“A Cesária permanece igual mesmo quando tudo muda à sua volta”, entrevista a Ana Sofia Fonseca
Uma das coisas que adorei foi ouvir a Cesária relembrar o lado duro da canção “Sodade” que, mais do que a emigração, é sobre o “contrato”. Uma canção cantada pelo mundo a fora, doce, que esconde esta carga de violência, como diz Jorge Araújo. A história dos contratados das roças, um dos episódios mais vergonhosos do colonialismo português. Para si, o que esse momento diz do filme?
Falei com muita gente e a maior parte das pessoas acha que é uma história de amor. No filme, a um jornalista que lhe fala em emigração, Cesária rebate que aquilo não é emigração, é o contrato. Durante muito tempo os caboverdianos iam contratados para trabalhar nas roças de São Tomé, nomeadamente no cacau e, como diz a Cesária, “noutras chatices”, de praticamente escrava, ficavam amarrados ao pagamento da sua passagem, da sua ida e das suas despesas nas roças. Ainda lá estão sobreviventes dessa época que nunca mais conseguiram voltar. Estas pessoas abandonaram a sua casa para ir trabalhar porque não tinham outra hipótese, mas nunca conseguiram regressar e nunca foram realmente livres, porque o que ali se vivia era uma situação de quase escravatura.
Mesmo que não fosse a intenção do compositor, ressoa a história da vida dura nas roças naquela canção. Apesar de ter sido abolida a escravatura, o trabalho forçado em São Tomé prolongou-se pelo século xx a fora.
A partir do momento em que a Cesária diz “aquilo não era emigração, iam contratados” passa-se a ouvir a canção de outra maneira. E depois as imagens também nos transportam para a dureza do trabalho em São Tomé. Foi esse o objetivo. No fundo, esta música tão conhecida se calhar nunca foi ouvida de acordo com o que ela realmente significa.
O exercício de montagem (com imagens de arquivo) é extremamente eficaz para extrapolar uma música que é quase a imagem de marca da Cesária. Em geral, o filme faz isso ao aprofundar a história da personagem dita “diva” que é só um label superficial.
A história da Cesária vai muito para além daquilo que normalmente se conta e muito para nos fazer pensa. É muito mais do que uma mulher pobre que veio de Cabo Verde e se tornou uma estrela. A história dela faz pensar no mundo que nos rodeia, em nós próprios e no papel que podemos, queremos ou devemos ter no mundo. Estamos a falar de uma mulher que não conhecia expressões com empoderamento feminino ou igualdade, que não tinha bandeiras, que não fazia discursos, mas que trazia essa consciência colada à pele, que vivia essas lutas no seu dia a dia. Era uma mulher extremamente livre e com uma grande consciência social.
A autenticidade da Cesária desarma-nos. Deixa-nos a pensar como é possível não se deixar inebriar pelo mundo do espetáculo, por toda essa fantasia. O filme contraria a própria ideia de “diva”. É diva no sentido de ser uma pessoa amada, idolatrada mas recusa estar nos píncaros porque tem numa visão bem terrena da vida.
Acha que essa postura dela de se manter muito fiel a si mesma tem relação com as suas origens e circunstâncias?
Tem a ver com várias coisas, para já com ela própria, com a sua forma de ser, que é construída pelos seus contextos, mas também por ela. A Cesária alcança o sucesso quando já tem cinquenta anos, e é a partir daí que vai subindo a rampa do sucesso. Mas ela já tinha vivido tanta coisa antes… Ela já conhecia o alcoolismo, ela já conhecia a pobreza, ela já sabia o que era cantar e ser aplaudida, ela já sabia o que era cantar a troco de nada. Ela até já tinha vivido o sucesso, como ela diz, ao vê-lo no olhar das pessoas. No entanto, consegue relativizar, e eu acho que ela tem sempre muita noção de que hoje está aqui no topo do mundo e amanhã pode não estar. Ela cantava no Carnegie Hall como cantava no nos bares mais pobres do Mindelo, a vida toda foi uma mulher com os pés no chão, terra a terra.
Porque é que tantas pessoas se deixam encantar por esse mundo do espetáculo, e ela não?
