Um conjunto de quinze pares de pés moldados em betão (material bem conhecido do artista), com diferentes tamanhos e texturas, amarrados e suspensos por arame, sugerem a silhueta de um barco. Subitamente vêm-nos à memória representações antigas da escravatura ou da migração forçada de cabo-verdianos, a partir do séc. XIX, para trabalharem nas roças de STP. A contemporaneidade também está presente, ou não fossem, também estes, os pés dos “trolhas” nos estaleiros lisboetas, os pés dos migrantes em situação precária.
06.11.2025 | por Tiago Lança
Ela sentia-se detentora de um poder incomparável pela posse desse poder inabalável da Memória. Esta, como dispositivo, convocava em permanência o reatamento do jogo enquanto forma de auto-examinação, registo de progressão, e desejo de auto-superação performática no exercício de humilhação do poder masculino. Não lhe interessava o vídeo como mera documentação, mas como factor de Evolução, não como memória dos parceiros, mas como mecanismo de Auto-Avaliação. Não como pura pornografia, mas como Auto-Biografia. E como possibilidade futura de Video-Arte Documental. O vídeo é o instrumento da Relatividade. Da relatividade do Tempo, da relatividade da Realidade, e da relatividade do Poder, dependendo de quem o manuseia. Tal é o seu Poder, argumentava ela. Tendo estudado em Viena, ela sabia que o grande trauma Nazi não é proveniente da memória das vítimas, mas da memória dos arquivos, das imagens documentais, das imagens reais, fotográficas e fílmicas. E Trauma era o propósito último do seu Hipornorealismo. Ela escrevia sobre o que não via.
04.11.2025 | por Brassalano Graça
Em termos formais, esta obra configura-se como uma novela, no entanto, a restrição genelógica não é algo que se conforme a este texto rebelde e híbrido (resgatando um termo da autora, contíguo a um “mistifório"), pois perpassam por aqui vários estilos literários, desde o meramente narrativo ao poético e ao epistolar, até ao dialógico-dramático, assinalado, no corpo do texto, pelo traço (–) indicador de falas, usualmente utilizado na escrita de peças de teatro.
02.11.2025 | por Luís Carlos S. Branco
A correspondência revela (de momento) ― excepto a transcrição de um rascunho manuscrito e muito rasurado de carta, sem data e não assinado, em resposta à primeira ―, apenas a parte dela enviada a Mário Pinto de Andrade por José Luandino Vieira, após a libertação do Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. A sua divulgação pública, aqui, deve ser tomada como um pequeníssimo contributo de memória histórica e de retrato fidedigno sobre o que foram, como foram, quem protagonizou e que preços se pagaram nas lutas de libertação pela conquista da independência nacional de Angola, neste ano em que se celebram os seus 50 anos.
30.10.2025 | por Zetho Cunha Gonçalves
Investigadoras no Instituto de História Contemporânea na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Inês Vieira Gomes e Catarina Laranjeiro cruzaram-se no igual interesse pela investigação do colonialismo, do pós-colonialismo e das repercussões sociais, culturais e identitárias das narrativas do Estado Novo nas ex-colónias e em Portugal. A estruturar a proposta curatorial, as duas propuseram uma possível visão do espólio de Álvaro de Barros Geraldo de acordo com a ideia de que aquelas fotografias permitem reflectir sobre a ficção oficial do regime salazarista relativamente às tensões coloniais. No imediato olhar, essas fotografias constituem lugares de manifestação e inscrição da ficção discursiva de «manutenção da paz» formulado como estratégia de anular a visibilidade do que era o contexto real da guerra.
28.10.2025 | por Vanda Gorjão
o ensino, quer do português quer das línguas angolanas de origem africana, deve ser feito rigorosamente de acordo com a norma de cada uma delas. É que, para alguns, a língua portuguesa deveria ser ensinada em Angola conforme ela se fala nas ruas, confundindo isso com uma possível variante angolana do idioma. Erro crasso. Outros defendem ardorosamente as línguas africanas, pois, para eles, “português é língua do colono”, mas a verdade é que também não dominam com propriedade as referidas línguas. Tais confusões não têm nada a ver com o multilinguismo.
23.10.2025 | por João Melo
Aos treze anos descobri que não era bonita e encontrar culpados deixou de ser importante. Dos rapazes não era a favorita o que não me chateava assim tanto, desde que a pauta se mantivesse exímia, afinal, era o único poder que eu ali tinha. Não tinha O cabelo, nem O nariz, nem A pele, mas tinha o “nunca esperei que fosses tão boa aluna” e isso a melanina não podia apagar. Mais um quadro era colocado no lugar para disfarçar a janela que, entretanto, de tinha desintegrado.
22.10.2025 | por Lara Guimarães
A vida mudou, chegaram os tempos difíceis que duram até hoje e aí já como cidadão civil viu - se enfrentado o desemprego logo ele, Homem que “só sabe trabalhar! Virou pescador de lagostas, vendeu peixe para sobreviver lembrou a quem de direito que era capaz ainda de trabalhar… que queria, teria … senão iria sucumbir… nadava de 3 a 5 horas diárias no mar grosso e gelado do Namibe, lutando contra uma depressão e tristeza profundas por não conseguir um lugar, um trabalho na reconstrução dessa Nação.
12.10.2025 | por Isabel Baptista
E, se outro mérito não tivesse a sua obra ficcional do autor de Bola Com Feitiço, essa pequena jóia rara em qualquer literatura, esta fulguração criadora da linguagem sustentada pelo húmus mais fecundo da Terra que se abre aos mais interiores horizontes angolenses, com seus perfeitos e felizes casamentos de kimbundu e português na consumação dos seus dizeres efabulatórios e sábios, esta fulguração criadora, dizia, bastaria para colocar num muito especial patamar aquele que escrevia «em jejum absoluto», «de madrugada o que me tem custado maka», muito embora «até agora nunca me considerei escritor», conforme se lê no «Inquérito aos Escritores» levado a cabo pela União dos Escritores Angolanos, adiante reproduzido.
09.10.2025 | por Zetho Cunha Gonçalves
Quando criança todo mundo escuta. É no crescer dos ossos que nos fragmentamos. Ouvir com todos os sentidos pode ser doloroso em alguns momentos, constrangedor em outros. Fica difícil ser um adulto funcional e se manter sensível à microescuta dos seres. Tantas vezes em que tivemos que ouvir desaforos e responder entre gritos silenciosos. As vozes que engolimos falam muito mais alto dentro e ensurdecem nossos receptores. É o que dizem as estudiosas da microaudiologia, nove em cada dez mulheres adoecem por tudo que escutam em silêncio.
09.10.2025 | por Gabriela Carvalho e Rita Rainho
O presente é desmesurado e apela ao cuidado com a história única. Angola é o resultado de muitas histórias de vida e resistência de participação e dissidência. Os livros não param de aumentar. A moderna biblioteca permite hoje um levantamento e uma cronologia de diferentes momentos desde os antigos movimentos de libertação aos “révus” do século XXI. A ideia de uma república popular foi anunciada nos primórdios da independência e praticada por grupos de jovens que muito perturbaram a ideia do homem novo saído da guerrilha e pronto para mudar o mundo.
09.10.2025 | por Ana Paula Tavares
A verdadeira catástrofe do nosso tempo é a colonização do espírito. A indústria cultural, agora digital, não apenas molda os gostos — fabrica o próprio sujeito que deseja. A linguagem empobrece, a imaginação administra-se, e a crítica converte-se em algoritmo.
O que Bloom chamava de “morte da alma” é hoje uma condição planetária: o sujeito globalizado é um híbrido de consumidor, militante e espectador, preso à ilusão de autonomia que o mercado lhe vende.
05.10.2025 | por Eugénio Matusse
Quanto à escrita de Kanafani, ela não existe num vazio, mas como parte de uma prática política revolucionária no sentido mais amplo. Seja a partir da produção literária, onde relata, a partir de baixo e da sua própria experiência como refugiado, a Nakba palestiniana, recusando a sua naturalização ou eventualidade, ao introduzir o povo palestiniano como sujeito histórico que vive a Catástrofe como rutura que transformou radicalmente o seu quotidiano e a sua experiência espácio-temporal, mas também como processo em curso a ser contrariado por um permanente movimento de recusa e de retorno. Seja a partir de uma produção teórica que se alimenta e que alimenta a prática política revolucionária, quer a partir do que hoje chamaríamos de Estudos Culturais e Literários, quer a partir de complexas análises sociológicas, sempre informado pelo materialismo histórico como método.
