"Queremos um tsunami!", a voracidade de Miguel Gullander

Queremos um tsunami!

frase na biblioteca pública de Oeiras


Perdido de Volta de Miguel Gullander

Qualquer coisa potente nos faz mover, andar à procura sem parar, desejar um tsunami que revolva tudo (e depois arrependemo-nos?). Nessa procura sem objecto, vão-se calejando resistências, acumulam-se experiências, ganha-se um coração elástico. Depois de tentativas de regresso, em que estranhamos o familiar, descobrimos que deixamos de perceber quando vai a viagem parar, porque já algo se transformou no olhar com que partimos.

Já não é possível fixar aquele lugar na sua continuidade.

É portanto difícil a ideia de regresso. 

O vício dos eternos viajantes, que se predispõem à viagem e a ela se entregam, passa pelo estado de graça de uma riqueza invejável: são seres cheios de estórias. Assimiladas em biografias capazes de ultrapassar a perplexidade, ou estranheza, trazem-nos uma compreensão apaziguadora da matéria que povoa o mundo, sem camuflagens. Afinal uma família de bizarrias numa casa onde também cabemos. Por outro lado, um planeta estrangeiro ao qual chegamos sempre pela primeira vez.

Cheios de estórias, os viajantes sofrem por tantas vezes não saberem que fazer com elas, onde colar aqueles fragmentos, os momentos de fulgor, com quem partilhar as vidas de outros que se cruzaram com a nossa.

Ocorre porém que há quem consiga um sentido e um destino para estas mesmas estórias, uma capacidade de as transformar noutra coisa para além da nossa mera transformação.

Há quem fotografe, há quem seduza mulheres, há quem faça filmes.

Miguel Gullander encontrou destino para a experiência, viagens e as suas estórias na escrita.

fotografia de Jordi Burchfotografia de Jordi Burch

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O transporte público em África - neste caso por iniciativa privada para colmatar outras negligências - é uma boa metáfora da sensação de pertença a uma comunidade / casa temporária. Apanhamos uma hiasse, um candongueiro ou um chapa e, entre o incómodo e a curiosidade, ali nos entregamos à deriva, observamos  personagens singulares, comenta-se o mais alargado espectro de assuntos, se desabafam os cansaços e se vomitam os poderes.

Nos oferecemos como mártires para que um qualquer condutor louco ou bêbado nos despeje na curva da estrada para a próxima viagem. Ouvimos um kuduro ensurdecedor ou um funáná com voz de grogue. Sentimos a vida a pulsar.

“Perdido de volta” é o nome de um destes autocarros do desenrasca, da boa ou má vontade pessoal, com a única lei de que cabe sempre mais um e que, em princípio se os deuses ajudarem, se há-de regressar a casa.

A certa altura o narrador tem um momento explicativo do título: Por mais falta de cumprimento de horário, de rota - por mais desconhecido que seja o caminho - por mais desnorteado que pareça ser o destino, por mais perdido que se esteja, esta carrinha acaba sempre por ir aonde a necessidade exige - acaba sempre por passar onde é preciso. Recolhe quem deve recolher, e até dá, por vezes, uma boleia - e, mesmo que ande perdida na noite, na chuva, nos caminhos sem vivalma, perdida, ela acaba sempre por regressar de volta onde pertence, a casa.

O que é isso de voltar onde se pertence? O que poderá ser casa para um escritor como Miguel Gullander, e tantos jovens deste mundo globalizado, onde as fronteiras são cada vez mais abstracções, nalguns casos, e agressivas em tantos outros, em que circular é condição, necessidade e vontade?

Não há-de ser uma casa-país, com a salada cultural de que é feito (mãe sueca, pai português e os vários países que se têm cruzado com o seu destino - Cabo Verde, Moçambique, Inglaterra, Índia, Angola). Não é uma casa-conforto, porque o Miguel vai para o mato onde não há homens, durante 15 dias à procura da palanca negra e, quando volta, o que vê nas cidades são coisas tontas e sem sentido que as pessoas fazem à procura de conforto.

Miguel Gullander introduz um outro tipo de casa - a casa-maelstrõm. Esta palavra estranha que ecoa ao longo do livro como uma cantilena é um fenómeno “natural” da mitologia viking/nórdica, um vortex gigantesco circular que atinge o fundo do oceano. E, tal como Edgar Allan Poe em A Descida ao maelstrõm, (1841), Gullander descreve a descida colectiva para um cada vez mais fundo maelstrõm que, no caso do protagonista do livro, começa com uma entrevista e um contrato, uma missão de educação, até um inferno interior. 

Nunca se sabe onde acaba a sua viagem e a qual casa regressa. Talvez seja uma casa de silêncio que dá lugar às vozes alheias - a escrita.

fotografia de Jordi Burchfotografia de Jordi Burch                                      **   **   **   **

Era 2005 em Cabo Verde, no Fogo. Miguel Gullander escrevia furiosamente nos seus cadernos pretos A4, escrevia com urgência. Ultimou o livro em Benguela, e acabou-o em Moçambique. Finalmente disse: toma lá, saiu-me das entranhas! E a sua leitura acompanhou-me em algumas horas duras de Luanda. O que mais surpreendeu foi estar na presença de um livro de energia, um livro de necessidade, um grito com fôlego, raro em tempos de romances de estrelas mediáticas, narrativas água-com-açucar ou  uns barroquismos sem organicidade. Em Perdido de Volta nada é supérfluo na motivação, nem nas palavras que disparam num lança-chamas. Miguel Gullander parece estar sempre em combustão e, não sendo fácil viver nesta miragem constante, a escrita torna-se porém poderosa e densa. 

