“Europa Oxalá”, tales of Europe

Culminar de uma longa pesquisa

“Moro em Lisboa e vivo em São Tomé. Ser europeu representa o homem novo no contexto global”, frase de uma fotografia da série Afro Descendentes, de Pauliana Valente Pimentel, uma das artistas portuguesas da exposição Europa Oxalá. Disse-a o artista René Tavares, fotografado no seu ateliê na Amadora de pinturas amplas e plenas de liberdade, cobrindo o rosto com uma máscara de tchiloli. Na série, para além de René, observamos os retratos das atrizes Isabel Zuáa, Nádia Iracema, Cléo Tavares e dos artistas Cristiano Mangovo e Acuã Pessoa. Todos eles são contributos, pelo seu trabalho, postura e histórias de vida, para que reconheçamos o país pluriracial, transidentitário. Todos eles e muitos mais nos lembram como é urgente valorizar-se as estórias que nos enformam como Europa, as suas problemáticas e qualidades.

Ao visitarmos a mostra coletiva Europa Oxalá ficamos, precisamente, com uma ideia mais vívida e premente sobre o poder criativo, as questões, preposições e desafios da contemporaneidade europeia. A noção de Europa afigura-se tanto mais coincidente com a sua realidade, como com os desejos e memórias diversas que a compõem. Na sala expositiva da Fundação Calouste Gulbenkian, percorremos as 60 obras em linguagens como pintura, desenho, escultura, filme, fotografia e instalação, de artistas cujos nomes não são uma mera lista mas fonte de conhecimento sobre identidades, descolonização, xenofobia, racismo, processos migratórios de pessoas, mundos e arte. Aimé Mpane, Aimé Ntakiyica, Carlos Bunga, Délio Jasse, Djamel Kokene-Dorléans, Fayçal Baghriche, Francisco Vidal, John K. Cobra, Katia Kameli, Mohamed Bourouissa, Josèfa Ntjam, Malala Andrialavidrazana, Márcio Carvalho, Mónica de Miranda, Nú Barreto, Pauliana Valente Pimentel, Pedro A. H. Paixão, Sabrina Belouaar, Sammy Baloji, Sandra Mujinga e Sara Sadik, todos eles figurando na cena artística internacional, representados em galerias e museus.

São europeus com forte ligação a Angola, Madagascar, Cabo Verde, Congo, Benim, Guiné, Argélia, Burundi, muitas vezes falando as línguas destes países, e residem sobretudo em Portugal, na Bélgica e na França. As suas propostas não ancoram na questão territorial, quanto muito serão transterritoriais. De modo geral — e faz parte do jogo generalizar obras diversas numa exposição coletiva —Europa Oxalá inscreve histórias pessoais (enquanto ponto de vista de si para o mundo e para o outro) numa ideia de comunidade de vasos sanguíneos, onde essa mesma história de cada um circula e se dá o reconhecimento do lugar fluído de onde elas partem, se encontram ou se projectam. Sem produzir um discurso excessivamente didáctico, contribui para refletirmos sobre a Europa de hoje, porque “a arte não repara as feridas da história, mas é um campo fundamental para pensar a política do presente”, como escreveu Carla Baptista a propósito da exposição no Le Monde Diplomatique.

Com co-curadoria de Aimé Mpembe Enkobo, Katia Kamelie e António Pinto Ribeiro, faz sentido que esta exposição sobre trânsitos na e para a Europa, circule precisamente pelo velho continente: inaugurada em Marselha (no Musée des Civilisations de l’Europe et de la Méditerranée), esteve presente na Gulbenkian, em Lisboa até 22 de agosto de 2022, e seguiu para o AfricaMuseum, em Tervuren, na Bélgica.

