Tambor rebentando o silêncio amargo, a vida cultural na Mafalala
É já ali a caminho do Aeroporto, quando acaba a avenida Mao Tze Tung e a cidade de Maputo vira subúrbio. Já não se avistam brancos e adensa-se a maralha no Mercado Estrela Vermelha, onde se pode comprar garrafões de tinto e reaver retrovisores roubados na noite anterior. No mundo suburbano, enfileiram-se as casas de zinco e adobe, a poeira levanta mais e o espírito de bairro consolida-se. Entramos no bairro Mafalala por uma vala de esgoto onde “ou te agarras bem à parede ou podes lá cair”. Procuramos o bar do Lima onde combinámos com o rapper Matesh. “É um corta-mato para o bar” diz o rapaz, de óculos escuros e t-shirt do Brasil, que nos leva ao lugar onde se encontram os músicos. Já vamos com a fasquia alta para conhecer Mafalala, associada a grandes figuras do panorama artístico, político e desportivo moçambicano.
O bar do Lima é uma entre tantas casinhas próximas umas das outras. Lá dentro as paredes pintadas a azul-forte harmonizam com castanhos, os bancos são os que sobejaram dos sempre sobrelotados “chapas” (transportes colectivos), as garrafas da cerveja Laurentina acumulam-se junto aos convivas e as guitarras ligam-se aos amplificadores. Garanto que ouvi cantar o “Estrela d’Alva” do Zeca Afonso com improvisação em Xangana e garantem-me que o bairro continua a lançar jovens promessas da música.
E é só estrelas no Mafalala. O músico Fanny Mpfumo e o poeta José Craveirinha ali criados. O ponta-de-lança das vanglórias benfiquistas Eusébio dá os primeiros toques de bola no campinho junto à movimentada rua de Goa, epicentro do Mafalala. Nascido em Gaza e trabalhando como enfermeiro, Samora Machel e seus companheiros de luta Joaquim Chissano e Pascoal Mocumbi - ex-presidentes e primeiro ministro de Moçambique - passaram por lá uns tempos enquanto estudantes.
Além da influência árabe da comunidade muçulmana proveniente das Ilhas de Moçambique, Zanzibar, Comores, ali se falam línguas como xangana, ronga, chope, macua e maconde, o inglês do rap e da Tanzânia ou o português anglicizado do moçambicano. Multi-étnico, com manhambanes, goeses, machanganes, zambezianos, beirenses, tetenses, europeus pobres, mestiços, indianos e chineses a prefazerem o tal mosaico cultural. Multireligioso, com mesquitas, igrejas protestantes, universais e pentescostais e todo o tipo de seitas. O folclore e ritmos tradicionais tiveram muita expressão no bairro que deve o seu nome à dança macua “Li-Fa-la-la” praticada pelos que vinham da Ilha de Moçambique traduzido em ronga por Ka Mafalala, “onde se dança M´falala”.
Todo este potencial do bairro mais antigo da cidade de Maputo, combinado com o mundial de futebol mesmo ali ao lado que trará turistas da África do Sul, afigurou-se uma “grande oportunidade de negócio, principalmente por Eusébio ter nascido no bairro”, e para dar a conhecer este mundo a quem vem de fora, diz Ivan, da associação Iverca, que trabalha em educação ambiental e “turismo como irradicação da pobreza”. A história do bairro da Mafalala faz-se ainda muito de relatos orais, por isso um passeio para ver pelos seus olhos, ouvir com os seus ouvidos e sentir tudo o resto será melhor do que ler esta reportagem. À semelhança dos autocarros cheios de turistas que desfilam pelo Soweto em Joanesburgo, ou na Rocinha do Rio de Janeiro, ou o passeio por uma Cova da Moura étnica, também aqui se inaugura o “turismo do gueto”, suburbano ou ainda comunitário.