Estamos habituados a histórias de estrelas totalmente diferentes, normalmente são muito jovens, muito bonitas, alcançam rapidamente a fama mundial e, de repente, com o sucesso, começam a ganhar muito dinheiro e problemas. Ela tinha outra experiência, outra maturidade e a sua própria forma de ser que dava mais valor ao lado emotivo da vida e que não rimava com deslumbramentos. Conquistou o mundo inteiro, mas nunca se deixou conquistar pela fama. Há várias histórias de momentos em que está a ser condecorada e o que ela mais quer é ir embora porque tem uma cachupa combinada com amigos.
O filme mostra que o mundo do espetáculo tem um backstage muito duro e exigente. Eram tournées atrás de tournées, a violência que era praticamente viver num avião ou num carro para uma mulher daquela idade. Aquelas viagens sem fim. Ela chega mesmo à exaustão.
O lado que não se mostra muitas vezes, o que está por trás do glamour e do sucesso. Não é só glamour, existe também um outro lado. Há pessoas que conseguem ter muito definido o que é e não é importante, e a Cesária era uma dessas pessoas. Para ela não era importante o sucesso, mas sim cantar, estar com as pessoas de quem gostava, ter uma casa sempre de porta aberta. Mesmo antes da fama, quando cantava nos bares do Mindelo a troco de muito pouco, só cantava quando queria, mesmo que não cantar significasse não ter dinheiro para comer. Se não quisesse cantar, não cantava.
Sobre a situação precária dos cantores de bares e músicos, podemos ver ali essa circunstância difícil. Sendo o Mindelo uma cidade muito musical, todos os dias há pessoas a cantar, depois alguém vem de fora e reconhece o potencial e faz acontecer o fenómeno. A Cesária podia ter ficado o resto da vida a cantar nos bares do Mindelo sem ter reconhecimento internacional. Gostava que falasse um bocadinho do papel do produtor e da indústria da música, de quem potencia esses talentos.
Sempre ouvi dizer que o José da Silva descobriu a Cesária. Hoje, não concordo com essa expressão. Acho que ele não a descobriu, quer dizer, ninguém descobre ninguém que já está há cinquenta anos a cantar. Já muita gente falava do talento dela, ela já tinha vindo a Lisboa, já tinha ido à Holanda… Portanto, o talento de Cesária era reconhecido, o seu potencial de estrela é que não era reconhecido. Eles encontraram-se. Para mim essa é a expressão que faz sentido. Foi um encontro mútuo e transformador. Trilharam um caminho juntos, construíram uma relação muito forte, a Cesária nunca admitiu que alguém dissesse mal do José da Silva. Creio que ele percebeu que ela teria de fazer o que queria. Procurou não impor nada, não decidir contra aquilo que ela queria. A Cesária era uma pessoa que cantava e sabia que tinha de ganhar por isso. Tinha muita consciência de que lhe era devido um pagamento e estava farta de isso não ser o mais habitual. Era uma pessoa muito ciente dos seus direitos e da sua palavra, no fundo da sua liberdade.
A relação de trabalho entre eles era de honestidade e transparência nessas questões? Entre produtor e músico muitas vezes correm mal.
Tinham uma relação muito próxima e de muita cumplicidade. O encontro deles mudou a vida de ambos, ganharam os dois. Vi muitas centenas de horas de imagens, que não foram filmadas para ser mostradas e em que é notória esta relação de cumplicidade e de amizade. Quando se encontraram em Lisboa, no final dos anos oitenta, o José da Silva trabalhava nos Caminhos de Ferro em França, ganhava o salário mínimo, e a Cesária estava em Portugal prestes a regressar a Cabo Verde com uma mão à frente e outra atrás. Sem nada. Mantêm contacto e ela acaba por ir para Paris, fica na casa dele no quarto que era dos filhos.
Portugal nunca foi o palco principal de fenómenos musicais cabo-verdianos, a Holanda e a França pegaram e valorizaram. Alguns portugueses hão-de pensar “Aí, perdemos uma oportunidade de ouro com a Cesária.”
A Cesária estava cá, só não viu quem não quis. A Cesária sabia muito bem disso, tinha um carinho muito especial pelos franceses. Dizia sempre que foi lá que começou o seu sucesso.