Um dos aspetos interessantes é o seu timing oportuno, quando se vai debatendo a descolonização de instituições, museus, restituições e reparações. As obras e os artistas escolhidos contribuem para desarrumar a, sempre problemática, classificação de “arte africana”, enquanto arte de determinado nicho. Por outro lado, a exposição promove artistas que têm África na sua vida europeia e contribuem para o processo salutar de africanização da Europa (desde sempre africanizada), dando uma visão de conjunto sem se circunscreverem ao horizonte expectável e redutor quando aglomerados enquanto artistas africanos ou afrodescendentes. Segundo o curador português, António Pinto Ribeiro, Europa Oxalá assinala precisamente “o momento ideal para desobstruir o mito colonial e a melancolia pós-colonial designados como ‘arte africana’”.

Outra nota muito positiva é a forte representação de artistas mulheres, sendo o estatuto da mulher na sociedade contemporânea uma das agendas da exposição. Os modos de produção, de discursividade e de crítica, as linguagens sincréticas aqui utilizados são pistas para percebermos o mundo contemporâneo.

Imagem da exibição. ©Pedro Pina/Fundação Calouste Gulbenkian.Imagem da exibição. ©Pedro Pina/Fundação Calouste Gulbenkian.

A Pós-Memória: não vivi o problema mas ele ocupa-me

Europa Oxalá insere-se no Memoirs — Filhos de Império e Pós-memória Europeia, um abrangente projecto científico dirigido por Margarida Calafate Ribeiro (Centro de Estudos Sociais, de Coimbra), que nos deu a conhecer visões e pensamentos de artistas “da pós-memória”, que partilham a herança colonial. Dele resultaram centenas de artigos, entrevistas, publicações, entre as quais os livros Novo Mundo: Arte Contemporânea no tempo da pós-memória (do investigador e programador Pinto Ribeiro), o dá para ficar parado: Música afro-portuguesa. Celebração, conflito e esperança, do jornalista Vítor Belanciano e um livro homónimo da exposição com ensaios de Amzat Boukari-Yabara, António Pinto Ribeiro, António Sousa Ribeiro, Ariella Aïsha Azoulay, Cécile Bourne-Farrell, Christine Bluard e Bruno Verbegt, Fabienne Bideaud, Lisette Lombé e Margarida Calafate Ribeiro.

Esta importante exposição, acompanhada por intenso programa cultural e educativo em diálogo com os temas e as obras destes artistas (o que se torna fundamental pois na exposição em si não há muita informação) é, assim, o culminar da pesquisa de Memoirs. Será desde logo fundamental explicar um pouco a ideia de pós-memória, a condição nada hegemónica de quem partilha experiências traumáticas não directamente vivenciadas, transmitidas profundamente em ambiente familiar. Os artistas de segunda e terceira geração de países africanos, ex-colonizados, são afectados por tais memórias “em diferido”, indiretamente, entre recordações de vivências familiares e de amigos, que lhes transmitem histórias, imagens e práticas culturais das suas culturas de origem. Famílias que, muitas vezes, atravessaram o colonialismo, processos de descolonização, guerras coloniais e civis, migrações, exílios, deslocamentos vários, algumas violências – simbólicas e na pele -, e vivem a Europa numa condição híbrida, e formatados em paradigmas hierarquizantes que resultam da questão colonial. Dessas imensas e variadas experiências, os artistas retiram matéria para a sua produção artística e reflexão original, ressignificam arquivos pessoais ou institucionais, narram as suas identidades compósitas, fazem da inteligência e criatividade as ferramentas para superarem traumas familiares e coletivos. Dão-nos a ver certos ângulos e assuntos com as devidas personalização e subtileza que não encontramos nas agendas das efemérides, programas políticos ou em conceitos, abstratos e distantes, como interculturalidade, inclusão, descolonização das mentes e das cidades.

Imagem da exibição. ©Pedro Pina/Fundação Calouste Gulbenkian.Imagem da exibição. ©Pedro Pina/Fundação Calouste Gulbenkian.

Desejo de futuro e a alteridade possível

O auspicioso título Europa Oxalá funciona pela força fonética e semântica. “Se deus quiser” Insha’Allah em árabe, ou “oxalá” de “esperemos que sim”, carregando desejos de futuro para a Europa de hoje. Que se assuma a dita condição pós-colonial, que se ultrapassem as assimetrias racistas e de poder. Que se apunhale de vez a hegemonia branca.