À parte as opiniões divididas quanto a ser favorável para a comunidade ou que relação pode o turista estabelecer com esta realidade, temos como atractivo um bairro de 21 mil habitantes, com 4300 agregados familiares em casas de madeira ou zinco, algumas poucas com água canalizada - queixa-se do preço quem tem de comprá-la em bidons - também se pode comprar energia a retalho ou cozinhar-se a carvão, um saneamento muito precário e grandes problemas de circulação quando chove e tudo fica alagado. O nível de desemprego é alto, a escolaridade baixa, não dispensa alguma criminalidade e zonas perigosas, mas também há gente a viver razoavelmente e com prédios na parte da Mafalala-cimento. Não esquecer que este era um bairro de “assimilados” no tempo colonial e sempre teve mais estruturas que outros. Não será importante tornar acessíveis realidades, oferecendo-lhes um programa cultural, a pessoas que, doutra forma, as desconhecem e por isso dramatizam e desumanizam? Além de que iniciativas como esta surgem como oportunidades para pessoas do bairro que o conhecem de gingeira - há 30 jovens associados a este projecto. “Aqui falta muita coisa para a juventude, primeiramente emprego. Mas agora há esta oportunidade”, diz Matesh, o recém guia turístico. Apesar de saber que são biscates, “trabalhar como guia é um trabalho que não tem sempre”.
A associação IVERCA|Turismo, Cultura e Meio-Ambiente organiza as visitas para turistas (“Turismo do Guetto, totalmente seguro e fascinante”) e o Festival Mafalala, e acredita que estas actividades contribuem para ultrapassar a exotização e minorizar os preconceitos. Entre outros projectos associados ao turismo no Mafalala também se tenta pôr de pé uma rádio comunitária, melhorar o saneamento básico, restaurar o património e, no imediato, um festival de gastronomia e música, com artistas residentes e convidados, que já vai na 3ª edição.
Viveiro de artistas
Está um calor infernal e ficamos à sombra de uma palhota. À conversa com um grupo de vizinhos, uma senhora sorridente com chapéu da Frelimo insiste para que bebamos o putso, aguardente de arroz e farinha compactada e rapidamente fermentada. Conta que era aquilo que a mãe do Eusébio vendia. O guitarrista Lotti, da banda Ghorwane, com uns 45 anos bem vividos e a postura relaxada de músico, fala de Lisboa, da importância do Bonga, do Rock in Rio, dos tempos do Ritz Club, “o cabaret das colónias” como lhe chama uma personagem no filme “Terra Estrangeira” de Walter Salles. Os músicos africanos acabam por se conhecer entre si, tocando uns com os outros, nessa cidade quase africana que é Lisboa.
“Mafalala é bairro de muitos músicos e de muitas bandas.” Desde os tempos em que a cidade era Lourenço Marques, tinham lugar noitadas ao som de guitarras, maracas e congas, mulheres e boa cerveja. Mas também havia PIDEs a patrulhar o bairro (inclusive a cavalo) e, a partir de determinada hora, proibindo os negros de saírem à rua.
Já com a guerra civil proliferaram bandas para distrair os tempos sombrios das recrutas e da fuga às rusgas nas escolas, dos guias de marcha e de circulação. Como não se podia viajar pelo país e Maputo de alguma forma tinha de se tornar aprazível, sendo a música o forte de Moçambique, incentivou-se a formação de grupos de música. Porém, não havia aparelhagem nem instrumentos para tantas bandas: “chegávamos a rebentar as cordas de um piano para usar como cordas na guitarra”, conta Lotti que pertenceu aos grupos Bons Rapazes e aos Ghorwane.
Depois, o filho do grande pai da Frelimo, Eduardo Mondlane, também Ed, “criou condições para tocarmos, ajudou na produção e comprou instrumentos para o pessoal.” Tocaram no quartel para homenagear os militares em 1983, elogiando as suas patentes, ao mesmo tempo que faziam músicas revolucionárias com críticas ao governo, denunciando a fome e os problemas da guerra. Como hoje em dia o rapper Azagaia se sente traído pelos ex-combatentes, actuais “combatentes pela fortuna”, sempre se foi discutindo através da música os dramas de cada tempo. Em 1985 Lote vai para o Zimbabué onde se estabelece durante uns anos, pois Harare era uma cidade tão evoluída que “dava para viver de tocar em pubs”, conta. É guitarrista, baixista e baterista, e lá ganhou gosto por corridas de carros. Durante esses anos usava umas rastas compridas e em Moçambique Samora Machel, na sua aspiração em promover o “homem novo”, proibia qualquer manifestação excêntrica do género. Então, só voltou a Maputo para o funeral da mãe.
