“sou esparsa, e a liquidez maciça”: Gestos de Liberdade, ciclo BUALA no maat
19/09 – 20/09/2020, 26/09 – 27/09/2020
15.00 – 19.00 maat I Lisboa
Curadoria: Marta Lança
Este programa inscreve-se nas comemorações de uma década da dinamização diária do BUALA, plataforma online de pensamento e cultura descolonial e feminista. A maturidade democrática de um país não é inabalável, tal como não o são as liberdades tantas vezes sob ameaça. A partir dos significados e práticas dessas liberdades na nossa vivência atual, artística e social (irradiando para outros contextos), o propósito deste ciclo é pensar a liberdade de novo e experimentá-la outra vez. Atravessamos uma crise sanitária e social, que acentua a precariedade e a discriminação de certos grupos. A crise ambiental agiganta-se hierarquizando mais a humanidade. Cientes de que o bem-estar social está longe de acontecer, a liberdade ecoa e grita. Porém, a liberdade pode ser algo muito diferente em função do espaço, do meio, e do momento, de que falamos.
Numa sociedade ainda marcada por profundas desigualdades de género, entendemos a emancipação e liberdade como processos assentes em contínuas e escorregadias disputas no quotidiano. Nestes dias, partilhamos abordagens de cineastas, artistas, curadoras, investigadoras e poetas para avançarmos com perspectivas de mundo onde as práticas de liberdade se inscrevem em cada gesto ou situação propostos. Era para ter acontecido em abril, nos 46 anos do 25 de abril. Perdemos algumas intervenções com a mudança de agenda pandémica, mas estou muito feliz com este ciclo dialogante, que se propõe a pensar e soprar liberdade a partir do nosso tempo e lugar, com contra-narrativas sobre nascer, a doença, a guerra, o universo doméstico, o mundo laboral (e sua face de trabalho invisível), a arte, e gestos que rompem o status quo. Percursos (de inteligência, coragem, luta pela felicidade) e histórias que nos contam as intervenientes deste ciclo concebido para o maat.
A propósito da liberdade como uma eterna ambição e ativação, vamos conversar com artistas, pensadoras e agitadoras sobre conquistas e direitos, expectativas quanto ao corpo, carreira, maternidade, representatividade, circulação e propostas artísticas. A antropóloga e videasta Catarina Barata, que trabalha sobre violência obstétrica, fala-nos dos fatores sociais, culturais, económicos, e políticos ligados ao parto. A socióloga Inês Brasão desenha a condição plural do corpo e do trabalho das mulheres, e Sara Goulart reflete sobre o corpo, a doença, e a cura.
Assistiremos a projeções de filmes, seguidas de debate: Parto Sem Dor, de Maria Mire, a partir da história da médica e feminista Cesina Bermudes; o retrato de um país num mosaico de diversas mulheres no filme Mulheres do Meu País de Raquel Freire, que será comentado pela professora e economista Susana Peralta; o percurso da geógrafa Suzanne Daveau e do seu arquivo de “imagens-viagens” que Luisa Homem desvela; e ainda os testemunhos de combatentes pela independência da Guiné-Bissau, trazidos por Rui Vilela.
Ana Gandum e Daniela Rodrigues recuperam souvenirs de migrantes portugueses entre Portugal e o Brasil. Gisela Casimiro ironiza a história de arte ocidental contrapropondo o seu Museu Pessoal, em debate com Rodrigo Saturnino. A investigadora Filipa Lowndes Vicente fala-nos do seu livro, A Arte sem História: Mulheres e Cultura Artística. Fernanda Eugénio dá a conhecer a sua metodologia para a investigação experiencial da relação e da reciprocidade. Andreia Cunha satiriza os efeitos sociais da expressão do ridículo num ensaio visual. A fechar o ciclo, Marta Mestre reflete sobre a curadoria de uma exposição sobre linguagem, fracassos e ficção.
15.00 – 15.05: Boas vindas do maat
por Beatrice Leanza / Rita Marques
15.05 – 15.20: Introdução ao ciclo - Gestos de Liberdade Marta Lança
15.20 – 15.40: O que revelam as experiências de parto das mulheres? Catarina Barata
O modo como se dá à luz e se nasce depende de fatores sociais, culturais, económicos, históricos, e políticos. Em Portugal, como noutros países, cada vez mais mulheres se questionam se é inevitável sofrer maus-tratos durante o parto. A apresentação é baseada num projeto de investigação sobre perceções, discursos, e representações acerca de experiências de violência obstétrica.
