Sempre estivemos aqui. Cristina Roldão

Cristina Roldão é socióloga, investigadora e professora, o seu trabalho académico debruça-se sobre a memória, justiça histórica e combate ao racismo estrutural em Portugal. Presença firme no debate público, Cristina é uma das vozes mais consistentes na análise crítica das ausências, silêncios e distorções em torno da presença negra no país. É co-autora do livro Tribuna Negra: origens do movimento negro em Portugal (1911-1933), de 2023. Nesta entrevista, partimos da sua investigação e ativismo para pensar a construção de mapas de memória negra e africana, e as formas de resistência, pertença e convivência que desafiam a narrativa dominante sobre Lisboa.

Cristina Roldão, foto de Ana CruzCristina Roldão, foto de Ana Cruz

Que elementos destaca para se fazer um mapeamento da presença negra em Lisboa?

É um tema muito rico e com silenciamentos. Alguns trabalhos têm feito esse mapeamento, tanto académicos como associações, construindo e mostrando outras narrativas sobre esses lugares, normalmente, a cidade de Lisboa, no centro, e tendo por referência o período da escravatura. Os percursos da Lisboa Africana da Batoto Yetu1 e do Naky Gaglo são exemplo disso. Há os trabalhos académicos mais antigos como Os Negros em Portugal: Uma Presença Silenciosa de José Ramos Tinhorão (1988), a história das Confrarias em Portugal, com os vários textos de Didier Lahon. Há também livros importantes de divulgação, como Lisboa, Cidade Negra, do Jean-Yves Loude (2005), ou o Lisboa Africana, do Fernando Semedo, José Eduardo Agualusa e Elza Rocha (1993). Destaca-se o trabalho de investigação e disseminação da Isabel Castro Henriques, com múltiplas publicações, como A Herança Africana em Portugal (2016). No início do século XX, temos o livro do Mário Pinto de Andrade, As Origens do Nacionalismo Africano (1997), que faz toda a diferença ler crescendo em Portugal como afrodescendente, assim como os vários trabalhos sobre a Casa dos Estudantes do Império e sobre o Clube dos Marítimos Africanos, do Filipe Zau.

E sobre a escravatura?

Há a própria historiografia sobre a escravatura em Portugal que, embora importante, tende a considerar as pessoas negras como “africanas”, eternos outsiders, fora do tecido da nação, e a não dar conta do seu protagonismo, a sua agência, formas de organização e configurações sociais próprias. No mais das vezes, as pessoas negras não puderam deixar escritos ou qualquer outro registo do seu universo. Para alguém como eu, académica negra interessada em recuperar essas histórias silenciadas, há sempre um grande trabalho de leitura nas entrelinhas e de desconstrução crítica do material de arquivo e literatura existente.

Que outras modos, mais recentes, de inscrever essas memórias?

As coisas mais recentes têm a ver com o trabalho coletivo, fazendo mapeamento de territórios vividos. Se olharmos para o rap crioulo, há uma referência territorial e comunitária sistemática. As batucadeiras2 são protagonistas através da música, e do espaço predominantemente feminino, também elas com uma forte identificação com os seus territórios de vivência na periferia da Área Metropolitana de Lisboa. E claro, no cinema, na literatura, na poesia, nas artes plásticas, no teatro, na academia, etc. vão surgindo vozes que expressam, recriam essa re-existência negra a partir da sua leitura específica do Portugal do século XXI.

Selecione alguns exemplos de toda essa história de resistência e presença negra.

É muito difícil selecionar. Quando pensamos na presença negra, até ao 25 de Abril, pensamos sempre em Lisboa. Há algumas coisas do Leite de Vasconcelos sobre Alcácer do Sal e dos ditos “pretos do Sado”, cujas pistas foram desenvolvidas mais recentemente por Isabel Castro Henriques. Especula-se que teriam sido para aí enviados porque se acreditava que teriam mais resistência à malária. Portugal era um país de paludismo a sul do Tejo, nas zonas dos arrozais e pantanosas. 