Porém, estes trabalhos não se situam no plano da denúncia nem do ressentimento mas mais na dita reparação. Não se assinala uma qualquer nostalgia de regresso às origens, antes o gesto de afirmação da riqueza cultural que os constitui e que está inevitavelmente ligado a uma mudança de paradigma da concepção e vivência da Europa1. Se é verdade que as heranças culturais destes artistas contribuem, em tensão e perspectivas, para o cosmopolitismo da Europa, também nos revelam as várias faces da dita interculturalidade europeia, mostrando as contradições da modernidade, do capitalismo global e dos cânones artísticos e de conhecimento (ainda marcadamente eurocentrados). Por exemplo, ao conjugarem linguagens contemporâneas com processos tradicionais e modos de saber das suas origens.

Movida por curiosidade e interesse nestas questões, fui tentar perceber melhor sentidos artísticos e reflexivos para o que estava a observar na exposição que decorreu na Gulbenkian.

Quase no final da sala, encontramos peças de artilharia em cobre usadas na Bélgica nas Guerras mundiais, a fazer as vezes de vasos para flores. Num país que fez de ícone revolucionário é o cravo na espingarda, pode não ser original. No entanto, estas flores, envoltas pela visão dos jardins frescos da Gulbenkian, são originárias das zonas mineiras de Katanga, na República Democrática do Congo, onde o conflito há décadas se mantém aceso. Assim, a instalação de Sammy Baloji, artista congolês que reside na Bélgica e organiza a Bienal de Lubumbashi, convoca a violência do passado colonial e a atual: ocupação, guerra, extorsão, feridos e refugiados, assim como as consequências drásticas da força das armas e da militarização do mundo, que vem crescendo. Ou seja, a desconstrução da história colonial pode contribuir para a descolonização do mundo.

Em Dada (2018), escultura da artista de ascendência argelina Sabrina Belouaar (Paris, 1986), vemos dois punhos em gesso (punhos fechados de revolta e de luta) com um cinto, que aqui perde a sua função de sustentar, para oprimir, castigar. Lemos que a obra convoca a memória do pai, operário numa fábrica de cintos. Além da escultura, Belouaar surpreende com a fotografia The Gold Sellers, na qual se destacam as mãos de uma mulher argelina com anéis de ouro. Acrescentando o contexto, a imagem ganha mais força. Em alguns países islamizados da África ocidental, as mulheres sofrem a dupla opressão da família e da sociedade sendo deserdadas e descriminadas ao mínimo desvio do guião de conduta (por exemplo, por insinuações de adultério). Quando saem de casa, transportam no seu corpo, aquilo que podem, vendo-se forçadas a vender as jóias fazendo do seu único património o seu negócio.

A percepção crítica da Europa, por Aimé Mpane, tem em Ngunda (2018-2020) uma potência. Nesta obra, a bandeira da União Europeia apresenta um rasgão central, uma espécie de silhueta da Virgem. À volta do “buraco” as estrelas comunitárias são narcisos amarelos e, na base, estão pneus quadrados, logo inviáveis. Mpane põe em causa a sacralização da autoridade da União Europeia, as suas orientações, ‘tratados’, hierarquias e ameaçadas fundações: a paz e a democracia. Outras obras que contribuem para ressignificar o conhecimento ou a percepção, sempre subjectiva, que possuímos do mundo são as cartografias de Malala Andrialavidrazana (origem de Madagascar), como Figures 1883, Reference Map for Business Man ou Figures 1876 ou Planisphere Elementaire. Em entrevista no site da Fundação C.G. a artista, que associa atlas regionais e mundiais e referências como capas de discos que marcaram a sua geração, refere que quis mostrar “como certos atores do mundo tentam puxar os cordelinhos para proveito de um número muito reduzido de pessoas em vez da maioria”.