É um caso paradigmático do que aconteceu com outros artistas. Nos anos oitenta, noventa o olhar para os artistas dos PALOP era diferente de hoje. Era muito preconceituoso. Apesar de já se perceber que havia grandes vozes, eram vistos como uns cantores de entretenimento, para ir tocar ao Ritz Club ou B’leza. Eram poucos os que conseguiram fazer carreira. Nunca se imaginaria que viesse a acontecer um fenómeno como o de Cesária…
O fenómeno da WorldMusic começa em França e a Cesária teve a sorte de estar lá. Havia interesse pela música do mundo, se calhar até mais do que agora. Hoje, sofremos de falta de interesse pelo outro. Naquela altura, início dos anos noventa, houve vários nomes a surgir, como por exemplo o “Buena Vista Social Club”, e a Cesária tem a sorte de apanhar também este movimento e subir no comboio. Atualmente como é dito no filme, é mais difícil um estilo de música tradicional de Cabo Verde como a morna tornar-se tão popular. No caso da Cesária conjugaram-se vários fatores. Por um lado, há este interesse pelo World Music, por África, por outro, a figura desta mulher genuína. A imagem dos pés descalços é algo que faz sucesso e que vende, mas tinha tudo para ser o contrário. A Cesária não tinha nada para ser uma estrela e havia muita gente a cantar em Cabo Verde. A Cesária não tinha o ideal de beleza que a moda e a comunicação nos impingem: tinha cinquenta anos, era mulher, pobre e negra.
No início de carreira, quando cantava nos bares do Mindelo, há uma cena no filme com os militares portugueses. Nesse diálogo insinua-se algum machismo mas ouvimos Cesária a saber lidar com a situação, com ironia.
A cena está construída de forma a revelar a personalidade e a força de Cesária. Estamos a falar de uma cena inédita, andei quase dois anos e meio com uma fotografia à procura daqueles jovens marinheiros, atualmente senhores de setenta e tal anos. Um deles levava uma máquina fotográfica e o outro levava uma máquina de filmar, que o pai lhe tinha dado, e naquele dia compra na Casa Leão um gravador. Então, à noite, para experimentar o gravador, grava a Cesária a conversar com eles e a cantar no bar. Um bar da zona mais frequentada pelos marinheiros. Acho aquela conversa muito rica porque é reveladora do contexto colonial, da sociedade de então e do carácter da Cesária. A forma como ela, sempre senhora do seu nariz, reage à conversa e se impõe.
Não fazia o papel de coitada ou de vítima, é a tal história do jogo de cintura. Apesar de todas as relações óbvias de desigualdade.
Mas está ali o retrato de uma época. E a cena termina com a Cesária a cantar no bar e é uma música com uma letra que faz muito sentido ali. A canção chama-se “Falta di Força” e a letra é muito interessante porque em algum momento nos diz algo como “eu achava que vocês tinham uma força, um poder e afinal não têm” e também tem muito a ver com a forma como o colonialismo era percepcionado no Mindelo. Tentámos que essa cena mostrasse um pouco disso tudo, talvez não seja tão óbvio para toda a gente porque a letra da canção não está traduzida. Senti que não fazia sentido traduzir as letras, uma vez que a Cesária cantou a vida inteira em crioulo, língua que poucos entendiam, mas que todos sentiam. O filme procura sempre ser fiel ao espírito e à história da Cesária.
Antes de 1975, como era público que ouvia a Cesária?
Também, a Cesária ia muito cantar a casas de pessoas, a Cesária chegou a ir cantar ao Grémio que era o local mais elitista da ilha, onde só entravam as pessoas que faziam parte do clube. Vou contar uma história de que há mil versões, pelo que prefiro contar tendo em conta o que ouvi da boca da Cesária. Há um momento em que o Professor Adriano Moreira, então Ministro, embarca numa viagem oficial a Cabo Verde e desembarca no Mindelo. As altas instâncias da ilha decidem fazer uma festa à noite no Grémio para receber o senhor ministro. E quem é que chamam para cantar? Aquela que era considerada a melhor voz da ilha, que já era a Cesária. Mas ela não tinha sapatos. Então, decidem arranjar-lhe uns sapatos para ela entrar no Grémio e cantar. A Cesária calça os sapatos, entra no Grémio mas, quando chega ao pátio, tira os sapatos e segue para o palco. Já ouvi versões em que dizem que puseram umas almofadas a tapar os pés. Ela diz que tudo isso não foi assim. E canta descalça, como se sentia bem, como se sentia ela. No fim da atuação, pegou nos sapatos e levou-os para casa. A Cesária adorava sapatos, apesar de não os poder calçar. Aliás, na altura do sucesso, quando chegava a Paris, das primeiras coisas que fazia era ir a uma sapataria comprar sapatos que nunca calçaria.