Fez o roteiro sobre A presença negra na cidade de Setúbal – século XV a XVIII. Como foi desvendar a presença negra em Setúbal?

Sobre Setúbal, propriamente, nunca se falava a propósito da presença negra. É uma cidade mais conhecida pelo operariado industrial, as conserveiras, etc. Quando vim dar aulas para Setúbal, e na convivência com a historiadora Ana Alcântara, começámos a pensar que era muito provável que tivesse existido uma presença negra expressiva naquele território, pelo menos desde o séc. XVI. Até pela existência de um porto, da sua proximidade a Lisboa, do tipo de trabalho que existia (atividades piscatórias, portuárias, salinas e agrícolas) e também pela grande dinâmica de conventos e igrejas. Como sabemos da igreja Católica era uma grande proprietária de pessoas escravizadas. Não tínhamos tempo ou recursos para ir analisar exaustivamente fontes e arquivos, e mesmo assim não foi difícil, mal começámos a descascar foram logo aparecendo coisas. Fizemos a pesquisa e desde então visitas guiadas à Setúbal Negra no âmbito do Roteiro para uma Educação Antirracista, uma iniciativa que envolveu uma equipa empenhada de docentes da ESE-IPS. Para além das conferências e da visita, fizemos, com o Pedro Varela e José Pereira, a exposição Para uma história do Movimento Negro em Portugal, 1911-1933.  

O que foi mais emblemático nesta incursão?

Começámos a perceber a presença negra através dos azulejos, documentos de alforrias, legislação (que nunca se faz sem haver um grupo com expressão social que a justifique). São exercícios de juntar peças, quase de detetive. E fomos desembocar na Igreja da Anunciada, que estaria certamente no bairro mais pobre da cidade, o bairro do Troino, que embora não possamos dizer que era uma espécie de Mocambo (da Madragoa), teria muita população negra. A igreja esteve ligada a uma confraria de homens negros, a Confraria Nossa Senhora do Livramento, fundada no início do século XVII provavelmente por pescadores. Dentro do espólio da igreja – das instituições que mais se especializaram em guardar coisas – descobrimos um busto de São Benedito. E ele está no espólio da confraria. Aquele busto quer dizer muitas coisas. O culto significativo a um santo negro numa igreja pode ser indício de que havia ou tinha havido uma forte presença negra na cidade. São Benedito está na Igreja da Graça (em Lisboa) e em Lagos (Algarve), mas também está em igrejas no Brasil, sempre ligado a confrarias e irmandades de pessoas negras. Esse santo era cultuado em Setúbal muito por causa das sezões ligadas ao paludismo e tem a ver com este imaginário do negro resistente à malária. Algumas pessoas brancas também eram devotas, porque se acreditava ser um santo especialmente bom para curar o problema da malária, comum na região. Para mim foi muito importante a descoberta e que se fale disto. Vamos tendo estudos das danças, de rituais, de procissões, toponímia, mas sinto falta de uma rede que ligue estes lugares para que deixem de ser epifenómenos, aqui e ali, e que consigamos ver Portugal negro. A narrativa dominante é que tudo começa nos anos 1980, com a imigração. Mas fui vendo os sinais, as contradições e incompletudes da narrativa… e, já enquanto investigadora, fui percebendo que é uma longa história, com muitas camadas e mais “espalhada” do que se pensa.

Que outro lugar fora de Lisboa-centro manifesta estes sinais?

Outro lugar pouco falado fica no Palácio Nacional de Sintra. Desde 1850 e tal, há um mapa que refere o dito Jardim da Preta, onde vemos um relevo de uma mulher negra numa posição algo dramática com um homem branco que parece aproximar-se; entretanto, esse relevo, já foi muito retocado. Não se percebe se ela está assustada com a presença dele, se há uma situação de corte nos bastidores da vida do palácio, se é uma cena típica da relação de desigualdade e violência dos homens brancos com as mulheres negras. É uma imagem violenta, sobre a qual é preciso fazer uma história decolonizada.