Na linha dessa visão macrogeográfica, Fayçal Baghriche, de origem argelina, concebeu um globo que gira ininterruptamente, a tal velocidade que os contornos continentais e geográficos de cada país ficam esbatidos e em vertigem, num gesto de tornar insignificantes as identidades nacionais e as bandeiras. Na entrevista sobre a exposição, Baghriche regista que esse globo frenético se torna “um mural onde desaparecem as nações e só ficam as estrelas, como o apagamento das diferenças.” Defendendo uma posição globalizada e geral da arte: “não podemos ficar circunscritos a certas práticas artísticas da nossa região” ou a “reivindicar a todo o custo uma cultura de pertença”.

Djamel Kokene-Dorléans, artista que trabalha a partir do minimal, fala na entrevista sobre a sua escultura de um par de sapatos invertidos encimados por cimento, como se imaginássemos o desaparecimento de um corpo, “uma metáfora da pré-história, a nossa pedra pessoal, é a rocha do humano moderno”. A instalação faz parte da série No Reason, que faz uma referência filosófica e à multiplicidade de razões para as coisas que Witgenstein defendeu.

E passamos para as palavras do artista John K. Cobra a partir do conceito “de transarquitetura, que tem uma fluidez radical, transcultural, nacional e de género. Que os seres humanos têm de arranjar o espaço e o tempo, as oportunidades e também os rituais onde possam explorar diferentes facetas da sua identidade sem restrições ou categorizações que foram instauradas pelo capitalismo, imperialismo, etc. A arte como uma forma de olhar para espaços de negociação entre seres humanos mas também objectos.” Na defesa da fluidez e perfomatividade das identidades, volúveis e transgressoras, está a escolha de materiais para alguns dos seus trabalhos, como a borracha do Congo que, no tempo colonial, era um símbolo de poder e de domínio. Cobra esculpe corpos cobertos de borracha que traduzem o movimento, utiliza Kwanga (um pão consoles e também símbolo de vida), cabeleiras, couro, latão, para criar contraimagens às estratégias de opressão das identidades e violências coloniais e do capitalismo.

Sento-me a assistir ao vídeo de Katia Kameli, uma realizadora que tem refletido sobre a mestiçagem colonial. Le roman algérien (2016), mergulha na história e memória argelinas, levando-nos a uma rua de Argel, onde Farouk Azzoug e o filho têm um quiosque visualmente cacofónico. Ali se vendem postais antigos e todo o tipo de fotografias. Através dessa coleção aleatória forrada a plástico, viajamos pela arquitetura, anúncios vintage, marcas, personalidades argelinas ou de visita, ícones de toda a espécie. Essa mistura iconográfica permite-nos entrar na história do país através de ligações subjectivas entre temporalidades e referências, tecidas pelos entrevistados argelinos.

Por fim, obras mais ligadas às tecnologias e cultura digital. Camouflage waves #2 (2018), de Sara Sadik, mostra a impressão a tinta sobre filme da imagem do coreógrafo Adrian Blount, à qual se acrescenta uma textura plástica dando a impressão de que o corpo se vai dissolver. A artista multidisciplinar francesa Josèfa Ntjam tece ficções neofuturistas de imaginários em que tecnologia digital é relevante. No vídeo Mélas de Saturne (2020), são tecidas, numa viagem mitológica, associações entre negritude, o termo grego mélasdarknet e virtualidade.

Imagem da exibição. ©Pedro Pina/Fundação Calouste Gulbenkian.Imagem da exibição. ©Pedro Pina/Fundação Calouste Gulbenkian.