Catarina Barata é antropóloga e videasta. Investiga atualmente experiências de violência obstétrica, no âmbito do doutoramento em Antropologia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
15.45 – 16.15: O corpo e o trabalho das mulheres: uma condição plural Inês Brasão
No primeiro 8 de março celebrado em Portugal, corria o ano de 1975, o Jornal de Notícias escrevia na manchete: “Dia Internacional da Mulher: É urgente libertar o subproletariado”. Partindo desta base, interrogamos o corpo e o trabalho na condição feminina plural.
Inês Brasão é socióloga, professora (PL), autora de O Tempo das Criadas (2012) e coautora de Fêmea, Uma História Ilustrada das Mulheres (2019).
16.15 – 16.40 Parto Sem Dor, Maria Mire Documentário, 2020, 22’
Num ato de honesta generosidade, uma mulher de 80 anos oferece móveis a uma jovem vizinha que vivia na Avenida Santos Dumont. Numa manhã, talvez de primavera, ao ler um artigo sobre uma mulher médica que vivia nessa mesma avenida, essa generosa mulher finalmente ganhou um nome: Cesina Bermudes. Médica, obstetra, investigadora e feminista. Parto Sem Dor é o retrato de alguém que tão sorrateiramente passou pelas nossas vidas mas que deixou um legado que tentamos decifrar.
Maria Mire (Maputo,1979) é doutorada em Arte e Design pela Faculdade de Belas Artes do Porto (2016), com a tese Fantasmagorias: A Imagem em Movimento no Campo das Artes Plásticas. Atualmente é professora e corresponsável do Departamento de Cinema/Imagem em Movimento do Ar.Co. em Lisboa, e é artista visual.
16.40 – 16.42: História das Mulheres do Meu País, Raquel Freire, Tainá Maneschy, Filme de Animação, 2020, 1m 7 seg
Cartaz do filme ‘Mulheres do meu país’, de Raquel Freire
16.42 – 18.25: Mulheres do Meu País, Raquel Freire Documentário, 2019, 1h43’
Com Adelaide Costa, Alice Cunha, Ângela Pica, Clara Queiroz, Leonor Freitas, Lúcia Vaz, Márcia Sousa, Maria do Mar Pereira, Maria Inácia Flores, Maria João Pereira, Maria José Neto, Mynda Guevara, Perpétua Flores, e Toya Prudêncio.
Este filme é um retrato sobre a condição da mulher portuguesa no século XXI, tendo em conta os vários eixos de interseccionalidade, das opções, das emancipações, de como é viver hoje em dia com todas as desigualdades e dificuldades, e como é que é ultrapassá-las neste território. O documentário retrata 14 mulheres portuguesas que têm em comum “a força e a capacidade de olhar o mundo à sua volta, de o compreender e de o transformar”. Da mulher da limpeza à geneticista, da pescadora à cuidadora informal: cada uma destas mulheres é um país em si. Este documentário é inspirado na obra As Mulheres do Meu País (1948), de Maria Lamas, um livro há muitas décadas na cabeceira da autora, sobretudo pela “visão profundamente feminista, de igualdade e de liberdade” da escritora, jornalista, e ativista portuguesa.
18.30-19: Comentário de Susana Peralta e conversa com a realizadora Raquel Freire e Tainá Maneschy.
Raquel Freire (Porto, 1973) é realizadora, escritora, argumentista, produtora, cidadã e mãe. Estudou Direito, História e Estética do Cinema, e História e Estética do Cinema Português na Universidade de Coimbra. Realizou os filmes Rio Vermelho, Rasganço, Veneno Cura, SOS, Esta é a minha cara: criadores de teatro, L’Academie, e Dreamocracy Foi distinguida no Festival de Cannes pela European Film Foundation como jovem produtora europeia.
Susana Peralta é economista e professora universitária.
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15.00- 15.30 Sarar: Relatos íntimos do corpo na doença e na cura Ensaio para uma conferência-performance Sara Goulart e Susana Sá
Sarar é uma partilha sobre a experiência radical do corpo da mulher na doença e nas tomadas de decisão sobre a cura, em confronto com o olhar das instituições e do outro. É uma proposta de relato documental dramatizado numa exploração sobre tensões e alianças, conhecimento, poder, e terminologia.
Sara Goulart estudou literatura e é produtora cultural.
Susana Sá estudou ciência política e relações internacionais, e é atriz e encenadora.
15.30 – 16.00: Museu Pessoal Gisela Casimiro
Estabelecendo um diálogo entre a arte antiga e a contemporânea, este trabalho faz parte do sonho de construção de um museu pessoal da artista, povoado de reinterpretações de obras de arte mais ou menos reconhecíveis de forma imediata, de fotos de celebridades, ou mesmo de amigos. Enquanto africana (nascida na Guiné-Bissau) a viver em Portugal desde 1988, a experiência de Casimiro é de certa maneira intimamente africana (em casa através da língua, da música, da comida) e externamente europeia (na rua através também da língua, mas também da escola, trabalho e consciência flagrante da diferença). Para a artista, “o espelho talvez una estas duas extremidades”.
