A Roupa Nova de Luanda

A Roupa Nova de Luanda A visão do governo do MPLA pós-Neto é de criar uma capital à la Dubai, capaz de atrair turismo, negócios e «massas de estrangeiros para a cidade, transformando-a num lócus onde a mão invisível do capitalismo consequentemente elevaria os angolanos da pobreza», enquadra-se nesse contexto. Nessa visão, o moderno, fresco e recém-inaugurado aeroporto Dr. Agostinho Neto funciona como os braços abertos e o sorriso acolhedor de Luanda. Consequentemente, o aeroporto permite que políticos e cidadãos considerem essa peça moderna de infraestrutura como sua própria, não vinculada ao colonialismo português, à arquitetura colonial ou às cicatrizes físicas dos colonos-ocupantes portugueses, nem ao cemitério não oficial de um império moribundo.

15.12.2025 | por Klas Lundström

Greve Geral: o direito a existir, participar e transformar o país.

Greve Geral:  o direito a existir, participar e transformar o país. Apesar de o Governo ter qualificado a greve como “inexpressiva”, o país mostrou exatamente o contrário: uma luta expressiva, em que cada corpo presente e cada cartaz ampliaram a força coletiva da contestação. Os cartazes reunidos nesta galeria são testemunho dessa expressividade: ecoam a vitalidade que se multiplicou pelas ruas, a criatividade que brotou nas palavras improvisadas, a crítica mordaz, o apelo ético, a disputa pelo sentido do trabalho e da democracia, a resistência que se afirmou e a imaginação política que ali se projetou. Juntos, constroem um léxico popular capaz de denunciar injustiças, afirmar dignidade e esboçar futuros mais justos. Nesta ocupação das ruas afirmou-se, de forma coletiva e vibrante, o direito a existir, participar e transformar o país.

12.12.2025 | por Joana Simões Piedade

“Menino, não fala política”: o país que não se cala na obra de Luís Santos

“Menino, não fala política”: o país que não se cala na obra de Luís Santos Os pés e os dedos funcionam como portas de entrada para a complexidade social que envolve o artista e preparam o olhar para além do belo. Os silenciamentos, as amputações das vozes incómodas, sobretudo dos anónimos sem horizonte de futuro, retiram-lhe o sossego. Não é possível falar apenas de amor, beijos ou flores quando corpos suam no alcatrão quente, descalços, em busca de um lugar melhor. São corpos que votaram e, por isso, reivindicam o direito de apontar o dedo a quem lhes deve serventia. É nessa direcção que apontam os dedos indicadores manchados de tinta, símbolo do exercício soberano do voto.

10.12.2025 | por Eduardo Quive

Ou corremos com os golpistas na Guiné-Bissau ou perdemos para sempre o que (ainda?) resta da nossa dignidade enquanto povo/nação

Ou corremos com os golpistas na Guiné-Bissau ou perdemos para sempre o que (ainda?) resta da nossa dignidade enquanto povo/nação O dilema que hoje atravessa a Guiné-Bissau já não é uma questão de escolher entre duas propostas políticas; há muito que se trata de uma questão de posicionamento entre dois caminhos claros para o país: o da verdadeira transformação política, que exige esforço, lucidez e solidariedade; e o da encenação política, que conduz à servidão, à decomposição moral e à barbárie banalizada.

09.12.2025 | por Amadú Dafé

Morte, poesia, comunismo - Heiner Müller, trinta anos depois

Morte, poesia, comunismo - Heiner Müller, trinta anos depois Resgatar Heiner Müller trinta anos depois da sua morte é um exercício arriscado. Desde logo porque o mais cómodo será olhá-lo na forma fetichizada de um autor oracular. Como é habitual a propósito da evocação de autores mortos, poderíamos cruzá-lo com o nosso tempo começando cada frase por «Como previu Heiner Müller…». Seria um exercício sem dúvida eficaz para efeitos de validação pelas intelligentsias académicas, literárias ou militantes, sempre prontas a legitimar a sua inércia pela idolatria dos seus mortos convertidos em bonecos de cera. Fazê-lo com Müller seria, no entanto, traí-lo, no mesmo sentido em que o próprio entendia que a sua relação com Brecht só poderia ser crítica. Andar à procura de uma realidade que confirmasse as supostas previsões de Müller não passaria de um exercício vazio, até porque o seu gesto foi precisamente o contrário de uma tentativa de descrever a realidade.