Artistas de língua portuguesa e linguagem universal

À entrada da exposição, a série de imagens Tales of Lisbon, de Mónica de Miranda chama logo a atenção. Sigo a montagem acompanhada pelas palavras dos escritores Djaimilia Pereira de Almeida, Kalaf Epalanga, Yara Monteiro, Ondjaki, Telma Tvon, convidados a escrever a partir de objectos e pertences que ficaram perdidos e desamparados depois da demolição das casas. Despossuídos da aura sentimental, despojados das suas funcionalidades e pertenças, vemos disquetes, malas, sapatos, bonecas e cadernos corroídos pelo tempo. Esta instalação sonora e visual remete para a violência psicológica e social que é a perda de uma casa, de um bairro, de uma geografia, da memória. Remete para o não garantido direito à habitação e à dignidade da mesma, o modo desigual como cidadãos são tratados. As noções de pertença, de família, de histórias das “periferias” são aqui afloradas de modo poético e despretensioso, recriando a experiência pela sugestão em situações, infelizmente ainda tão recorrentes, nas áreas metropolitanas. A artista Mónica de Miranda tem trabalhado em vários bairros captando imagens na construção de um arquivo documental-artístico sobre as transformações da paisagem humana e urbana, nomeadamente nos bairros do Talude, Azinhaga dos Besouros, Fim do Mundo, Mira Loures, 6 de Maio e outros, maioritariamente habitados por africanos e afrodescendentes.

Do artista angolano Délio Jasse, que vive em Itália, pudemos ver o mural Terreno ocupado composto por 24 imagens azuladas, trabalhadas por emulsão. Jasse conta que, desde o seu regresso a Luanda, após 12 anos sem lá ter ido, fotografou “como se fosse um anónimo que não conhecesse a cidade, concentrado na arquitetura”. Jogando com as questões territoriais, a arquitetura que vem desaparecendo para dar lugar à arquitetura recente, os processos de desocupação (casas deixadas pelos portugueses) e ocupação, vemos as confluências culturais de Luanda atual e descontinuidades territoriais e de regimes.

O artista Márcio Carvalho, de uma família multiracial de angolanos e portugueses, vive em Berlim e apresenta dois desenhos da série Falling Thrones, nos quais Josina Machel e Patrice Lumbumba, como se fossem atletas, confrontam as estátuas do Rei Leopoldo II e D. João I. As estruturas de poder dos jogos olímpicos e toda a competição desportiva aparecem como metáfora para a combate anticolonial entre figuras icónicas das independências e os símbolos da opressão colonial.

Também nos prendem os desenhos de Pedro A. H. Paixão (Angola, 1971). Em La Lupara (2020) vemos uma mulher mestiça sentada numa cadeira, um retrato a lápis de cor a partir de uma fotografia da bisavó do artista. O olhar fixo e altivo destabiliza-nos, como se de uma raiva cansada se tratasse, assim como a arma que as suas mãos de dedos e unhas longas carregam.

Artista da Guiné Bissau, vivendo em Paris há muitos anos, o pintor Nú Barreto vai fixando as memórias em suporte de cartão, na série Traços, Diário (2020), um mosaico de pequenas pinturas. Nota-se a influência da banda desenhada nas sequências e na composição, nos contrastes, da caracterização das figuras de braços negros, quase sempre desequilibradas e aflitas. Em entrevista a Sumaila Jaló no portal BUALA, o artista contextualiza esta série como um desafio auto-imposto: desenhar diariamente “tudo quanto passava pela cabeça”. Numa primeira fase, preocupou-se com “as consequências do confinamento, assim como o retorno da Humanidade. Durante a criação dessas obras num contexto vedado de particularidades, sendo artista, o confinamento/isolamento não era algo de novo. A minha vida é completamente isolada, exigida pelas necessidades profissionais. Embora essa especificidade do meu trabalho, acabei por sentir, numa determinada altura, o peso do confinamento, mesmo com o privilégio de ter tudo à minha volta. Na segunda fase dos desenhos em torno da problemática do confinamento, interessei-me pela questão da liberdade dos seres num espaço confinado. Questionando: para que serviria um pequeno ou grande espaço sem liberdade? A ideia é propor ou abrir um diálogo em torno da questão do Excesso e do Escasso.”

