muito bom ter contribuído para essa mudança, na forma de ver televisão em Angola. A maioria das pessoas não se identificava com a televisão do país e o Canal 2 da TPA devolveu essa ligação às pessoas, à sua forma de estar e ser.

Que programas mais lhe agradaram fazer? 

Os programas que mais me deram gozo em formatar e coordenar foram o concurso de dança Bounce onde lançamos as bases para um nova juventude ligada à dança, o Elite Model Look, onde se descobriram algumas das modelos como Maria Borges e a Amilna Estevão. Gostei muito de formatar o programa Dia a Dia com a Mara D’alva e o Vitor Hugo Mendes, que permitiu falar de assuntos de forma livre e sem tabus abrindo espaço à participação dos telespectadores. A magia do directo é essencial em televisão e a Mara e o Vitor criaram uma relação cheia de afectos com a rua, as pessoas da cidade de Luanda. Era um programa mais orientado para mulheres e também isso foi importante de observar: as mulheres em Angola são muito mais determinadas e responsáveis que os homens, passe a generalização. Mas a minha experiência diz-me que trabalhar com mulheres em Angola traz sempre melhores proveitos e resultados mais duradouros.

O último programa que realizei foi o “Kizomba Nation” sobre a expansão desta dança de raiz angolana pelo mundo. Apesar da situação de crise, acho que há muitos programas capazes de fazer entender de forma nova e atractiva o papel de Angola no mundo e na história das humanidades.

 

Entrevista originalmente publicada no Rede Angola em 2016.

por Marta Lança
Palcos | 4 Fevereiro 2021 | antropologia, dança africana, kizomba, kuduro, luanda, semba