A partir dessa imagem, a Ana Alcântara e eu começámos a puxar o fio do novelo, tentando perceber a época. O Palácio Nacional de Sintra está atravessadíssimo pela história colonial, os relevos, a esfera armilar por todo o lado e o cultivo de um certo misticismo colonial com ligações ao mito do Quinto Império com D. Sebastião. Encontrámos documentação sobre os negros caiadores das chaminés de Sintra, alguns seriam escravos de ganho, e de pessoas escravizadas nas obras. Houve financiamento de obras de reconstrução do Palácio com os dinheiros ligados à Casa da Mina. Sintra apresenta-se sem sinais de presença negra, uma vila branca, super eurocêntrica e aristocrática e depois percebe-se como está ligada à exploração de pessoas negras. Tudo isto tem de ser institucionalmente reconhecido.

E, ainda, um terceiro lugar.

Na Quinta das Conchas e dos Liláses tens o que alguns dizem ser uma casa assombrada, assombrada por uma mulher negra que foi trazida de São Tomé por Francisco Rendeiro, um roceiro, fazendeiro de São Tomé, profundamente ligado ao trabalho forçado, escravocrata. Diz-se que terá nascido uma filha e que aquela mulher terá vivido parte da sua vida numa jaula de dois por um metro, em parte dessa casa. Mas isto é o que se diz, é preciso ir investigar.

Como chegou à história dessa mulher?

Estou sempre atenta a pistas que possam surgir. O registo não está propriamente escondido, às vezes está até no centro da mesa, mas ninguém seleciona como elemento relevante. É uma história que circula, por aí, em blogues, páginas de internet e em conversas, que nos remete para o meio do século XIX. Do ponto de vista histórico, há pouco tempo. Ser uma história de uma mulher também é interessante, porque temos pouco, a não ser como figuras-tipo, as calhandreiras, as vendedoras de tremoço, uma ou outra figura, como a Fernanda do Vale3. Mas está aí uma geração que tem de contar esta história, do ponto de vista negro e feminista negro. Os homens ocupam sempre mais o espaço da narrativa e as mulheres acabam nas margens. Mesmo as Confrarias, sendo de “homens”, as mulheres tinham importantes atividades conexas, como as eleições das Rainhas do Congo4, na vivência recreativa e comunitária.

Que lugar elege para reforçar esta relação da cidade com a história colonial, fazendo ligações contemporâneas para a memória coletiva?

Há tantas coisas que gostaria de fazer… Acho importante não confundir, embora ambos sejam contranarrativas ao eurocentrismo, aquilo que são trabalhos de memorialização da história negra em Portugal, com trabalhos de crítica à narrativa colonial das políticas de memorialização. Pensando neste último caso, eu elegeria o Cais das Colunas, não consigo passar por lá sem imaginar uma caravela ao fundo e a chegada de pessoas negras escravizadas àquele terreiro. Aquelas colunas são como dois fantasmas que não se deslocam e dizem que isto aconteceu aqui. Tal como local proposto pela DJASS para o Memorial às Pessoas Escravizadas … acredito que um dos factores que mais tem impedido o projeto de se efectivar é o facto de se ter escolhido esse local tão essencial para narrativa dos Descobrimentos e à identidade nacional.

