A ocupação do tempo no espaço de Maria Mello Giraldes

A ocupação do tempo no espaço de Maria Mello Giraldes 5 Espaços é um desses raríssimos livros de estreia sem um verso bambo, frouxo, ou uma palavra a menos, revelador de uma poderosíssima voz pessoal, visceralmente radical, sem dívidas nem epígonos, geradora de vocabulários inaugurais, de uma atentíssima e exaustivamente trabalhada oficina poética na consumação de uma linguagem que se não conturba, criadora da sua própria tradição, cuja fulguração só encontro paralelo entre as suas coetâneas Luiza Neto Jorge (1939-1989) e Maria Velho da Costa (1938-2020) de Da Rosa Fixa e Corpo Verde, o que há-de querer dizer alguma coisa num mundo de desatenções fulminantes e videirinhas celebrações impantes da mediocridade vigente e ululante.

26.07.2024 | por Zetho Cunha Gonçalves

A grande conspiração de Lautréamont. Exercício para um mapa

A grande conspiração de Lautréamont. Exercício para um mapa Mais do que uma crítica à desumanização da sociedade capitalista, o texto de Lautréamont mostra como o capitalismo tornou impossível imaginar outro homem que não o homem – para mantermos os mesmos termos – desumanizado. Do que se trataria, então, seria de abandonar a quimera da humanização e de lançar a guerra ao homem, tal como ao seu Criador, à sua cultura, à sua sociedade, à sua poesia. E onde ele, justamente, encontra um potencial mais elevado de exponenciar essa guerra é nos elementos desumanizados, monstruosos, degenerados.

21.07.2024 | por Fernando Ramalho

“Mundividências” judiciais - caso Cláudia Simões

“Mundividências” judiciais - caso Cláudia Simões A sentença do Tribunal apresenta-nos outra explicação – a meu ver – desconcertante. A resistência de Cláudia Simões e a reação das pessoas que viram a ocorrência na paragem de autocarro teriam sido de tal forma desestabilizadoras que, em jeito de “descompressão”, Carlos Canha agride violentamente aqueles dois homens. Se a tese da “descompressão” não permite ilibar, ela aligeira a dimensão moral dos atos do agente. Descontrolou-se, agiu sem verdadeira intenção, sem premeditação, “descomprimiu”.

03.07.2024 | por Cristina Roldão

Em busca do pai Natal, acompanhada da leitura de "Afropeu" de Johny Pitts

Em busca do pai Natal, acompanhada da leitura de "Afropeu" de Johny Pitts Desde o início do século XX foram articuladas formulações sobre a identidade negra na Europa, Estados Unidos e África. Do Pan-africanismo ao New Negro Movement, da Negritude ao Renascimento de Harlem, do projeto Back-to-Africa de Marcus Garvey, ao Rastafari e Black Power, para lá de outros. Pitts faz breves incursões a estes movimentos no seu itinerário de Paris, Amsterdão, Moscovo, Berlim e Estocolmo. O desdobramento e esmiuçar do termo Afropeu é para além dos encontros fortuitos com migrantes negros e de outras etnias, uma viagem de aprendizagem sobre os possíveis significados de uma identidade negra neste começo de século e as suas múltiplas heranças provenientes da literatura e do meio artístico.

01.07.2024 | por Aida Gomes

O estranho caso do escritor Germano Almeida [ou contra a pregação supremacista e o negacionismo glotocida]

O estranho caso do escritor Germano Almeida [ou contra a pregação supremacista e o negacionismo glotocida] Quem escreve em língua cabo-verdiana, por ponderada e consciente decisão cultural e identitária, por ser esse o meio através do qual melhor se sente, cria ou se exprime, ou ainda por qualquer secreta ou inconfessável tara, mesmo que só por simples briu di korpu o kabesa ka bale, e não por refúgio ou como muleta, por não dominar convenientemente outra língua, já chegou exatamente onde queria chegar.

27.06.2024 | por José Luiz Tavares

Apresentação de “O cemitério  do elefante branco: Retornados e Ficções do Império português”

Apresentação de “O cemitério  do elefante branco: Retornados e Ficções do Império português” Essas pessoas agora sentiam muito ódio, muito medo, muita insegurança e vulnerabilidade. Mas quantos milhares e milhares de negros tinham experimentado isso ao longo dos tempos? Quantos milhares de negros não sentiram a profunda sensação do absurdo daquilo que lhes estava a acontecer? Quantos milhares de negros não sentiram que a sua vida iria de certeza ter um final trágico? Quantos milhares de negros não viveram e morreram fervendo de ódio nas plantações de café, a trabalhar nas minas, ou apanhados pelas armadilhas da tributação que fazia com que de um dia para o outro dessem consigo em São Tomé nas roças de cacau, onde esgotados pelo trabalho do contrato, chegavam por si próprios à conclusão que nunca mais regressariam para a sua família e para a sua terra. Ninguém lhes escutava os gritos e ninguém lhes limpava as lágrimas, durante anos, décadas e séculos, não houve nem consolo, nem misericórdia.

21.06.2024 | por Cármen Loureiro Rosa

O mundo que de outro modo não é

O mundo que de outro modo não é Há um traço ancestral latente na articulação do gesto utópico, e no movimento vital desse gesto. Uma estória sobre começos, e sobre fins sempre presentes. Uma conversa, implícita e antiga, com todos os passados que nem como história, subsistem, não tendo sobrevivido aos protocolos de transliteração. Uma faísca anímica, sumiça – a da cedência de controlo sobre o cálculo de probabilidades que constitui o real enquanto tal. Algo movido pelo convívio com a perda, que a traz e carrega consigo – com raiva, orgulho, curiosidade, e carinho.

12.06.2024 | por Salomé Honório

Luanda, Lisboa, Paraíso: a cartografia da violência dos sujeitos da diáspora

Luanda, Lisboa, Paraíso: a cartografia da violência dos sujeitos da diáspora Sob a pele dos protagonistas Cartola e Aquiles vemo-nos de forma frontal com a experiência de sujeitos que continuam a habitar o território do não pertencer, a despeito de suas presenças já contarem com cinco séculos de existência em Portugal. O texto literário da escritora Djaimilia Almeida ilustra esses limites relacionados à pertença e a complexidade de construir uma subjetividade a partir dos trânsitos, deslocamentos e do não pertencimento.

06.06.2024 | por Liz Almeida

Angola/ Alguém viu por aí o jornalismo investigativo?

Angola/ Alguém viu por aí o jornalismo investigativo? O país viveu numa situação de ditadura monopartidária assumida nos seus primeiros 17 anos, que também ficou conhecida no discurso oficial com o pomposo nome de “ditadura democrática revolucionária”. Lamentavelmente, a situação prolonga-se até aos dias de hoje embora já com algumas diferenças na sua fachada constitucional e institucional com a existência formal de um regime multipartidário que não alterou, contudo, a natureza do poder absoluto que governa o país com os mesmos vícios de sempre não obstante todo o rejuvenescimento que, a olhos vistos, a elite no poder tem conhecido.

06.06.2024 | por Reginaldo Silva

Memorial do Convento: un memorial sobre los olvidados

 Memorial do Convento: un memorial sobre los olvidados Estos hombres son los que han sido arrancados a la fuerza, llevados contra su voluntad a una cruzada forzada, atados como prisioneros y esclavos. Como observó Cornado (2018), Saramago crea una perspectiva más humana de la Historia, mostrando que esta masa de anónimos también hace parte de los relatos históricos. Y que, por lo tanto, también contribuyeron y hacen parte de la memoria de Portugal, por eso sus historias son narradas desde la seriedad, desde la humanidad y del compromiso, demostrándonos la sensibilidad y la empatía de quien escribe.

24.05.2024 | por Lorena Leites Rodriguez

José Gil nos 50 anos do 25 de Abril

José Gil nos 50 anos do 25 de Abril Diria que isto, pelo menos, é certo: tudo passa, em Portugal, pelo 25 de Abril. Se o querem desinscrever, cabe a nós o reinscrevermos. Mas, desta vez, finalmente, inscrevendo no 25 de Abril “o país da não-inscrição”, onde também habitam, com a sua Praça do Império, os espectros do extenso e complexo trilho da “presença histórica de Portugal no mundo” (e não serão eles que têm estômago para "antropofagizar" Salazar?). O que se confirma, por outras palavras, é a conclusão geral do Morte e Democracia de José Gil (2023): entramos na era da “espectrologia política”.

22.05.2024 | por Filipe Ferreira

Há liberdade de imprensa em Angola?

Há liberdade de imprensa em Angola? Identificar um tema consensual para, em Angola, se debater o estado da liberdade de imprensa está muito longe de ser um desafio fácil de ultrapassar pela polarização existente, mas não deixa de ser uma orientação pertinente que podia conduzir-nos a uma outra reflexão sobre o país real nesta data em que existe uma predisposição maior para este tipo de levantamento. A título de sugestão, este consenso até poderia ser tentado no próprio parlamento com a realização de uma plenária anual consagrada exclusivamente ao estado da liberdade de imprensa no país tendo como referência um tópico mais específico.

14.05.2024 | por Reginaldo Silva

Krik-krak, a arte dos contos no Haiti

Krik-krak, a arte dos contos no Haiti No Haiti, as histórias folclóricas e a sabedoria popular passam de boca em boca. Ao final da tarde, quando o sol se acalma e as ruas se enchem de vizinhos, é hora do kont ou de jogar ao krik-krak. No país em convulsão, a tradição oral tão antiga como o mais antigo ancestral marca a pauta dos valores coletivos e da identidade.

13.05.2024 | por Pedro Cardoso

E de repente eclodiu a revolução do 25 de Abril de 1974 e deu-se a libertação dos presos políticos do Tarrafal e tudo o mais que viria depois!...*

 E de repente eclodiu a revolução do 25 de Abril de 1974 e deu-se a libertação dos presos políticos do Tarrafal e tudo o mais que viria depois!...* E de repente eclodiu o 25 de Abril de 1974, considerado pelo Nhonhô numa entrevista à RTC (Radio-Televisão de Cabo Verde) sobre o seu percurso de vida como “uma autêntica revolução”. E de facto foi a festa infinita que começou com a caça aos informadores e agentes da PIDE/DGS na cidade da Praia, a queima das respectivas viaturas e/ou seu despenhamento no mar a partir do Cruzeiro do Platô, actos nos quais o Nhonhô e os seus amigos estudantes da Assomada residentes na cidade-capital da colónia/província ultramarina portuguesa participaram activamente e continuou com o lançamento de panfletos políticos na vila da Assomada dirigidos aos militares aquartelados no antigo edifício da SAGA e para o qual fui mobilizado pelo Betinho de Nho Bebeto-Alberto Lopes Barbosa, Júnior (sendo essa a primeira acção política, ademais clandestina, de toda a minha vida, depois muito marcada pela intervenção política e cívica, se bem que em larga medida fora do quadro político-partidário), e, logo depois, com a libertação dos presos políticos do Tarrafal, prosseguindo com os frequentes comícios, reuniões, sessões de esclarecimento e manifestações, os saraus culturais e as muitas e acaloradas discussões políticas, nas quais nós, adolescentes, também nos envolvíamos entusiástica e freneticamente.

10.05.2024 | por José Luís Hopffer Almada

Maryse Condé “Amar os outros parece-me ser a forma, talvez a única, de causar impacto”

Maryse Condé “Amar os outros parece-me ser a forma, talvez a única, de causar impacto” “A morte na nossa casa é um espetáculo. Não se permite que a dor seja silenciosa. Deve ser acompanhada por um alvoroço de lágrimas, gritos, queixas, repreensões, imprecações contra Deus. Pessoas desesperadas rolam no chão. Outras ameaçam cometer um ato irreparável. Todas as pálpebras estão inchadas e vermelhas.” Tradução livre de Maryse Condé em “Victorie, Les Saveurs et les Mots”, 2006.

13.04.2024 | por Pedro Cardoso

O meu irmão Nhonhô, por Tuna Furtado Lopes*

O meu irmão Nhonhô, por Tuna Furtado Lopes* E de repente eclodiu o 25 de Abril de 1974, considerado pelo Nhonhô numa entrevista à RTC sobre o seu percurso de vida como “uma autêntica revolucão”. E de facto foi a festa infinita que começou com a caça aos informadores da PIDE/DGS na cidade da Praia e na qual o Nhonhô e os seus amigos estudantes da Assomada residentes na cidade-capital da colónia/província ultramarina portuguesa e, logo depois, com a libertação dos presos políticos do Tarrafal, prosseguindo com os frequentes comícios e sessões de esclarecimento, os saraus culturais e as muitas e acaloradas discussões políticas nas quais nós, adolescentes, também nos envolvíamos entusiástica e freneticamente.

08.04.2024 | por José Luís Hopffer Almada

Lerbd – El cielo en la cabeza. Antonio Altarriba, Sergio García, Lola Moral (Norma Editorial)

Lerbd – El cielo en la cabeza. Antonio Altarriba, Sergio García, Lola Moral (Norma Editorial)   O problema, revelado por esta ficção brutal, é que no momento em que essa consciência se forma, o pecado é assinalado ao mesmo tempo. E os autores não estão preocupados com redenções, boas fortunas, finais felizes. Bem pelo contrário, o livro é atravessado uma e outra vez por crimes abjectos e hediondos, que não desejo sequer relatar ou sumariar. Apesar das roupagens estilísticas de grande espectacularidade – García cria muitas composições radiais, serpeantes, ou fragmentadas que obrigam o nosso olhar a procurar sempre cartografias complexas de leitura das pranchas –, Cielo não quer criar uma armadilha de facilitismos ou de naturalidade, não há quaisquer moralismos (ainda que, por vezes, num diálogo ou numa cena, haja algo de esquemático na apresentação do “problema”) mas sim mantém uma certa distância pelo horror que Nivek tem não apenas de atravessar, como de perpetrar, como um constante mecanismo de auto-salvação.

03.04.2024 | por Pedro Moura

Sindicato dos Jornalistas Angolanos: uma história singular com mais de 30 anos a partir a pedra dura da democratização

 Sindicato dos Jornalistas Angolanos: uma história singular com mais de 30 anos a partir a pedra dura da democratização Um sindicalismo que começou por ter como grande reivindicação a defesa intransigente do primeiro de todos os direitos fundamentais que é a liberdade de expressão sem a qual a liberdade de imprensa tão cara aos jornalistas mas não só, poderia ser o bem público que a todos serve, sem excepção. É claro que, na prática, as coisas nem sempre são conforme estão escritas, sendo Angola um caso emblemático deste choque, que é permanente, do discurso com a realidade, do texto com o contexto.

02.04.2024 | por Reginaldo Silva

O cabelo como liberdade

O cabelo como liberdade   Quatrocentos anos depois da instituição da escravatura ter desencadeado mecanismos de desvalorização da estética africana, muitos indivíduos do continente ainda têm uma relação difícil com o cabelo da mulher africana. É verdade que, nos últimos cinco anos, seguindo tendências nascidas nos Estado Unidos e na Europa, o movimento do cabelo natural tem ganhado força nos países africanos. Atualmente, cada vez mais mulheres e raparigas assumem a naturalidade do seu cabelo e optam por estilos naturais, tal como a Miss Universo de 2019. No entanto, a resistência ao cabelo natural, particularmente ao afro e às rastas, é ainda uma realidade e muitos optam por estilos de cabelo, como é o caso das extensões, que se assemelham à estética ocidental.

25.03.2024 | por Yarri Kamara

Pé na Tchón, Mô Vinking. Pé na Tchón, Mô irmão!

Pé na Tchón, Mô Vinking. Pé na Tchón, Mô irmão! Essa dor é o amor pleno do qual fizeste forma de vida e matéria para a tua escrita. Vimo-la no trabalho sobre as capacidades dos que te estiveram ao redor. É isto o amor que nos quiseste dizer, por outros sinais, na tua forma de vida, na doação plena às pessoas, no cuidado e atenção com cada um, nos códigos cifrados da tua literatura, mas sempre lá esteve. Tudo é amor! Para que o vivamos em pleno, para que se tivermos de bazar no dia seguinte, levamos como única garantia do fica com os outros, os nossos!

13.03.2024 | por Zezé Nguellekka,