A música é uma conversa de gente educada: “Mart’nália em África”

Mart’nália e o pai Martinho da Vila cantam com a alma cheia, braços abertos e sempre um sorriso rasgado. Repetem vezes sem conta o refrão da música os “Meninos do Huambo” (letra de Manuel Rui e música de Rui Mingas). Se houvesse alguma dúvida de que ali, naquela roda de semba (semba mesmo, assim quiseram denominar), se comemora as relações com África e especialmente Angola, o amor às origens, basta ouvir a canção que encerra a sessão, o Samba dos Ancestrais, que reza assim: “Se o teu corpo se arrepiar se sentires também o sangue ferver / se a cabeça viajar e mesmo assim estiveres num grande astral / se ao pisar o solo o teu coração disparar / se entrares em transe sem ser da religião / se comeres funje quisaca e mufete de cara-pau / se Luanda te encher de emoção se o povo te impressionar demais / é porque são de lá os teus ancestrais.”

É o regresso à terra dos ancestrais que arrepia e toca fundo no coração dos brasileiros.

Assistíamos à gravação do extra intitulado “Roda de Semba” para o dvd da cantora brasileira Martinália, que acaba de sair. Tudo improviso, com muito samba no pé e alegria. Foi numa tarde de Abril, com feijoada e música no jardim de uma moradia em S. Conrado, Rio de Janeiro. Todas as vozes inconfundíveis, e carismáticas as figuras. Ali marcaram presença Martinho da Vila, Gilberto Gil, Carlinhos Brown e Mayra Andrade, cantora caboverdiana radicada em Paris. E ainda as irmãs Analimar e Maíra Freitas e a sua a sobrinha Dandara Black.

Gilberto Gil abriu as hostes e vibrou quando cantou: “Só quem sabe onde é Luanda poderá lhe dar valor.” E para nos animar a todos com aquele seu jeito de tão bem misturar alegria e poesia: “Anda com fé eu vou que a fé não costuma falhar.” 

Saiu depois um samba-reggae do Carlinhos que não largou a percussão por um minuto, bem acompanhado dos músicos sempre versáteis para as harmonias da MPB. As meninas do coro vão para o centro da roda sambar e as câmaras seguem filmando entre planos da alegria geral, alternando entre o pormenor de um sorriso e umas mãos que tocam firmes e em crescendo. Até que a voz de Mayra Andrade irrompe com uma base de percussão que vai subindo na dolência da sua voz. O coro brasileiro não é imediato a acompanhar o seu crioulo. Ela canta sorridente, confiante, mas não descura o rigor a dar indicações, ensaia mais do que os outros, é menos de improvisar. Repete-se.

O director do documentário diz: “não desperdicem emoção por favor”, quando manda repetir a mesma música. E todos soltam as vozes e rasgam os sorrisos como se fosse a primeira vez que descobrem o prazer de cantar.

João Wainer dirigia a última parte que faltava ao DVD “Mart’nália em África”, e lançado pela Biscoito Fino, que apresenta o concerto “Madrugada” gravado na Ilha de Luanda no Miami Beach (direção, roteiro e coordenação são de Marcia Alvarez) onde Mart’nália teve a participação do músico angolano Yuri da Cunha em duas músicas (Muxima e Mudiakime) e numa dança bem vibrante, como é o seu estilo gingão e cada vez mais dominador do palco. Inicia com Cabide, composição de Ana Carolina que Mart´nália lançou e consagrou no disco Menino do Rio. No palco, a intérprete dá um show de dança, percussão e violão, acompanhada por Alfredo Doca Machado (violão), Fernando Caneca (guitarra), Pedro Moraez (contrabaixo e vocal), Thiago da Serrinha (cavaco, percussão e vocal), Macaco Branco (percussão), Junior Crispin (percussão) e Analimar Ventapane (vocal e percussão). As últimas palavras de encerramento do espectáculo são as de uma Mart´nália emocionada saudando Luanda, Angola, Rio de Janeiro e a Vila Isabel, com Batucada final e Só sei que sou da Vila, de sua autoria.

O CD tem 16 faixas das 19 do DVD, sete delas do disco Madrugada. De grande influência africana, lá está Kizomba festa da raça (Rodolfo de Souza/Luiz Carlos da Vila/Jonas) e a tal participação do Yuri da Cunha. A versão de Mart´nália para a letra de Bob McFerrin, Don´t worry, be happy, e as palavras de Gilberto Gil encerram a festa: “Não há dúvida de que, no Brasil, a África é o fator civilizatório indispensável”. 

O dvd traz imagens do quotidiano moçambicano: um casamento com madrinhas afinadíssimas nos vocais, um baptismo nas praias de Maputo, um jogo de futebol no campo de terra em Quelimane. Ali encontramos depoimentos dos escritores Mia Couto, Manuel Rui, da actriz Regina Casé e dos músicos brasileiros Chico Buarque, Gilberto Gil e Martinho da Vila. É tudo a mesma família. 

A roda de semba complementava então o documentário “Raízes”, inspirado nas andanças por Moçambique e Angola e na relação entre Brasil e África, Mart’nália costura esse enredo a partir da sua própria experiência pessoal com o continente, por forte influência do pai que sempre a levava consigo e lhe falava com emoção das descobertas e semelhanças que lá encontrava.

Mart’nália segue o pai nesta relação sólida e vai por diversas vezes a África e não se cansa de lá regressar (ainda há pouco actuou no Campeonato Mundial na África do Sul). Há qualquer coisa nela que tem muito a ver com aquela forma contagiante das pessoas se reconhecerem e terem prazer em cantar juntas. Quer dizer, esta energia é tão africana como brasileira. 

Filha do sambista Martinho da Vila e da cantora Anália Mendonça, o nome da cantora é a união dos dois. Bem cedo começou a cantar, ela e sua irmã, nas vozes que acompanhavam os sambas envolventes do pai, Martinho. Nos anos 1990, apresentava-se em bares e teatros do Rio de Janeiro, lançando o seu primeiro disco Minh

a Cara, voltado para o samba-canção. A partir de 1994, faz ia parte do grupo Batacotô, com quem lançou o Semba dos Ancestrais.

A sorte de um contacto permanente com grandes nomes da música brasileira fê-la crescer com um grande à-vontade na música. Foi percussionista da banda de Ivan Lins. Caetano Veloso dirigiu artisticamente o seu disco Pé do meu Samba, e Maria Bethânia o Menino do Rio. Mart’nália faz parte da energia do Rio de Janeiro e apesar da sua intensa carreira internacional canta regularmente na sua cidade, bem carioca na alma e no ritmo. 

Ali, naquela tarde em que se sambava em comunhão de várias vozes e músicos, Martinho da Vila descreveu-nos assim o acontecimento: “isto é uma coisa tipo angolana que a gente faz lá, juntamos a gente e todos os ritmos, cada um faz um som. Estamos sempre em entendimento, a música é uma conversa de gente educada, um toca com fala, o outro fica quietinho, um toca e quando faz um compasso o outro improvisa. É uma linguagem universal.” Pergunto-lhe o que vai cantar. “não sei, isso aí acontece na hora”. E saiu os meninos do Huambo.

 

por Marta Lança
Palcos | 5 Agosto 2010 | África, Brasil, mpb, música brasileira, raízes