08.12.2025 | por Fernando Ramalho

Que nuances perfazem relações inter-raciais?

Que nuances perfazem relações inter-raciais? Tudo isto significa que todas as relações inter-raciais são permeadas por hierarquização racial, exotização ou fetichização? Não. Embora colocar o Outro como fetiche ainda seja uma realidade, não acredito que todas as relações inter-raciais partam desses princípios. Existem relações saudáveis, onde as pessoas fazem o caminho de aprender a olhar para Outrem sob novas formas de ser e estar no mundo, sob uma perspetiva humana. Conheço relações inter-raciais onde há compromisso real com práticas antirracistas, com justiça e equidade social em todos os níveis. Compromisso com o amor.

08.12.2025 | por Leopoldina Fekayamãle

Amanhã é Outro Dia: Anatomia de um Golpe de Estado

Amanhã é Outro Dia: Anatomia de um Golpe de Estado No fundo, a Guiné-Bissau continua a ser governada por aquilo que não vemos claramente: uma sombra persistente que organiza, redistribui e reconfigura o poder conforme os seus próprios interesses. Enquanto essa sombra existir — e enquanto as armas forem a gramática da política — qualquer tentativa de transição democrática plena será sempre interrompida, adiada ou revertida.

07.12.2025 | por Dosmi Lenov

Memórias da COP30 – dança la gringa

Memórias da COP30 – dança la gringa Se cada um dos cerca de 50 mil participantes creditados que se renderam ao nosso kakiado levarem consigo um pouco das nossas urgências – principalmente aquelas que ficaram de fora dos documentos da conferência – e se unirem às nossas lutas além da absolutamente linda Marcha Pelo Clima da Cúpula dos Povos que levou mais de 70 mil pessoas às ruas de Belém, temos uma vitória e ainda mais motivos para fazer os gringos dançarem. Afinal de contas, somos os melhores em receber. E queremos dançar, também.

03.12.2025 | por Gabriella Florenzano

Césaire, o insular que escrevia em movimento

Césaire, o insular que escrevia em movimento A sua crítica à hipocrisia europeia - “A Europa é indefensável” - desmonta o seu falso universalismo e denuncia a violência civilizatória inflingida pelo Ocidente. No "Discurso sobre o Colonialismo" relembra como o nazismo, que horrorizou a Europa, em grande parte replicava métodos já normalizados nas colónias, advertindo sobre a tendência irracional para assassinar que acompanha certas formas de dominação. Felwine Sarr acrescenta que foi o encontro com o “rosto hediondo do outro”, através do sistema colonial a marcar profundamente a modernidade ocidental ocidental.

24.11.2025 | por Marta Lança

Memória Fantasma, uma exposição de Yonamine

Memória Fantasma, uma exposição de Yonamine Trabalhando com cartão, Yonamine recupera o papel e o passado, trazendo-os de volta e dando-lhes um novo brilho. Memória Fantasma, tal como o jornal da parede tão comum em 1975 e 1976 na Angola recém-independente, reforça o papel, torna-o vertical, dá-lhe uma espinha dorsal. Aplicando pressão, cortando a superfície, Yonamine transforma os media num meio — o meio da sua arte, o meio que canaliza os espíritos. Não varras à noite, para não chamar os kalundus, dizem em Luanda. Em todo o mundo, temos varrido à noite. Espíritos inquietos possuem-nos.