Projecto Tchova
Continuamos a visita. Matesh consolida experiência enquanto guia para quando for a vez dos turistas a sério, mas ele gosta é de fazer rap e tem um grupo que se chama “Projecto Tchova”, que significa “empurrar”. “Adorava ter um estúdio para gravar sem ter de pedir a ninguém”. Foi uma luta pela conquista de respeito. “O pessoal do bairro achava que quem cantava rap era marginal.“ Tentou a sorte na África do Sul onde sentiu a discriminação generalizada com os vizinhos pobres moçambicanos. “Só quando eu gravei e apareceu na rádio é que me passaram a respeitar, a apertar minha mão, a pagar-me umas cervejas.” Percebe-se pelos cumprimentos afectuosos que Matesh é uma referência no bairro que mostra orgulhosamente. Tímido, conta e responde a tudo mas nunca olha nos olhos. “Nesta casa vivia um português que tinha a melhor mercearia do bairro. Mais à frente a casa de um combatente da Frelimo.”
Tem 32 anos e nasceu numa Mafalala musical. Filho de curandeiros, “os batuques estavam sempre presentes e no bairro conheci muitas pessoas que tocam guitarra”. Aproximamo-nos da sua casa e família. A casa, linda, data de 1937 e era de um português. O pai, falecido há 9 anos, herdara-a em tempos de viragem. Além de perder o pai perdeu a namorada com quem teve um filho. Vive com irmãos, sobrinhos e duas mães: a Maria (que ganha pensão do marido preso pela PIDE por ser “terrorista”) e a Amélia, que é curandeira ou médica, ele hesita no termo e acaba por usar os dois. Matesh aponta para uma grande área de terra com duas palhotas e uma tamareira a um canto. A casa de adobe serve para os rituais, tem uma esteira no centro e muitos frasquinhos de remédios tradicionais para aliviar as dores dos pacientes. “A tamareira foram uns turistas alemães que vieram filmar um desses rituais de cura e estavam a comer tâmaras e deixaram cair semente. Daí cresceu à procura do céu.”
Vamos tirar uma fotografia com o Matesh e o Ché Guevara pintado atrás dele entre as letras garrafais a anunciar as omnipresentes marcas de telemóveis, “tudo bom” ou “estamos juntos” são os enunciados mais insistentes. Entre os quarteirões do bairro identificados por números, saem de dentro de casas uns acordes com a voz inconfundível dos Bobs, o Dylan e o Marley. Ícones por todo o lado.
Programa cultural
No itinerário desta visita guiada por Mafalala o mais interessante é deambular pelo bairro no labirinto das ruelas de terra batida entre paredões de zinco. Por todos os cantos e becos surgem crianças com as mais criativas brincadeiras, meninas vaidosas enfeitam as suas tranças com missangas, mulheres mais velhas de perna estendida e língua afiada vendem legumes ou carvão, peixe frito com temperos indianos.
Uma parte da visita é precisamente um roteiro gastronómico com alguns pratos típicos como matapa e caril. Quem estiver atento valorizará as redes de solidariedade e convívio enraizadas neste tipo de bairro, basta ver a quantidade de botecos, mercearias e pontos de encontro na agitada rua de Goa, além das improvisadas salas de cinemas com os famosos filmes de acção.
Os guias da Mafalala dão um cheirinho de algumas demonstrações culturais: os rituais na casa do curandeiro e as danças. Além da marrabenta, ali se pratica o tufo, dos macuas de Nampula, que deriva da fusão cultural entre árabes e kotis, e dança-se apenas por mulheres trajadas com muita cor e enfeitadas com cordões, anéis e pulseiras de ouro, com o rosto coberto por muciro, uma massa branca da fricção do caule perfumado da árvore com esse nome. Enquanto imitam o movimento do mar entoando melodias que retratam os seus quotidianos e elogiam a beleza à sua volta, os homens acompanham com batuque.