Conheço pouco sobre a época colonial no Mindelo. Mas ela cresceu metade da vida nessa época e o filme dá algumas luzes sobre isso. Outro aspeto dos primeiros tempos da vida é o orfanato, toda essa infância difícil e ao mesmo tempo revoltada. Porque não era feliz ali e demostrava a sua indignação por aquilo. É uma pessoa que se manifestava e não ficava calada.
A Cesária dizia o que queria e fazia o que queria, o que era impensável para uma mulher na altura. E estamos a falar de uma mulher, ainda por cima, muito pobre. A situação económica é muito marcante. Na Praça Nova, que é a praça principal do Mindelo, onde antigamente as pessoas andavam para ver e ser visto, quem tinha sapatos andava na parte de cima da praça e quem não tinha era obrigado a andar na parte de baixo, havendo até polícia a controlar. E a Cesária, como era óbvio, andava na parte de baixo. Era um apartado económico, também bastante racial, mas muito económico.
Tendo vivido uma infância, marcada pela pobreza e pela carência, é deixada num lugar onde as crianças não têm carinho nem muitos cuidados.
A mãe foi sempre uma figura central na vida da Cesária e acompanhou-a até ao fim. Era cozinheira, trabalhava em casa de família ricas, na altura até trabalhava numa casa na praça. E, às tantas, acha que a melhor solução é a Cesária ir para o orfanato, onde teria casa, comida e educação. A patroa da mãe era a diretora do orfanato, o que facilitou a admissão. Obviamente, a Cesária não se deu bem no orfanato. A rigidez das freiras e as regras não rimavam com a sua natureza.
Ao mesmo tempo isso também lhe dá a noção de querer ser livre. Vêm à superfície traços de personalidade: como é ciosa da sua liberdade. Estão ali a ser travadas várias coisas. A memória de pobreza ou de carência, a relação muito presente com a comida. Em muitos cabo-verdianos, ainda susbsiste a memória das fomes dos anos quarenta. Essa geração mais velha que, entretanto, conseguiu alguma ascensão social terá algures presente essa memória da fome. A Cesária retribui o seu sucesso, entre outras coissas, com a partilha da comida.
Isso é muito interessante, muito significativo e muito bonito. A Cesária usa a fama e o sucesso para quê? Para ter o que ela considera importante em termos materiais - ter uma casa e ter comida. E comida não só para ela, mas para todos ao seu redor. A Cesária tem esse sentido comunitário. A Cesária põe uma panela ao lume vinte e quatro horas por dia, tem três arcas frigoríficas. Sabia o que era a fome e tentava que à sua beira não existisse. Acho que isso mostra uma consciência social muito forte. A Cesária tinha a porta aberta para toda a gente e não fazia distinção mas, na verdade, preferia muito mais receber os marginalizados da sociedade do que a elite.
Esse sentido comunitário e generoso é algo com o qual nós temos a aprender. Numa sociedade tão individualista… Em Portugal, em meios não citadinos ainda existe alguma noção de partilha, já fomos mais das famílias alargadas e das casas abertas. Quanto mais se tem noção do sacrifício, mais se deseja retribuir.
A Cesária também retribuiu as ajudas que tinha recebido, levava muitas vezes um presente para as pessoas que lhe tinham dado esmola quando ela precisou.
Nunca no sentido de ostentação. Não como emigrante que volta com casacos de pele, era mesmo pelo prazer de os outros estarem bem.
Há uma certa tristeza que nunca desaparece nela. Gostava que falasse do lado solitário e desequilibrado da Cesária. Como era em termos de vida amorosa?
Nunca quis nada que a prendesse. Estamos a falar de alguém muito marcado pela vida. Ela teve três filhos, uma morreu pequenina, portanto tem dois filhos como mãe solteira que educa e alimenta, e o educar tem muito de alimentar quando a fome é uma preocupação. A fome tem muito peso. Portanto ela alimenta, educa os seus filhos com o apoio da mãe e dos irmãos. Ela não quer uma relação que a aprisione, e tem esta ideia de que um casamento ou uma relação com um homem podem ser uma prisão.