17.11.2025 | por Marissa Moorman e Natxo Checa

São Tomé e Príncipe: querer dar-se a ver

São Tomé e Príncipe: querer dar-se a ver Um conjunto de quinze pares de pés moldados em betão (material bem conhecido do artista), com diferentes tamanhos e texturas, amarrados e suspensos por arame, sugerem a silhueta de um barco. Subitamente vêm-nos à memória representações antigas da escravatura ou da migração forçada de cabo-verdianos, a partir do séc. XIX, para trabalharem nas roças de STP. A contemporaneidade também está presente, ou não fossem, também estes, os pés dos “trolhas” nos estaleiros lisboetas, os pés dos migrantes em situação precária.

06.11.2025 | por Tiago Lança

A Negra

A Negra Ela sentia-se detentora de um poder incomparável pela posse desse poder inabalável da Memória. Esta, como dispositivo, convocava em permanência o reatamento do jogo enquanto forma de auto-examinação, registo de progressão, e desejo de auto-superação performática no exercício de humilhação do poder masculino. Não lhe interessava o vídeo como mera documentação, mas como factor de Evolução, não como memória dos parceiros, mas como mecanismo de Auto-Avaliação. Não como pura pornografia, mas como Auto-Biografia. E como possibilidade futura de Video-Arte Documental. O vídeo é o instrumento da Relatividade. Da relatividade do Tempo, da relatividade da Realidade, e da relatividade do Poder, dependendo de quem o manuseia. Tal é o seu Poder, argumentava ela. Tendo estudado em Viena, ela sabia que o grande trauma Nazi não é proveniente da memória das vítimas, mas da memória dos arquivos, das imagens documentais, das imagens reais, fotográficas e fílmicas. E Trauma era o propósito último do seu Hipornorealismo. Ela escrevia sobre o que não via.

04.11.2025 | por Brassalano Graça

Outra Míngua, que é também a nossa

Outra Míngua, que é também a nossa Em termos formais, esta obra configura-se como uma novela, no entanto, a restrição genelógica não é algo que se conforme a este texto rebelde e híbrido (resgatando um termo da autora, contíguo a um “mistifório"), pois perpassam por aqui vários estilos literários, desde o meramente narrativo ao poético e ao epistolar, até ao dialógico-dramático, assinalado, no corpo do texto, pelo traço (–) indicador de falas, usualmente utilizado na escrita de peças de teatro.

02.11.2025 | por Luís Carlos S. Branco

4 cartas e dois bilhetes inéditos de José Luandino Vieira para Mário Pinto de Andrade

4 cartas e dois bilhetes inéditos de José Luandino Vieira para Mário Pinto de Andrade A correspondência revela (de momento) ― excepto a transcrição de um rascunho manuscrito e muito rasurado de carta, sem data e não assinado, em resposta à primeira ―, apenas a parte dela enviada a Mário Pinto de Andrade por José Luandino Vieira, após a libertação do Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. A sua divulgação pública, aqui, deve ser tomada como um pequeníssimo contributo de memória histórica e de retrato fidedigno sobre o que foram, como foram, quem protagonizou e que preços se pagaram nas lutas de libertação pela conquista da independência nacional de Angola, neste ano em que se celebram os seus 50 anos.

30.10.2025 | por Zetho Cunha Gonçalves

Imaginários da Guiné-Bissau. O espólio de Álvaro de Barros Geraldo (1955-1975), uma exposição a abrir caminhos para a investigação

Imaginários da Guiné-Bissau. O espólio de Álvaro de Barros Geraldo (1955-1975), uma exposição a abrir caminhos para a investigação Investigadoras no Instituto de História Contemporânea na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Inês Vieira Gomes e Catarina Laranjeiro cruzaram-se no igual interesse pela investigação do colonialismo, do pós-colonialismo e das repercussões sociais, culturais e identitárias das narrativas do Estado Novo nas ex-colónias e em Portugal. A estruturar a proposta curatorial, as duas propuseram uma possível visão do espólio de Álvaro de Barros Geraldo de acordo com a ideia de que aquelas fotografias permitem reflectir sobre a ficção oficial do regime salazarista relativamente às tensões coloniais. No imediato olhar, essas fotografias constituem lugares de manifestação e inscrição da ficção discursiva de «manutenção da paz» formulado como estratégia de anular a visibilidade do que era o contexto real da guerra.