Já Carlos Bunga trabalha com materiais pobres como o cartão fazendo um abrigo improvisado, a caixa vulnerável, a ruína, opondo à monumentalidade e à acumulação e espetacularização, a estétitca do anti-monumento, e seu enfoque para a marginalidade.

As já referidas fotografias de Pauliana Valente Pimentel de afrodescendentes portugueses dialoga com a série Nous sommes Halles (2002–3) de Mohamed Bourouissa. São retratos de jovens da banlieu parisiense que se reunem no histórico shopping Lei Halles, que mostram orgulhosamente o seu estilo e vestuário streetwear. Lemos que este projeto interage com o livro Back in the Days, de Jamel Chamazz, que documentam o início da cultura hip-hop em Nova Iorque na década de 1980, no Brooklyn, Queens ou Harlem, trazendo as tendências e o breakdance. Também na linha de cultura pop, a pintura gritante de Francisco Vidal, com as suas figuras, rostos, traços, palavras e música, poesia e afirmação.

Imagem da exibição. ©Pedro Pina/Fundação Calouste Gulbenkian.Imagem da exibição. ©Pedro Pina/Fundação Calouste Gulbenkian.

Práticas artísticas emancipadoras e agentes da cultura

Porque é que analisar as tendências da arte ajuda a pensar o momento que vivemos? António Pinto Ribeiro reforça, no seu livro Novo Mundo: Arte Contemporânea no tempo da pós-memória, que estes projectos artísticos insistem em revistar e desconstruir narrativas coloniais, em rejeitar a História firmada na monumentalidade e heroicidade, em inspirar-se nos debates feministas, ecológicos, em sublinhar a descriminação, racial e cultural através de histórias pessoais, em investir contra a colonização de imaginários, contra o racismo. Sem desprezar as tensões e violências de uma região que sempre se tomou por universal, encontramos na Europa, em contextos de liberdade, incríveis manifestações de afropolitanismo enquanto movimento cultural que faz de África o ponto de encontro de distintos movimentos migratórios.

Muito do mundo na composição da Europa fez-se precisamente das culturas do mundo inteiro, normalmente com a arrogância de sugar todos os saberes e força de trabalho. Assim, uma exposição com tamanha força emocional, de memória e de experimentação artística, contribui sim para a descolonização das artes e de uma certa ideia de mundo a partir da Europa. Europa Oxalá abre caminho para o reconhecimento das multiplicidade das memórias e o que ainda temos de percorrer numa Europa com tantas ambições e problemas.

Mais info sobre a exposição e entrevistas aos artistas.

Notas

1. Este artigo foi escrito quando a exposição Europa Oxalá esteve patente na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, Portugal, de 4 de março a 3 de agosto de 2022.

2. A exposição encontra-se ainda no AfricaMuseum, em Tervuren, Bélgica, de 7 de outubro a 5 de março de 2023.

Artigo originalmente publicado por World African Artists United a 11/10/2022.

  • 1. Vale a pena perceber o que Achille Mbembe diagnostica como mudança de paradigma na Europa que sempre se considerou o centro do mundo. “Por muito tempo, a Europa deixou-se embalar, quase sem restrições, por ilusões. Não decretara ser o único lugar onde a verdade do homem seria desvendada? O mundo inteiro estava à sua disposição. Na modernidade, a Europa passou a acreditar que a sua vida e a sua cultura, contrariamente a outras civilizações, eram movidas pelo ideal de uma razão livre e autónoma. Isto fizera dela o continente fulcral na história da humanidade, enti-dade simultaneamente à parte e omnipresente, ser universal e manifestação por excelência do Espírito. Para retomar as palavras de uma célebre crítica, a Europa tudo sabia, tudo possuía, tudo podia e tudo era.” In Mbembe, Achille, Brutalismo (Antígona 2021)

por Marta Lança
Vou lá visitar | 27 Dezembro 2022 | África, bienal de lubumbashi, desenho, escultura, Europa, europa oxalá, filme, Fotografia, Fundação Calouste Gulbenkian, instalação, pintura, pos-colonialismo, Pós-memória