A apresentação é feita em conversa com Rodrigo Saturnino.
Gisela Casimiro (Guiné-Bissau, 1984) é escritora e artista, com formação em Estudos Portugueses e Ingleses. Publicou Erosão (poesia, Urutau, 2018) e é cronista do jornal Hoje Macau. Dirige o Departamento de Cultura do INMUNE – Instituto da Mulher Negra. A sua obra fotográfica Museu Pessoal, que questiona e procura redefinir a presença negra nos museus, fez parte de mostras colectivas organizadas pela DJASS (2018) e pela Associação Portuguesa de Antropologia (2019). Faz teatro e voluntariado.
16 -16.45: Pequeno debate e Q&A
16.50 -19 Suzanne Daveau, Luisa Homem Documentário, 2019, Super 8, 119 min
Nas palavras da geógrafa franco-portuguesa Suzanne Daveau “Não há ciência, nem progresso no conhecimento, sem amor, sem paixão, sem identificação, mesmo quando se trata de um tema aparentemente desprovido de vida, como a evolução de uma vertente ou a génese de um aguaceiro. Pode-se, talvez, aplicar rotineiramente uma técnica com pura objectividade, não se pode com certeza descobrir algo de novo sem que o investigador se implique por completo no tema que tenta elucidar”. O documentário Suzanne Daveau traça o percurso de uma mulher aventureira que atravessa o século XX até aos dias de hoje, guiada pela paixão da investigação geográfica. O filme circula entre os inúmeros espaços-mundo percorridos pela geógrafa e os reservados espaços-casa que acolheram a sua vida privada.
Luisa Homem (Lisboa, 1978) é realizadora, montadora, e membro fundador da produtora Terratreme Filmes. Realizou diversos filmes institucionais, e colaborou em vários outros projetos. Realizou a série de treze episódios Um Dia no Museu sobre museus de arte em Portugal, uma produção C.R.I.M. para a RTP2. Corealizou os documentários As Cidades e as Trocas, com Pedro Pinho, e São Tomé e Príncipe: No Trilho dos Naturalistas, com Tiago Hespanha.
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Coisas de lá/Aqui já está sumindo eu: Objetos e Imagens entre Portugal e o Brasil Ana Gandum e Daniela Rodrigues
Entre 2015 e 2017, estas investigadoras manusearam, deslocaram, reproduziram, e desorganizaram souvenirs fotográficos enviados e recebidos por migrantes portugueses entre Portugal e o Brasil até à década de 1970, e objetos que viajaram nas bagagens de portugueses que habitaram o Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XXI. Ao longo deste processo, realizaram Coisas de lá/Aqui já está sumindo eu — uma instalação visual em torno dessas imagens e objetos —, e produziram um catálogo em forma de livro compósito e manipulável. Nesta sessão, as autoras partem deste dispositivo para suscitar associações inusitadas entre coisas, discursos e imagens. Qual o potencial luminoso e solitário destes fragmentos?
Ana Gandum é artista visual e historiadora.
Daniela Rodrigues é antropóloga e colabora com o CRIA - Centro em Rede de Investigação em Antropologia.
A Arte sem História: Mulheres e Cultura Artística Filipa Lowndes Vicente
Reflexão sobre a forma como a história de arte tem vindo a estudar a prática artística feminina, sobretudo na Europa, entre os séculos XVI e XX. Nesse sentido, é também uma história de arte, uma história de como a arte produzida por mulheres foi, durante tanto tempo, ignorada e desvalorizada, ou seja, uma arte sem história. E como, nas últimas décadas, na sequência das abordagens feministas, passou a ser, também, uma arte com história.
Filipa Lowndes Vicente é historiadora e investigadora do Instituto de Ciências Sociais na Universidade de Lisboa.
Estudantes femininas numa aula de desenho com modelo ao vivo, 1900. Herkomer Art School, Bushey, Hertfordshire, Reino Unido.
Do Irreparável, o que pode uma ética de reparação? foto de Fernanda Eugénio.