Pode conhecer as humildes casas dos ilustres, ouvir os elogios dos amigos de Eusébio, que encontra sempre uma Mafalala em festa aquando das suas visitas. “Ele era tecnicamente muito bom, jogava com os dois pés, corria bastante e, a qualquer distância, marcava golo” conta um seu ex-companheiro no Sporting de Moçambique, no começo da década de 60. “Quantas vezes deixava de ir à escola só para jogar futebol!”, é um vício que chegou às gerações mais novas. Também pode visitar a Casa-Museu de José Craveirinha (1922-2003), o poeta que “soube fazer da literatura uma arma para a libertação dos moçambicanos”, terá dito na inauguração o presidente Armando Gebuza. Lá dentro o espólio do poeta, publicado e inédito, convive com obras de arte e de literatura, esculturas maconde, cerâmicas, máscaras, discos de jazz, trabalhos de Malangatana, Samate Mulungo, Chichorro, óleos de Bertina Lopes, desenhos de Idasse Tembe, Zeca Craveirinha, o filho que lá está e gosta de contar histórias sobre o pai e o bairro.
De facto o percurso de Craveirinha resume bem as várias dimensões da Mafalala: preso político, dirigente associativo, jornalista, crítico de arte, teatro e cinema, coreógrafo, musicólogo, dançarino, folclorista, incentivador de talentos e marrabentas, galã de mulheres e musas e no desporto com queda para o atletismo, pugilismo e futebol. No seu conto “Maulide Rifai na Mafalala”, de 1955, escreve sobre Sumalidji, um chefe macua. Há velhos patriarcas, deitados em largas esteiras, a ler o livro sagrado e a entoar monótonas cantilenas. “As pernas flectidas, os olhos baixos, o tronco balanceando ao ritmo dos cânticos. O tempo passa, a luz dos Petromax aquece mais a atmosfera e acende brilhos fantásticos nos óculos dos velhos macuas. Na demora, há paciência e fatalismo orientais. Por fim as vozes calam-se, o silêncio torna-se espesso como um pedaço de teca. Aqui e ali homens levantam-se silenciosamente e voltam com daíras e entregam pelo círculo fechado de homens sentados nas esteiras.” Craveirinha gostava da diversidade e a sua atenção detinha-se nos vários ritmos e expressões culturais. Encontrou no Mafalala o lugar certo para trabalhar essa amálgama de elementos, pertencendo a uma geração nacionalista que lutou por um Moçambique uno sem anular as suas heterogeneidades e diferenças culturais. A sua poesia inspirou-se no bairro, na vivacidade e carências daquelas gentes, a quem o regime colonial usurpou direitos e, depois, a pobreza continuou a discriminar.
Num belo ensaio sobre a relação do autor com o bairro intitulado “José Craveirinha, da Mafalala, de Moçambique, do mundo” a professora brasileira Rita Chaves escreveu “Entre o Craveirinha e a Mafalala, a proximidade não é só física, persistindo uma relação mais funda: naquelas ruas de areia inscreve-se uma história da sociedade moçambicana que a sua poesia, por vias diversas, também quer contar. Tal significa que percorrer seus becos e vielas é também um modo de apreender as imagens com que o poeta fala da terra e suas gentes.” (Via Atlântica, nº 3, Dez de 1999) Há muitas histórias neste bairro. Muito se conspirou e resistiu, houve ataques armados aos subúrbios, por brancos em fúria com a chegada da independência (pergunte-se pelos “Dragões da Morte”), muitos filhos do bairro vingaram lá fora e voltam a contar as suas aventuras e sucessos.
A amizade entre vizinhos e partilha de bens, alegrias, dificuldades e copos é um dos pilares do bairro. Ao fim do dia o bar do Lima mantém o calor do verão e reforça o calor humano com mais cervejas acumuladas. Matesh e Lotti, e outros músicos amadores e profissionais vão chegando para concertos e conversas. Pois já Craveirinha cantava no poema “quero ser tambor”, tambor antes de ser zagaia ou desespero, irromper do silêncio, mas conviver antes de ferir. Lá está a delicadeza e fraternidade dos moçambicanos. E a tradição artística e boémica da Mafalala.
Fotos de Otávio Raposo
Contacto da associação Iverca para marcar visitas: associacao.iverca@gmail.com
originalmente publicado na revista Pública, 17/1/2010