Existe solidão e melancolia na voz.
A voz é o retrato da sua vida. Ela é uma mulher muito densa. Tem aquele ar de simplicidade, mas acaba por ser uma mulher muito complexa, muito intuitiva, muito pés na terra e, ao mesmo tempo, muito sensível. Não gosto de histórias a preto e branco e não acho que ela seja a preto e branco. A Cesária é muito representativa da complexidade humana e é isso que a torna uma diva tão especial. Porque consegue ser muito próxima de todos nós e, ao mesmo tempo, ter chegado ao Olimpo. Há nela uma tristeza intrínseca, que convive bem com um sentido de humor apurado e com o gosto pelo riso.
Ao mesmo tempo há nela rispidez e dureza.
Sim… Zangava-se com o filho e batia-lhe a sério. É uma sobrevivente e isso molda uma pessoa. Por outro lado, enquanto personagem fílmica é uma personagem extremamente difícil. Estamos habituados, enquanto contadores de histórias, a personagens que, a certa altura, sofrem uma mudança significativa e a Cesária permanece igual a si própria, mesmo quando tudo muda à sua volta. Mesmo a história da solidão ou da depressão são coisas que a acompanham desde sempre. Não é um produto da fama. Tem a ver com a sua forma de sentir e de respirar o mundo.
Acho bem. É preciso contrariar a ideia de mulheres africanas lutadoras e sobreviventes, que aguentam tudo. É importante mostrar que têm direito à sua depressão e a ficar fechada em casa se quiser. Há sacrifício, sim, mas ela também fica a pensar nela própria. É a complexidade humana.
Para mim faz-me sentir mostrar as pessoas como elas são. Ninguém é só força, tal como ninguém é só fragilidade e eu acho interessante a conjugação, a procura de equilíbrio. Quis contar esta mulher com as suas fortalezas e as suas fraquezas porque é isso que a torna humana. Acredito muito mais numa diva que é uma pessoa do que numa diva que é uma construção.
Claro que eCesária, tornada um ícone, é já é outra coisa. Hoje faz-se do uso da sua imagem de marca, na Morna, no Património e na promoção do país.
É importante também o papel que a Cesária teve e o legado que nos deixou. Se hoje falamos na Morna enquanto património, é preciso falar da Cesária. Claro que há muitas outras pessoas, mas se não houvesse uma Cesária a abrir o caminho, provavelmente hoje a Morna não seria património.
Para além da Morna algo começa-se a estudar e valorizar o Funáná. Ambos são sons muito interessantes que ficam na cabeça e são representativos daquela sociedade.
A Cesária abriu caminho para a descoberta da música de Cabo Verde, na verdade do próprio país. Conseguiu pôr o seu país no mapa e a Morna nos ouvidos do mundo. Não há muita gente que tenha tido esta força e que tenha conseguido conquistar tanto. Ao mesmo tempo, conquistou algo que atualmente é um luxo: ser igual a si mesmo. Isto para mim é o que faz dela uma personagem muito fascinante.
E isso também trouxe mais interesse por Cabo Verde. A figura dela funcionou quase como uma embaixadora cultural?
Não tenho a menor dúvida. A Cesária pôs Cabo Verde no mapa, havia mesmo mapas onde Cabo Verde nem sequer aparecia. Há imensas pessoas que contam a diferença de chegar a um aeroporto com um passaporte de Cabo Verde antes e depois do sucesso da Cesária. O nome dela era mais conhecido que o do próprio país. Estamos a falar dos anos noventa, de um país que tem a maior parte da sua população emigrada. Na diáspora, os cabo-verdianos viviam maioritariamente em condições desfavoráveis, em bairros periféricos e marginalizados. De repente, passam a ter um nos maiores palcos do mundo. Isto é um motivo de orgulho, de construção de identidade. E uma inspiração - a Cesária mostra que a vida de qualquer um pode mudar a qualquer instante, independentemente de onde vens. Acho que esse papel da Cesária na vida dos cabo-verdianos é muito importante.
Toda a construção da identidade cabo-verdiana que existia previamente, proveniente dos intelectuais do século vinte, sobretudo homens (uma lista infinita de homens), muitos são de famílias assimiladas. Quase ninguém vem de ambientes pobres, porque ese trata de rapazes com acesso à escola, e quem podia estar nas revistas, nas tertúlias, num Mindelo de cultura e sofisticado. Na área da cultura, Cesária é a primeira mulher do povo a internacionalizar-se.
Há um momento muito interessante no funeral da Cesária que é protagonizado pelo pintor Tchalé Figueira. Quando o corpo é levado para o Palácio, há uma série de discursos – e a Cesária detestava discursos e nunca se envolvia em política. Então, o Tchalé que era seu amigo, levanta-se e diz algo como “pela primeira vez este palácio é realmente o Palácio do Povo porque a Cesária era o povo”.
Gostava que falasse da montagem tão definidora deste e de todos os filme, aqui pela belíssima mão de Cláudia Rita Oliveira no filme. Uma das decisões que terão tomado, foi o facto dos testemunhos não aparecerem convencionalmente com as caras só estamos a ouvir as vozes. Ao mesmo tempo senti, como espectadora que não precisava de ver as caras porque as vozes me faziam viajar pelas imagens com uma intensidade muito maior do que se tivesse acesso ao dono daquela voz. Isso provoca a sensação de que nunca saímos da Cesária. Apesar de serem outras pessoas que nos estão a contar a Cesária, é a Cesária dessas pessoas. Focamos na protagonista, enquanto ouvimos vários contributos. Como surgiu essa ideia?
De facto, trabalhar com a Cláudia Rita Oliveira é um privilégio. Discutimos imenso o filme e, curiosamente, estávamos quase sempre de acordo. Trazia a ideia de não usar talking-heads desde a pré-produção. Na verdade, nos meus trabalhos anteriores, também não tinha usado talking heads. Na montagem, como os planos de entrevista tinham situações incríveis, ainda discutimos o assunto, mas foi muito claro para as duas (para mim e para a Cláudia), por vários motivos, que o filme não pedia planos de entrevista. É uma opção narrativa e estética. O filme é sobre a Cesária, enquanto mulher e enquanto artista. Quisemos que o espectador estivesse com a Cesária, entrasse na sua casa, embarcasse nas viagens, nas digressões, nos palcos… que entrasse no seu universo, nas suas dores e nas suas alegrias. Assim, não fazia sentido desviar a atenção da Cesária. Todas as pessoas que entram no filme são importantes na medida em que nos revelam algo sobre Cesária ou que ajudam a contextualizar. Estão a falar sobre algo que foi importante há muito tempo, não nos fez sentido mostrá-las hoje. Preferimos vê-las em imagens de arquivo.
É também uma questão da economia de recursos de imagem. Ou seja, está a utilizar o tempo da narração dessas entrevistas, os áudios em simultâneo com imagens que dão muito alimento ao filme.
Por outro lado, foi a voz que levou a Cesária ao mundo. Foi a voz que definiu a vida desta mulher. O destino desta mulher. Portanto quisemos que também o filme fosse um “filme de voz”.
A voz de Cesária Évora é omnipresente nas esplanadas do Mindelo. Porque é que foi um assunto tão apaixonante para si?
Há muitos anos que ia a concertos a Cesária e ouvia a sua música. Há muitos anos que oiço histórias da Cesária Évora por pessoas próximas a ela. Há muito tempo que sentia que queria contar histórias de pessoas e gosto de contar histórias de mulheres. E a Cesária é uma história incrível para ser contada. Eu ouvia tantas histórias sobre ela que comecei a ter um fascínio enorme pela personagem e vontade de saber mais. Para mim, normalmente os trabalhos e os filmes partem de uma curiosidade. Quero saber mais sobre um tema. Então começo a ir à procura. Foi isso, eu queria saber mais sobre a Cesária. Queria conhecê-la melhor. E além disso acho que é muito importante que a sua história seja conhecida pelas gerações mais jovens, é uma história inspiradora, é uma história que nos faz pensar no mundo que nos rodeia e no nosso papel no mundo. Acho que é uma história que dá orgulho ao mundo lusófono, mas sobretudo a Cabo Verde, aos cabo-verdianos. Falei muito sobre isso com a Janete, a neta da Cesária, este filme é também um filme para os meus filhos e para os filhos dela. Foi também a ideia de levar outra vez esta história ao mundo, não só a voz, mas a história, porque a história dela é muito importante e é muito importante conhecermos a história dela para ouvirmos a sua voz de outra forma e entendermos aquela intensidade. Chegou uma altura em que para mim era impossível não fazer este filme.