AND Lab — Arte-Pensamento & Políticas da Convivência Fernanda Eugénio
O AND Lab é uma plataforma de pesquisa que se dedica ao desdobramento contínuo, à transmissão, e à aplicação do Modo Operativo AND (MO_AND), uma metodologia para a investigação experiencial da relação e da reciprocidade, de cunho ético-estético e político. De aplicabilidade transversal às mais diversas áreas – do manejo quotidiano do viver-juntxs à criação colaborativa, das práticas artísticas às práticas de cuidado, do trabalho de mediação ao trabalho de intervenção, do cartografar dos afectos individuais às lutas por transformação e justiça social –, o MO_AND pode sintetizar-se num triplo procedimento: Re-parar, fazer a Reparageme sustentar a Reparação. O compromisso de praticar os conceitos — tornando-os ferramentas e devolvendo-os ao uso de modo direto e no terreno — é o que imprime ao MO_AND o seu carácter singular e amplo. Tem sede em Lisboa e núcleos em Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo e Madrid.
Fernanda Eugénio é antropóloga, artista, investigadora, e docente. Dirige a plataforma AND Lab – Arte-Pensamento e Políticas da Convivência.
Debate.
Leitura de poemas de Mulher ao Mar (Mariposa Azual, Lisboa, 2010) pela própria autora Margarida Vale de Gato. “eu sou esparsa, e a liquidez maciça” é um excerto do poema “Mulher ao Mar”.
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Esbardalhanço Andreia Cunha
A série Esbardalhanço começou como mecanismo de exibição de falha e vulnerabilidade nas redes sociais. Seguindo a opinião de alguns amigos sobre os “efeitos sociais” negativos de expressar o ridículo num perfil não anónimo ou não privado do Facebook (em oposição às imagens de sucesso mais adequadas às responsabilidades profissionais e sociais, como eles diriam), tudo começou por mostrar a literal queda desastrosa. Porém, às vezes, cair pode ser um simples investimento ético.
Andreia Cunha estudou Ciência Política em Lisboa. Foi diretora executiva do Teatro Municipal Maria Matos de 2008 a 2018 e assume a mesma função, desde 2019, no Teatro do Bairro Alto, dedicado a artes performativas emergentes e experimentais.
Modos de Fazer: Uma Agência Anticolonial de Género
Uma projeção com interrupções Rui Vilela
“Desde 2016, tenho vindo a conversar com mulheres da Guiné-Bissau para conhecer as suas perspectivas sobre os modos de fazer o Movimento de Libertação. Anteriormente, conheci Francisca Pereira, Teodora Inácia Gomes e Tchadi Sambu. Mais recentemente, tive a oportunidade de conhecer Brinsam Nassentche, Nhima Turé e Segunda Lopes. Estes diálogos tornaram-se uma possibilidade para articular uma agência anticolonial de género, tal como realizada no cotidiano destas mulheres durante o Movimento de Libertação contra o domínio colonial português. Stephanie Urdang publicara, em 1979, o livro Fighting Two Colonialisms: Women in Guinea-Bissau. No entanto, pesquisas recentes da estudiosa Patrícia Godinho Gomes apontam para uma lacuna historiográfica em relação aos percursos de vida das mulheres no contexto da luta. As mulheres acima mencionadas participaram ativamente na construção de um estado independente: foram combatentes, professoras, enfermeiras, comissárias políticas, e representantes internacionais.
Rui Vilela é um artista independente a viver em Berlim. O seu trabalho foi recentemente apresentado no Neuer Berliner Kunstverein. Está a fazer um doutoramento em música com especialização em Etnomusicologia na
Universidade de Aveiro.
Farsa. Linguagem, Falência e Ficção: Ensaiar a Curadoria Marta Mestre
Uma exposição sobre linguagem, fracassos, e ficção, Farsa (SESC – Pompeia, São Paulo, 2020) cruza a dimensão material dos discursos, a quebra da razão, e a vital fabulação da vida. Ao conectar propostas experimentais das décadas de 1960 e 1970 com artistas que surgiram no século XXI, a exposição enfatiza o poder da linguagem mas também as suas próprias estratégias de desconstrução, como potencial maquinaria. A exposição reúne artistas, escritores, e outros criadores, e cerca de 140 obras de arte históricas e contemporâneas. Apresenta trabalhos gráficos, colagens, poesia visual, publicações, objetos, e instalações que examinam as inter-relações entre linguagem e arte, poesia, política, e problemas de género. A palestra de Marta Mestre, curadora da exposição, aborda os conceitos de farsa e de paródia como meios de questionar o colonialismo na linguagem, e a ideia de uma história em aberto. Como tecer novamente o que é dividido e fragmentado?
Marta Mestre é curadora independente e trabalha em Lisboa e São Paulo. Formada em História da Arte e em Cultura e Comunicação, foi curadora em diversas instituições entre as quais o Instituto Inhotim (Minas Gerais, Brasil), o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Brasil) e a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro (Brasil). É a curadora-geral do Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG).