“O povo é o peão do xadrez da História de Angola”, entrevista a Alberto Oliveira Pinto
Dedicou cinco anos à pesquisa e escrita desta História de Angola, da pré-história ao início do século XXI que acaba de ganhar o Prémio Sagrada Esperança da União de Escritores Angolanos. Recorreu a fontes orais, escritas e arqueológicas para repor alguma veracidade nos mitos e conhecer a ligação entre os tempos. Prefere falar de factos a figuras e sabe que o historiador tem um pouco de psicanalista, mas sobretudo de cientista.
Como caracteriza a pertinência desta obra no contexto historiográfico africano: como se pode escrever e ensinar a partir de uma perspectiva africana?
Da mesma forma que em qualquer parte do mundo: tendo sempre a preocupação do conhecimento e secundarizando o positivismo tecnocrático.
Em que medida veio romper com a clássica organização “pré-colonial”, “colonial” e “pós-colonial”, como afirma o professor Elikia M’bokolo, no prefácio ao seu livro?
Ele próprio responde à sua pergunta, afirmando que a minha História de Angola é uma história narrativa. No entanto, e ele também o acrescenta e eu próprio falo disso permanentemente, nomeadamente na Nota Prévia, não é exclusivamente narrativa, mas também interrogativa e desconstrutivista de mitos. Acrescento o que escrevi na Nota Prévia: “desde Heródoto que a História é acima de tudo analítica e, pelo menos desde o Romantismo, tem uma função explicativa e interrogativa não meramente narrativa dos factos”. O historiador é, portanto, um cientista, e não um jornalista nem um cronista.
Porque colocou como termo do seu eixo temporal o ano de 2002?
Porque acho que, se fosse escrever sobre os 14 anos que desde então decorreram, não estaria a fazer história e sim jornalismo. E, repito, não sou um jornalista e sim um historiador. Em todo o caso, se o leitor ler com atenção os meus capítulos sobre os tempos recuados, verificará frequentíssimas similitudes com os tempos actuais. Angola foi sempre alvo de interesses estrangeiros e as elites angolanas, pelo menos desde o século XVII, sempre emergiram dessas lutas de interesses.
Por exemplo?
Um caso muito nítido é a chamada “conquista do Kwanza”, por Paulo Dias de Novais, no último quartel do século XVI. Assistimos à disputa pelo corredor do rio Kwanza, como centro de escoamento de mercadorias para o mercado internacional – naquele tempo a mercadoria era sobretudo o escravo –, entre grupos de interesses de unidades políticas angolanas, vulgarmente designadas por sobas, e grupos de interesses privados e faccionados portugueses que, por sua vez, se digladiavam com os interesses estatais portugueses. Havia alianças de uns lados e de outros consoante as conveniências. Mas, muitos outros momentos houve similares à actualidade. É só ler o livro!
Há uma persistente vertente mitológica na História de Angola.
Convém distinguir entre duas conotações de “mitos”. Por um lado, os da tradição oral, que simbolizam a história das linhagens na memória oral angolana. Esses são tratados, sobretudo, nos três primeiros capítulos. Esses são a história. Por outro lado, há as ideias feitas, ou os imaginários, que são normais e compreensíveis na história de qualquer povo. Em Angola e Portugal existem, entre outros, os “mitos coloniais”, ou, como me ensinou a professora Isabel Castro Henriques, a “cultura colonial”.
Que mitos conseguiu desmontar ou tornar mais inteligíveis?
Cabe ao historiador desmontar os mitos, pois o historiador é o psicanalista da sociedade. Não necessariamente destruí-los. Desmontá-los apenas, para que nos conheçamos melhor uns aos outros. E, do meu ponto de vista, pese embora o esforço de muitos colegas nestas últimas décadas, continuam a persistir em Angola e em Portugal, de modo escandaloso, silêncios da história que urge quebrar e falar abertamente: o colonialismo, o tráfico de escravos, o racismo, o degredo… É urgente serem estudados logo no ensino básico e não, como vi há tempos um pretenso historiador dizer na televisão, retirá-los da universidade. Pelo contrário, há que reforçar, em Angola e em Portugal, o estudo destas matérias. Aliás há que reforçar nestes dois países – falo neles porque sou cidadão de ambos, mas acho que o problema é global – o estudo das Ciências Humanas, que têm sido votadas ao desprezo na última década.
A literatura angolana tem desempenhado um papel documental que contribui para a ilustração de alguns episódios da História. Pode destacar alguns autores?
Desde o século XIX que a literatura angolana teve um papel fundamental na afirmação da identidade angolana, começando logo na imprensa da segunda metade do século, com autores como Cordeiro da Matta, Arantes Braga e José de Fontes Pereira. Ao longo de todo o século XX, a literatura angolana foi riquíssima, começando em Assis Júnior e Óscar Ribas e culminando em José Luandino Vieira. Mas tenho que sublinhar que nos 40 anos que decorreram após a independência, face aos silenciamentos da história, os autores de romances históricos – entre os quais me incluo, com Mazanga e Travessa do Rosário, mas de entre os quais destaco Henrique Abranches, Pepetela, Arnaldo Santos, Jorge Arrimar e tantos outros – têm (temos) tido um papel fundamental, substituindo-nos aos historiadores. Mas isso não pode ser sempre assim. Por isso, acho eu, alguns romancistas acabam por se tornar historiadores. Creio que, inconscientemente, foi o que aconteceu comigo próprio.
Que figuras do tempo colonial tiveram mais protagonismo em Angola?
É mais fácil, para mim, enunciar factos do que figuras. Embora na minhaHistória de Angola me detenha com aspectos biográficos de figuras marcantes – não apenas figuras políticas, mas também, por exemplo, cronistas como Cadornega (século XVII), Elias Alexandre da Silva Corrêa (século XVIII) e tantos outros, laicos e eclesiásticos, inúmeros missionários -, sempre fui contra a chamada “história dos grandes homens”. A minha tendência é sempre para os desmitificar e mostrar os seus defeitos. Como dizia o meu saudoso professor Alfredo Margarido, é preciso levar as figuras históricas ao bar ou ao restaurante, porque são pessoas como nós. E agora, no prefácio, o professor Elikia M’Bokolo sublinha bem a importância da história dos homens e das mulheres comuns: “Se a história escrita não consegue falar de ‘toda a gente’, então é a história de quê?”
E pensa ter conseguido essa abordagem mais problematizante e não dos vencedores?
Cabe aos leitores julgá-lo. Aliás, a esse propósito, queria falar da capa do livro, concebida pelo designer Henrique Branco a partir de um jogo de xadrez de arte kikongo que adquiri em 1997 em Luanda, no Mercado do Benfica. Se reparar na capa, a figura em evidência é o peão do xadrez, ou seja, o povo. Embora a capa seja muito bonita e significativa, palpitou-me logo que nem toda a gente se ia aperceber desta simbologia. Por isso, nas páginas das epígrafes, acrescentei, a uma frase de Plutarco que se mantém bem actual, uma outra frase que atribuí a um angolano da minha idade chamado Monasanji. Monasanji significa Pinto – o meu nome – em kimbundu. É um pseudónimo que de vez em quando uso quando me quero esconder modestamente, o que é raro em mim. Mas já é a segunda vez que utilizo o Monasanji na epígrafe de um livro meu. A outra foi no meu romance Travessa do Rosário, em 2001. Agora Monasanji afirma: “O Povo é o peão do xadrez da História de Angola”.
Que factos salienta como mais decisivos para a História de Angola durante a presença portuguesa, a partir de 1490 e até meados do século XIX?
Durante esse longo período, Angola foi construída na base do tráfico negreiro, acentuado depois de 1530 com a criação das capitanias do Brasil e da exploração do açúcar. Intervieram portugueses e angolanos. Alguns factos relevantes foram: a formação dos presídios do Kwanza, iniciados com Paulo Dias de Novais em 1575; a aliança entre os Imbangala e os portugueses no início do século XVII; a coligação de Estados africanos liderada pela rainha Njinga Mbandi entre 1635 e 1648; as campanhas militares de Luís Lopes de Sequeira, o “Mulato dos Prodígios”, que desmantelou os Estados do Congo, do Ndongo, do Libolo e da Matamba; a terrível guerra civil no Congo na viragem para o século XVIII, que teve repercussões financeiras entre os comerciantes de todo o território de Angola; por fim, é de assinalar a Independência do Brasil em 1822, que marcou uma viragem decisiva na política colonial portuguesa em relação a Angola e também em relação a São Tomé.
E entre 1850 e o colonialismo tardio?
A Conferência de Berlim de 1884/1885 legitimou a partilha dos territórios africanos pelas potências europeias. Antes já se assistia a uma imposição britânica, adveniente do abolicionismo, o que em Angola se centra muito na figura do governador Pedro Alexandrinho da Cunha, entre 1843 e 1848. No primeiro quartel do século XX, a grande figura do colonialismo é, sem dúvida, Norton de Matos. Aliás a grande política colonial portuguesa é feita com a Primeira República. O salazarismo mais não fez do que organizar. Mas o salazarismo deu também a conhecer os grandes escritores coloniais, como Henrique Galvão, que acho que também são figuras de relevo. Enfim, muito mais haveria a dizer…
Como vê a relação da História de Angola com a História do Mundo e as dinâmicas da globalização ao longo do tempo?
Antes da presença europeia, os Estados africanos que integravam o que viria a ser Angola já tinham relações comerciais e diplomáticas entre si, no continente africano. A presença europeia, através do tráfico negreiro legitimado pelo Cristianismo, mais não fez senão conseguir que os Estados angolanos se internacionalizassem. Se ler com atenção o meu livro, verificará que a preocupação de todos os soberanos do Congo depois de se cristianizarem é a de enviar embaixadas à Europa, primeiro ao Papa e depois a outros países que nada têm a ver com Portugal. A própria rainha Njinga Mbandi, quando em 1648 se vê desprovida do apoio holandês e também do conguês – mercê do início do desmoronamento do Reino do Congo – acede em ser recristianizada pelos Capuchinhos italianos e em assinar acordos de paz com Portugal; mas imediatamente enviou embaixadas à Santa Sé que a projectaram no mundo.
Esclareça aos nossos leitores a diferença entre “Estados” africanos ou “nações” africanas?
A diferença entre os conceitos de “nação” e de “Estado” é a mesma em qualquer parte do mundo e em todos os tempos. Uma “nação” é um conjunto de pessoas ligadas pela mesma cultura, pelas mesmas tradições, pela mesma língua… Um Estado é uma organização política que implica uma nação, um território e ainda a existência de elites que controlam os meios de produção e a distribuição dos excedentes pelas populações. O evolucionismo darwinista entendeu que havia povos mais evoluídos do que outros e, por isso, uns estariam em condições de ser organizados em Estados e seriam chamados “nações”. Outros, menos evoluídos, não o conseguiriam e por isso não teriam dignidade para ser designados por “nações” e sim por termos redutores como “etnia” ou “tribo”. Mas tudo isso é uma falácia, como sabe, embora ainda muito utilizada actualmente, nomeadamente no discurso dos economistas e dos empresários, quando distinguem entre “desenvolvidos” e “sub-desenvolvidos”.
A confluência de várias nações e de povos, tempo e necessidades tão diferenciados num só território que se ambiciona enquanto Estado-Nação tem trazido algumas situações discriminatórias. É uma herança complicada?
Tenho uma opinião pessoal sobre o assunto. Acho que a confluência de várias nações e povos em Angola é um problema de somenos importância. Aliás, até é um ganho! Todas as nações, em qualquer parte do mundo, se constroem com essas misturas. A questão da pluralidade de povos – que mais não é do que um eufemismo que pretende exprimir exactamente o que o discurso colonial chamava “tribalismo” – serve, tal como no tempo colonial, para disfarçar o verdadeiro problema de Angola e da maior parte dos países da África Subsariana: o neo-colonialismo e a manutenção das estruturas coloniais, seja ao nível interno, seja ao nível externo ou global, com a diferença de que hoje os colonialistas não têm identidade, são grupos de interesses económicos extremamente perigosos enredados numa teia muito complexa.
Que zonas mais cinzentas da História de Angola ficaram por esclarecer?
Ocorrem-me a história dos Estados Bantu a sul do Planalto Central antes do século XIX, nomeadamente os Ovimbundu. Mas hoje mesmo lembrei-me de outras. Por exemplo, não falo em nenhum momento da importância do desporto em Angola. Sobretudo o basquetebol, que merecia uma história autónoma! E também o xadrez, de que Angola foi e poderá voltar a ser campeã. Para segundo e último plano deixo o futebol, que acho um desporto desprezível e sobre o qual cito Brigitte Bardot: “basta dar uma bola a cada jogador e o problema está resolvido”.
O que poderia desenvolver acerca da história dos Estados Bantu, mais concretamente os Ovimbundu?
Só a arqueologia pode explicar se as hipóteses de provirem de migrações mbundu, levantadas, entre outros, pelo historiador norte-americano Joseph C. Miller, fazem ou não sentido.
Seria importante incentivar mais estudos arqueológicos em Angola?
Sem dúvida que sim. Mas, como sabe, a arqueologia é uma ciência ingrata, pois contende sempre com os poderes locais. Não é fácil fazer arqueologia num país pejado de refinarias de petróleo e de jazidas de diamantes.
Quais foram as suas condições de trabalho e principais fontes?
Trabalhei regular e quase diariamente na minha biblioteca. Quanto às fontes, houve que contar com as orais, escritas e arqueológicas. E remeto para o que eu próprio escrevi na Nota Prévia ao livro: “Era inevitável a consulta de uma plêiade de autores que, muito antes de mim, se debruçaram sobre incontáveis momentos e temáticas da História de Angola. No entanto, num livro deste género, era-me impossível, por cada vez que os citasse, recorrer ao habitual expediente da nota de rodapé. Além de redobrar o número total de páginas, já por si assaz extenso, criaria, como soe dizer-se, obstruções à fluência da leitura. Mas tive a preocupação de fundamentar todas as minhas afirmações e de, frequentemente, mencionar os autores e as obras que me serviram de fonte, os quais o leitor encontrará devidamente inventariados na bibliografia apresentada a páginas finais”.
Publicado a 16/2/2016 no Rede Angola.