Acha que a memória da Cesária é devidamente reconhecida em Cabo Verde e em Portugal?
Acho que há ainda um longo caminho a percorrer. Por exemplo, faz-me imensa impressão a casa da Cesária não ser melhor aproveitada, não haver realmente um museu Cesária Évora. O sonho da Cesária foi ter aquela casa, seria muito interessante se ali pudesse funcionar um museu. Os turistas têm uma curiosidade muito grande em relação à casa da Cesária. Ainda este ano, no verão, o neto da Cesária fez anos, e fui à festa. Às tantas, estamos na varanda, junto ao quarto da Cesária, música da Cesária a tocar, comida e bebida, e aparecem uns franceses a perguntar se aquela é a casa da Cesária. Alguém diz para subirem. Estavam loucos, só diziam como é que poderiam regressar a França e contar que estiveram na casa da Cesária a beber e a dançar. O que existe agora, a meu ver, gera era uma certa confusão. Há um núcleo museológico numa casa que foi habitada pela Cesária e depois há uma exposição no palácio. O que é que vale? Onde é que as pessoas devem ir? Acredito que a imagem da Cesária ainda tem muito para dar a Cabo Verde, se for bem usada. E creio que ela gostaria disso porque Cabo Verde não é só o chão que pisava, é o ar que respirava. Nas imagens de arquivo, ouvia-a muitas vezes dizer que gostaria de ajudar à existência de uma escola de música.
Em Portugal temos a maior comunidade cabo-verdiana e décadas de história de “relação” com África. Sendo a Cesária tão emblemática e alguém que contribui tanto para a autoestima dos cabo-verdianos. E sendo Portugal um palco de grandes desigualdades raciais, a maior parte dos cabo-verdianos vive em más condições. Há uma certa segregação na cidade entre quem desfruta da cidade e quem nela trabalha. A música sempre foi um dos poucos setores de reconhecimento de cabo-verdianos, além do desporto. Durante anos só se reconhecia esse lado.
Felizmente hoje já tens muitas pessoas que escapam a isso, já há cabo-verdianos a dar cartas.
Tantos cabo-verdianos construíram e contróem a cidade para um certo tipo de cidadão viver, e vivem em zonas “dormitórios” da área metropolitana sem desfrutar da cidade, há muitas décadas. Quem é que vai limpar a cidade? Quem é que aguentou durante a pandemia? Quem é que pôde ficar em casa? O fenómeno da Cesária mostra essa força e muita gente se identifica com ela. Não devia ser só algo de nicho de Cabo Verde, é um fenómeno que Portugal também devia abraçar e reconhecer, sem se apoderar, claro.
Na semana passada fui apresentar o filme ao estabelecimento prisional do Linhó. Grande parte da população prisional é de origem cabo-verdiana e foi muito bonito ver a reação e ver como aqueles jovens saíram dali emocionados a relembrarem as avós, com orgulho das suas raízes. A Cesária tem essa força. A Cesária une.
Que bom! O filme devia circular pelas escolas da área metropolitana de Lisboa. É a maior homenagem que pode fazer. Institucionalmente poderia haver mais reconhecimento a figuras cabo-verdianas. Por exemplo, em Lisboa não há uma única estátua de Amílcar Cabral, nem mnemónicas de figuras que tiveram um papel gigante na história, movimentaram e agitaram águas. Cabo Verde está aqui também.
Cabo Verde está no mundo. Está aqui, está em França está em tantos sítios. O filme é isso, é sobre a Cesária e sobre Cabo Verde.
A Cesária tinha uma relação estranha com Portugal, não é?
Ela tinha muita noção, era muito consciente. Não se sentia acarinhada aqui. Não entra no filme, mas vi um diálogo enorme entre ela e duas pessoas. Ela está a falar muito nesse dia e pergunta sobre os seus discos em Portugal e sobre não ter o mesmo sucesso que em França. Dão-lhe várias explicações, mas ela não esconde a mágoa, uma mágoa que vem de longe.
E nunca houve muito respeito também pela obra dela aqui antes do fenómeno internacional.