01.10.2025 | por Bruno Costa
Da mesma forma que no Ayiti, foi a união dos diferentes povos africanos, então desmembrados dos seus territórios, que permitiu a maior revolução de todos os tempos. Ambas as revoluções, ayitiana e guineense, entram, sem dúvida, para a história das grandes revoluções pan-africanas. Mas, parafraseando Cabral e Deolinda Rodrigues, não devemos celebrar vitórias como se fossem eternas. É preciso sempre lembrar que a vida de uma nação é luta, luta todos os dias para manter a sua liberdade e soberania.
24.09.2025 | por Apolo de Carvalho
para a pugna, contra o requentado duma tal ciência
abstrusa. (Bem mais limpa é a poesia que trago presa
à bossa, e borbulha de vida & verdade nas suas várias
declinações. Bruxuleando, pede-me apenas a paciência
de aguardar que se equilibre sobre a pré destinada mesa,
contra as porcinas patas dessas tão façanhudas alimárias).
24.09.2025 | por José Luiz Tavares
Lívia denuncia o contraste brutal entre a celebração dos chamados “nómadas digitais” e a invisibilidade dos imigrantes que sustentam a cidade com seu trabalho precário. Lisboa, segundo ela, vive uma contradição gritante: valoriza o poder de compra enquanto ignora os direitos. É um apartheid velado que separa mundos que coexistem na mesma geografia, mas em realidades paralelas. Considera escandalosa a forma como os bairros de autoconstrução, colados ao conforto lisboeta, são ignorados por grande parte da população, um apagamento que revela o abismo entre classes e raças.
22.09.2025 | por Marta Lança
Maria Condado desloca para o espaço expositivo o espaço privado, mostrando uma ideia de atelier como espaço de vida e de experimentação, onde o pensamento e a prática se entrelaçam. Assim, o processo do fazer, pressupondo as suas circunstâncias e problemáticas, é entendido como parte integrante da obra, mostrando como, para a artista, público e privado se fundem, tal como o artista não se desliga da vida concreta. Este gesto reafirma o compromisso de Maria Condado com a realidade social e política, e com uma prática situada e que reclama o tempo presente e é capaz de intervir criticamente sobre este. Ao evocar um período histórico de conflitualidade social e engajamento político e ao remeter-se ao universo do atelier, apela à urgência da ação, instigando a responsabilidade da arte como instrumento ativo de interpretação, intervenção e transformação do seu tempo.
22.09.2025 | por Patrícia Barreira
Persiste a falta de reconhecimento da relevância das cosmologias dos povos originários como base estrutural da sua existência. Ao expor os absurdos dessa incompreensão, 'Um Rio Sem Fim' abre espaço para refletir sobre a violência e o aniquilamento de comunidades inteiras que este equívoco provocou, e continua a provocar. Sobre o livro, Verenilde Pereira refere com frequência: “Não há mais um leitor inocente diante dessa paisagem amazónica que venha a ler. A responsabilidade é sua: compreender ou não, ou descartar. Não há inocente diante da paisagem que os personagens oferecem. E essa paisagem eu conheço.”
20.09.2025 | por Anabela Roque
A política governamental para a língua cabo-verdiana deverá ser incumbência de uma unidade de missão a funcionar junto do conselho de ministros, atuando também como provedoria da língua, seguindo e coordenando, com força legal, todos os desenvolvimentos nesta matéria até à oficialização plena. Ao mesmo tempo deverá ser implementada uma política de formação alargada em linguística e ensino, com incidência no estudo da língua cabo-verdiana e estudos comparados com outras línguas crioulas, através da concessão de bolsas pelo estado e pela Universidade de Cabo Verde, e o incentivo à criação de cursos de âmbito linguístico, nomeadamente crioulística, pelas universidades privadas.
19.09.2025 | por José Luiz Tavares
A implementação do programa para a oficialização da língua cabo-verdiana é, sem dúvida, um processo complexo, que não poderá ser desenvolvido em linha reta, mas é necessária, urgente e possível. Os objetivos poderão ser atingidos num horizonte temporal exequível, com uma definição de estratégias e metas e com o planeamento da provisão da assistência técnica e dos recursos humanos e financeiros necessários.
19.09.2025 | por Maria Cândida Gonçalves