Num intervalo das temporadas em África, o autor manda um email onde se descreve assim: sou biologicamente todo quitadinho, e tenho mercúrio por linfa, e lava histamínica, daquela bem alérgica, a correr-me por sangue - e até sinto o cheiro a carne frita da minha própria auto-combustão-espontânea. Eu vejo super-novas a abrirem a boca, do teto do meu quarto, quando durmo de noite. E sinto o magnete excessivo que, do centro da noite, me chama, me chama, e me queima, como uma chama. Mas eu percebo, gajos como eu deviam andar de açaime. Eu não atraio as cenas estranhas. O que passa é que eu estou em tantos sítios, movo-me por entre tantas coordenadas de gentes, que vão daqui ate ao cu-de-judas, que seria impossível não partilhar, de um modo ou de outro, das dinâmicas em que elas próprias se movem. E morrem. Eu vivo o maelstrom.

Este é o Miguel escritor e na vida, uma energia que dispara para muitos lados, com o raro poder de observar aquilo que certos olhos neutros ou desfocados não absorvem e, por vezes, de lhe fugir o óbvio. Consegue a estranha proeza de combinar um estado de alucinação e clarividência. E é um certo modo de viver a realidade e decifrar os seus enigmas, a voracidade com que a conta que lhe dá intensidade.

O cepticismo e ironia perfazem a linguagem de Perdido de Volta, onde não há heróis, todos são traídos por si próprios, acusados antes de mais pelas suas máscaras e papéis sociais: ambientalistas, drogados, bancários, salvadores hipócritas do Terceiro Mundo. O tom de denúncia dirige-se também à indústria do desenvolvimento, disfarçada de razões humanitárias mas sempre de olho no negócio em África, que continua a exportar fileiras de jovens ocidentais à procura de experiências exóticas os quais, além dos objectivos carreiristas, vivem África como um “campo de férias” sem nada alcançarem da sua profundidade e complexidade. A missão do candidato seleccionado torna-se patética, tranversal a crítica à Instituição, às diplomacias, por ventura à Escola e aos programas que não se adequam, apesar de haver quem esteja fora do baralho e que se dedica, efectivamente, à educação e a transmitir ferramentas de abertura.

O livro introduz essas ambiguidades: não há lugares tropicais idílicos, não há pureza, nem governos democráticos, nem sociedades holísticas, andamo-nos todos a enganar uns aos outros, em mitos bem sedimentados, as tradições são por vezes aberrações, a crueldade mostra as garras pela humilhação e violência. Sabemos, porém, da generosidade, solidariedade, festa, desejo, curiosidades, das areias negras e vontade de transcender os limites da nossa condição. Uma luz esbatida que nos faz acreditar em alternativas a este mundo estritamente regido pelas leis do capital. São ilhas de resistência. 

Nessa crença, pulsão que emerge destes lugares, reside a força dos aventureiros, que procuram a vida “do outro lado”, em todos os lados de lá. Nisso, entenda-se, não há espaços nem momentos impermeáveis às podridões mas sim sincronismos que possibilitam o encontro verdadeiro. E o que se sente nestas páginas não é o imediato reconhecimento, identificação de cenários, onde possa ficar estampada esta ou aquela característica deste ou daquele povo ou cultura, ou ambiente, ou lixeira fermentada das actualidades. Os cenários e personagens provêm antes de um mundo muito interior, e se não fosse a ilha do Fogo ou a Índia, seria noutro lado qualquer onde os monstros e as mãos vindas do nada nos indicam os próximos caminhos. 

O que se torna identificável é um estado de fragilidade - e a tentativa de reerguer-se - as ruínas humanas e de lugares que foram e continuam a ser violentados sob as mais ou menos visíveis formas de exploração e colonialismo, o que daria muita reflexão a uma perspectiva de leitura pós-colonial.

fotografia de Jordi Burchfotografia de Jordi Burch

 

Barbidjaka. As máscaras africanas espiam-nos, a nós seres amedrontados, com o seu poder de cumprir os desígnios, e com o seu poder de fecundar e fazer acontecer. É todo um jogo especular e de reflexos o que aqui se desenha. Porque todos estamos dentro do Jogo, cada um vai para o planeta que lhe é destinado, um numa ilha aqui outro numa ilha ali trabalhar sobre os afectos. Aline dos cabelos negros, a pequena Izili dos olhos vermelhos, Lila, a mulher que queria fazer chuva ou a Dalila que traiu. Musas mudas, crianças endemonizadas, devassos, pedófilos, brancos e pretos, homens - monstros de podridão e de graciosidade, as suas identidades em construção. Confrontos, adorações, livros místicos que nos dão as coordenadas para os próximos passos. Tudo oscila numa força vital que impele a continuar, apesar dos escombros e da ilusão. Dizem que nenhuma pessoa pode curar o coração de outra. No entanto, todos procuram essa impossibilidade: quem lhes fale ao coração, quem lhes toque na sua frágil película. 

 

ler capítulo do próximo livro do autor aqui

Perdido de Volta (Língua Geral, D.Quixote 2008)


por Marta Lança
A ler | 31 Agosto 2010 | Literatura, urgência, viagem