“O que faço melhor é o que de mais raiz nós temos”, entrevista a Paulo Flores

Cantor e compositor, Paulo Flores é uma voz inconfundível na música em Angola. Com muito anos de carreira e de discos editados, percorrendo e inovando a cultura angolana, prestando homenagem ao seu património bem enraizado e às suas expressões mais vanguardistas. Esta conversa refere-se ao trabalho anterior, a trilogia Ex-Combatentes (“Viagem”, “Sembas” e “Ilhas”), que navega em águas poéticas e documentais da vida angolana. “Descubro muita humildade nas pessoas que sempre estiveram aqui e a forma erguida como continuam a levar a vida impressiona-me. Sempre reclamei de tudo, mas quando vejo como as pessoas levam a vida, perpetuando, elas sim, uma identidade tão forte, isso é o que me inspira.”

foto de José Fernandesfoto de José Fernandes

De onde vem a música na sua vida?

Comecei a ter contacto com a música em criança. O meu pai era dj, ouvia música do mundo inteiro, depois vieram cá os Tubarões, o Paulino Vieira, o Martinho da Vila, todos ficavam em casa do meu pai. Tenho lá uma k7 de eu a tocar guitarra numa garrafinha no meio deles todos, e também cantava por cima dos discos. O meu avô materno era de Trás-os-Montes e tocava guitarra portuguesa, a minha avó de Benguela tocava piano e falava francês.

Porque é que se concentrou num género tradicional como o Semba? Experimentou o rock ou pop na adolescência?

Com 15 anos comecei a fazer música com o Eduardo Paim e o Ruca Van-Dunnem. O álbum de estreia “Kapuete Kamundana” (1988) só com originais, tinha muito do que hoje se chama kizomba. Começámos por imitar o Zouk, com coisas tipo ‘Cherry’, ‘Garina’ que são kizombas. Eu vivia em Lisboa, o meu pai (Cabé) foi para lá em 1986 e tinha as discotecas angolas: o Kudissanga, o Kandando, então eu estava no circuito de angolanos, mas vinha a Luanda de férias todos os anos, mantendo sempre viva a ligação. A minha visão era de nostalgia, de saudade, de não querer estar afastado (a minha família falava muito de Angola). Então, a temática das primeiras músicas era muito neste espírito do semba.

Quem lhe ensinou a tocar?

Não tenho formação musical, os músicos tocavam comigo e iam-me passando uns acordes. Quem me ajudou a perceber o semba foi, mais tarde já em Angola, o Carlitos Vieira Dias. o Moreira Filho. Em termos vocais foi imitando os outros, o Bonga o Waldemar, o Mukenga. No primeiro disco cada música tinha o seu timbre, então era tudo a disparar porque eu ainda não sabia qual era o meu tom e demorou algum tempo a percebê-lo.
Como justifica o seu imediato sucesso?

Fui gravando discos, quando dei por mim já estava nos palcos. As pessoas gostaram muito do primeiro disco, nunca houve tempo para pensar. Lembro-me que não queria dar um show na Aula Magna. Foi dos primeiros, tinha 16 anos, apareci tarde para o sound-check, estava com muitas dúvidas e não podia suportar a minha voz (aliás, nos três primeiros discos achava-a horrível). Nada foi programado, o segundo disco saiu logo no ano a seguir. Tinha oito músicas que tocavam nas discotecas. Ainda hoje, na música “Tulucutu” tinha uns ténis All Star e em Cabo Verde apelidaram os ténis de Tulucutu e abriram um bar com esse nome. O “Cherry” ainda faz muito sucesso em todos os Palops.

Não será porque a sua música dava um certo alento nos momentos difíceis e de grande nostalgia na relação com Angola?

Podia ter esse efeito terapêutico mas essencialmente havia um grande vazio na música angolana. Tínhamos o Bonga, o Waldemar, o Tetalando, mas ao todo uns três discos nos últimos cinco anos da música angolana. Depois acho que era uma nova abordagem da linguagem, mais descomplexada e procurando dar algum valor aos códigos do dia-a-dia e isso foi bastante fresco.

fotografia de Iuri Albarrãfotografia de Iuri AlbarrãQuem escreve as suas canções?

Sou eu, vou cantando as melodias e as palavras vão atrás da música. Já fiz algumas parcerias com poetas como Carlos Ferreira (Cassé) e Albano Cardoso. 

Foi fácil encontrar acompanhamento musical?

O meu pai tinha a discoteca onde tocavam os África Tentação, na altura era o único grupo em Portugal. O grupo Kandando actuava como suporte musical. Depois gravei com o Eduardo Paim na Rádio Nacional e, a partir daí, fui construindo bandas. Encontrei o Manito, o Carlitos, o Simmons, o Manecas Costa, o Trindade que é dos mais antigos (já vem do tempo do Urbano de Castro), e deu para formar essa banda com quem estou há cinco anos. Antes toquei com a Banda Maravilha. E vou convidando músicos do Brasil (como Jacques Morelenbaum), de Portugal, etc.

Como músico de semba sente-se condicionado para desenvolver outros géneros?

Eu gosto de cantar o semba mas não sou só aquilo. Durante o ano tenho vários shows, há sempre um mais musical, outro grande com os sucessos, outro com mais sembas. Nem para todos os públicos sinto vontade de cantar ou compor aquele género musical. Mas consegui encaixar-me bem nele, trazer algo de novo na linguagem, na escrita do português, na abordagem aos temas. Foi um contributo importante. Tenho noção de que o que eu faço melhor é o que de mais raiz nós temos e é aí que tenho mais hipóteses (agora o show Raiz da Alma), mas no exercício da criatividade procuro alternativas e não me sinto limitado a fazer só aquilo que as pessoas esperam. Há outros caminhos e não nos podemos reger só pelas críticas ou tendências. Para criares algo que faça sentido tens de estar predisposto a isso.

Nos seus sembas faz uma radiografia da vida urbana, sobretudo de Luanda. Há uma espécie de enaltecimento da vida humilde, que dá voz às pessoas.

Essa convicção parte um pouco do desespero de perceber as condições tantas vezes surreais e desumanas que as pessoas enfrentam no dia-a-dia. Isso existe no mundo inteiro mas o que me chamou mais a atenção em Angola foi a força das pessoas e tantas vezes a verdadeira humildade saída da chamada “banga” arrogante dos angolanos. Descubro muita humildade nas pessoas que sempre estiveram aqui e a forma erguida como continuam a levar a vida impressiona-me. Sempre reclamei de tudo, mas quando vejo como as pessoas levam a vida, perpetuando, elas sim, uma identidade tão forte, isso é o que me inspira.

fotografia de Iuri Albarrãfotografia de Iuri Albarrã

Há qualquer coisa na descrição das personagens que não se podia dizer de outro modo. Também está a criar identidade ao nomeá-las e fixá-las.

Quando começo a fazer uma música nunca sei onde ela vai acabar, muitas vezes demoro algum tempo a perceber o que escrevi. São crónicas, retratos dos nossos tempos. Acredito que de aqui a uns anos alguém vai encontrar nas músicas alguma documentação, a possibilidade de perceber como foi a nossa época de uma forma muito perceptível. Tento fazer outras leituras, abordagens, mais poéticas.

Não circunscrito à realidade angolana, este disco também fala da Palestina, de Lisboa…

O disco Xé Povo já tem mais uma visão do mundo. O Ex-Combatentes é o mais abrangente. Compu-lo todo na Av. dos Combatentes (em Luanda) e trata-se da visão de um angolano ou africano sobre o mundo de hoje. O mundo de todos dias, da poeira, do comércio, a desorganização, as parabólicas, a informação que recebo. É com tudo isto que crio. Nós temos acesso a tudo e somos absorvidos por todas as mutações, Barack Obama, etc., estamos divididos entre o ritmo descontraído do falecido século XX, com todo o seu espaço e tempo, e este transtornado metamórfico e esquizofrénico ritmo do século XXI.

Numa panorâmica à música angolana, quase todos os temas focam Angola como assunto principal, há muita necessidade de descrever a sua própria realidade.

As pessoas não podem escrever nem cantar sobre o que não conhecem. Entre os angolanos que viveram fora e voltaram e os que estiveram sempre aqui, existe um grande choque. Parece que as pessoas aqui são muito rápidas mas não tiveram essa informação e as pessoas de lá tiveram alguma informação mas vêm com uma postura de “eu é que sei”, e acabam por não contribuir tanto como poderiam.

Tem mostrado alguma incidência de participações e sonoridades de Cabo Verde.

Faz parte do meu crescimento, daquilo que absorvi. Em Lisboa, com o B.Leza, etc, dava-me muito com caboverdianos, com o Tito Paris, o Bana, o Ildo Lobo, o Manecas Costa da Guiné, todas essas pessoas fizeram parte da minha musicalidade, é instintivo. Sinto-me tão caboverdiano como brasileiro ou às vezes português. Gosto das outras culturas que fazem parte de mim.

O que pensa da música angolana atual?

Já participei no Kuduro com o Dog Murras, no rap com o MCK, o Nástio Mosquito colaborou comigo. Angola tem muitas linguagens novas e o kuduro é a mais representativa e em muitos aspectos a mais criativa. Pelo menos na dimensão do pensamento que muitas vezes não é perceptível na linguagem. Mas se tiveres capacidade de entender o que estão a dizer, de facto tem coisas muito mais à frente do que em outros géneros que continuam a cantar o amor, o feitiço ou a mulher que fez algo de mal.

E sobre a pouca aceitação do kuduro por parte de algumas figuras angolanas?

Acho bom que as polémicas existam e que as pessoas se sintam ultrajadas e revoltadas. Que cada um contribua com a sua arte e revolta, para termos mais transgressores na procura de uma nova criatividade. Agora já não se dá o mesmo valor às coisas, o ritmo não é o mesmo, é natural que a musica também não seja. Saíamos do trabalho e vínhamos almoçar à ilha, mas agora não tens possibilidade, o trânsito etc, não vais ver o pôr-do-sol nem o mar da mesma maneira. Isso reflecte-se na criatividade. Não acho anormal que os mais-velhos não entendam as novas linguagens, referem antes aquilo que eles compreendem.

fotografia de Iuri Albarrãfotografia de Iuri AlbarrãComo avalia a sua carreira nesta fase, cumpriu-se um ciclo?

É altura de agitar. Sinto uma forte liberdade no que faço, quero-me sentir vivo e criativo. Cheguei a estes 20 anos de carreira com o meu contributo respeitado e reconhecido. Agora a minha procura é muito individual, algo que quero completar com a minha obra artística, uma coisa que quero fazer é aprender a ler e escrever música.

Qual a sua opinião sobre o percurso que Angola segue?

Vivemos, no mundo inteiro, numa época em que parece que a única coisa que vai resultar é o caos total para as coisas voltarem a emergir. Em Angola está tudo nas nossas mãos, tudo aquilo que fizermos agora será decisivo para os próximos 15, 20 anos. Que caminhos vamos escolher? Há indicadores que apontam para a preocupação em fazer as coisas bem, por outro lado, ainda há escolhas que me deixam na dúvida. Eu pessoalmente quero contribuir, com as minhas palavras, música e pensamento. Quero continuar a viver em Angola e gostaria que os meus filhos pudessem ter cá um ensino com mais qualidade e informação para todos. Pela educação é que passam grande parte das nossas possibilidades.

Quais os aspetos mais positivos nos desafios atuais do país?

Essencialmente parece-me o optimismo que as pessoas mostram. Tal predisposição, essa forma de encarar a vida e vermos as coisas a mudar dá-me confiança.

Quais as áreas que precisam urgentemente de melhorar para uma sociedade mais equilibrada?

Para mim tem a ver com a distribuição do rendimento, com a produção interna, a agricultura, a educação e a cultura. Pararmos de pensar tanto no petróleo e começarmos a produzir mais. Temos de nos preocupar com os recursos humanos e dar mais possibilidades às pessoas de terem mais conhecimento: têm de saber inglês, política, acesso à internet.  É o que nos falta para um crescimento mais sustentado.

Na práticam o que significa o seu cargo de Embaixador da Boa Vontade da ONU em Angola?

Sinceramente ainda não sei bem até onde posso actuar. Gostava de fazer coisas em Angola, estamos a planear com empresas e o Ministério da Educação. Já houve conversas, o show de 8 de Março do ano passado, em vez de pagar bilhetes levava-se um livro. Fiz uma digressão de beneficiência por algumas províncias: Huambo, Malange, Benguela. Queria trabalhar conjuntamente com a área da educação e cultura. Com a empresa Catoca fiz uma coisa em que receita foi para Casas do Gaiato. Também é bom para promover as instituições. A minha primeira ideia era fazer uma escola de artes e ofícios, onde os jovens se pudessem juntar. Mas agora estou a repensar tudo.

A música pode contrariar a corrente globalizante?

A genuidade é uma ilusão, não há hipóteses de criar sem ser influenciado. Pessoalmente sinto-me angolano em muitos aspectos da vida. Mas o que significa isso? Só a crença e a vontade dão-nos uma criação autêntica porque é a expressão dos nossos sentimentos.

Quais são os seus maiores defeitos?

Às vezes sou insuportável ao acordar, posso acordar deprimido. Não sou inseguro hoje mas já fui, agora penso mais por mim e não no que as pessoas vão achar ou gostar. Posso ser preguiçoso, não gostar nada do que tenha a ver com muitas luzes, mas como figura pública tenho de aguentar algumas. Sinto é que nessas alturas não sou eu, eu sou só a parte que está a fazer as músicas no quintal com os amigos. Só que hoje em dia parece que se vive mais da figura pública do que da arte. Então a figura publica é uma representação, não é o meu habitat.

E como é a sua relação com o dinheiro?

A minha relação com o dinheiro é muito simples: quando o tenho gasta-se, quando não tenho poupa-se. Gosto sobretudo de gastar o dinheiro com as pessoas de quem gosto. Não penso muito no futuro, nem dá para isso nesta profissão.

 

Luanda, Janeiro 2009, in AUSTRAL nº 73, texto gentilmente cedido pela TAAG - Linhas Aéreas de Angola
 

 

 

por Marta Lança
Cara a cara | 21 Outubro 2010 | Ex-Combatentes, música angolana, Paulo Flores, raízes, semba