28.10.2025 | por Vanda Gorjão

Uma falsa maka: o português, língua nacional angolana

Uma falsa maka: o português, língua nacional angolana o ensino, quer do português quer das línguas angolanas de origem africana, deve ser feito rigorosamente de acordo com a norma de cada uma delas. É que, para alguns, a língua portuguesa deveria ser ensinada em Angola conforme ela se fala nas ruas, confundindo isso com uma possível variante angolana do idioma. Erro crasso. Outros defendem ardorosamente as línguas africanas, pois, para eles, “português é língua do colono”, mas a verdade é que também não dominam com propriedade as referidas línguas. Tais confusões não têm nada a ver com o multilinguismo.

23.10.2025 | por João Melo

Não-lugar

Não-lugar Aos treze anos descobri que não era bonita e encontrar culpados deixou de ser importante. Dos rapazes não era a favorita o que não me chateava assim tanto, desde que a pauta se mantivesse exímia, afinal, era o único poder que eu ali tinha. Não tinha O cabelo, nem O nariz, nem A pele, mas tinha o “nunca esperei que fosses tão boa aluna” e isso a melanina não podia apagar. Mais um quadro era colocado no lugar para disfarçar a janela que, entretanto, de tinha desintegrado.

22.10.2025 | por Lara Guimarães

Xana, um cidadão de mão cheia

Xana, um cidadão de mão cheia A vida mudou, chegaram os tempos difíceis que duram até hoje e aí já como cidadão civil viu - se enfrentado o desemprego logo ele, Homem que “só sabe trabalhar! Virou pescador de lagostas, vendeu peixe para sobreviver lembrou a quem de direito que era capaz ainda de trabalhar… que queria, teria … senão iria sucumbir… nadava de 3 a 5 horas diárias no mar grosso e gelado do Namibe, lutando contra uma depressão e tristeza profundas por não conseguir um lugar, um trabalho na reconstrução dessa Nação.

12.10.2025 | por Isabel Baptista

No centenário (e mais um ano) de nascimento de Uanhenga Xitu, o «luandense teimoso» de Calomboloca, e nos 50 da Dipanda

No centenário (e mais um ano) de nascimento de Uanhenga Xitu, o «luandense teimoso» de Calomboloca, e nos 50 da Dipanda E, se outro mérito não tivesse a sua obra ficcional do autor de Bola Com Feitiço, essa pequena jóia rara em qualquer literatura, esta fulguração criadora da linguagem sustentada pelo húmus mais fecundo da Terra que se abre aos mais interiores horizontes angolenses, com seus perfeitos e felizes casamentos de kimbundu e português na consumação dos seus dizeres efabulatórios e sábios, esta fulguração criadora, dizia, bastaria para colocar num muito especial patamar aquele que escrevia «em jejum absoluto», «de madrugada o que me tem custado maka», muito embora «até agora nunca me considerei escritor», conforme se lê no «Inquérito aos Escritores» levado a cabo pela União dos Escritores Angolanos, adiante reproduzido.

09.10.2025 | por Zetho Cunha Gonçalves

“Quando o algodoeiro responde em silêncio”, Rita Rainho

“Quando o algodoeiro responde em silêncio”, Rita Rainho Quando criança todo mundo escuta. É no crescer dos ossos que nos fragmentamos. Ouvir com todos os sentidos pode ser doloroso em alguns momentos, constrangedor em outros. Fica difícil ser um adulto funcional e se manter sensível à microescuta dos seres. Tantas vezes em que tivemos que ouvir desaforos e responder entre gritos silenciosos. As vozes que engolimos falam muito mais alto dentro e ensurdecem nossos receptores. É o que dizem as estudiosas da microaudiologia, nove em cada dez mulheres adoecem por tudo que escutam em silêncio.

09.10.2025 | por Gabriela Carvalho e Rita Rainho