Mas não tem qualquer referência, é um postal turístico…

No meu imaginário é aqui a entrada. Quando vejo o quadro do Chafariz del Rei, sei bem que é mais ali entre Alfama e o Campo das Cebolas, mas imagino um terreiro atravessando toda aquela zona. Nos últimos anos (desde 2017) tem havido anualmente a cerimónia Tributo aos Ancestrais no Cais das Colunas, organizado pelo José Baessa de Pina e o Aristóteles Kandimba5, com grupos de batucadeiras, de música de Angola, entre outras coisas. Sentimos a conexão da história a partir daquele lugar. Em Lisboa quase não temos isso, expressões contemporâneas da relação entre os negros que estão aqui hoje e os negros que cá estiverem. Não somos como os EUA ou o Brasil onde há uma continuidade genealógica. O Brasil, por exemplo, tem instituições com séculos, como o candomblé e os quilombos, através das quais conseguem recompor essa história. Aqui a história está partida, o imaginário é que tem de fazer essa ponte. Em Portugal, as narrativas de orgulho e nostalgia colonial, umas vezes mais disfarçadas do que outras, são dominantes, mas por vezes, mesmo nos trabalhos que procuram criticar e não reproduzir esse imaginário, persiste o olhar branco, arrependido, mas sempre no centro da história. Mesmo quando bem feito, isso não substitui a necessidade que temos de conhecer esta história de um ponto de vista negro.

Nos Tributos aos Ancestrais, há sempre uma maioria de mulheres, algumas chegadas aqui entre os anos 1960s e 1990s e com familiares em algum grau que foram trabalhadores contratados nas plantações em São Tomé, por exemplo. Há pessoas negras brasileiras e elas sabem que as suas bisavós e antes delas, foram escravizadas. Há também crianças pequenas e, infelizmente, elas já terão experienciado o racismo anti-negro, uma continuidade contemporânea da escravatura e do colonialismo. Há pessoas brancas que se juntam, outras que passam e, se forem portuguesas, uma parte significativa delas tem familiares “retornados” e “ex-combatentes” da guerra colonial. O passado não está assim tão longe, nem assim tão morto. No final, lançam-se flores ao rio Tejo e esse é um momento muito tocante. Esta história e pessoas são dignas de ser lembradas e Portugal precisa ver-se completo, sem esqueletos no armário.

E que outro lugar a memorializar?

Talvez a própria casa da Quinta das Conchas, mas essa é só uma ideia solta. Ou se calhar, não. Podia-se reabilitar o edifício e fazer dele um lugar para debater a mulher negra em Lisboa, um arquivo que reunisse os jornais antigos e o máximo de documentação da Lisboa de 1500 até hoje. Saber quem foi esta mulher, que supostamente assombra e foi violentada nesta casa. Mas também quem eram as mulheres da Casa dos Estudantes do Império, quem foram as mulheres que estavam nas escadas vendedoras, nas escadas do Hospital do Rossio (em 1707), a quem a guarda estava sempre a bater e a destruir o que elas traziam. Estas mulheres organizaram-se e fizeram uma petição sobre a violência policial, reivindicando o direito ao lugar de trabalho, com os argumentos que têm muitas ligações à atualidade, dizendo: nós sempre estivemos aqui, somos daqui!

 

Originalmmente publicado no ReMapping Memories.

  • 1. A Associação Cultural e Juvenil Batoto Yetu Portugal trabalha com jovens e crianças interessados na cultura africana, provenientes de meios económicos mais ou menos desfavoráveis. A filosofia da associação baseia-se na convicção de que, independentemente das condições económicas e sociais de cada pessoa, o (re)conhecimento e valorização das suas raízes culturais é um fator essencial para a consolidação da sua autoestima e sentimento de pertença.
  • 2. Intérprete ou executante de batuco (género musical cabo-verdiano baseado na percussão e no canto)
  • 3. Fernanda do Vale, conhecida como “Preta Fernanda” (1859–1927), foi uma cortesã e figura célebre da sociedade no fim do século XIX Lisboa.
  • 4. Prática de comunidades negras escravizadas, em Portugal, no Brasil e noutros lugares. [Nota da entrevistadora].
  • 5. Escritor português de origem angolana, escreveu O livro dos nomes de Angola, onde compila nomes tradicionais de quase vinte idiomas diferentes do país.

por Marta Lança
Cidade | 21 Setembro 2025 | Cristina Roldão, Lisboa, presença negra, Quem mora nesta Buala