Apresentação de Ana Paula Tavares no Lisbon Revisited 2019

Sempre me espantou o brilho nos olhos quando alguém falava de Angola, de distintos tempos e circunstâncias. Depois passei a entender esse brilho no olhar: era o de quem tinha mergulhado fundo nas suas águas, do Bengo, do Kwanza ou do Luena. É que Angola, na sua desmedida intensidade, sempre nos vai impingindo insondáveis perguntas. O facto do brilho dos olhos de Ana Paula não ter desvanecido ao longo dos anos, manifesta a sua imensa resistência e curiosidade.  

Pertencer é também ser estrangeira e reconhecer a nossa ignorância. 

Há obras que poderiam ser lidas como programa, como se uma linha invisível as percorresse  fortalecendo-as, ainda que só perceptível na inacabada tecitura. Não fosse o destino composto por aquilo que quisemos e soubemos fazer. Por muitas voltas que se dê, o nosso lugar espera-nos ou já lá estamos há muito tempo e O lugar pode ser o de uma infância. E Ana Paula regressa muito ao seu período inaugural. Nasceu no Lubango, província da Huíla, sul de Angola, África subsariana. Respirava-se ainda ares de uma sociedade colonial apropriadora, na qual a pequena Ana Paula observava com encanto os pastores Nyaneka de quem ia apreendendo a música, cheiros e mistérios que lhe ficariam para mais tarde decifrar, ou aceitar a sua razão de ser. De um lado, a família em processo de assimilação — a sociedade europeia naquele Lubango de um planalto verde e frio de excepção, abundante fruta e mercearias portuguesas. Do outro, os das bualas, a sociedade africana ignorada pela cidade europeia. Mas a marca do interdito apenas engrandeceu o desejo de conhecer quem eram esses e quem eram todos num território feito de diferentes nações à deriva numa ideia de Estado-nação, de homem novo e tempo novo. Ali ganhou a orientação de vida: o sul, o sal, o sol. O Sul que contraria e resiste quando se une e que, mesmo esmagado, reergue a cabeça.

Marta Lança e Ana Paula Tavares, fotografia de Vitorino CoragemMarta Lança e Ana Paula Tavares, fotografia de Vitorino Coragem

O despertar para a palavra deu-se assim pela oralidade, a atraente e ininteligível música das línguas. Trazendo aqui algumas das suas deambulações biográficas, lembro o medo que contou sentir no Huambo (zona por demais martirizada no xadrez da guerra fria, civil, fraticida — tudo isso junto), onde pôs à prova os limites da coragem física. Ali ensinou mais-velhos e crianças a ler. No Kwanza-Sul percebeu os vários ritmos e a imponência de um país que cultiva o riso e a memória curta para se defender dos dramas que o desumanizam: a escravatura, o colonialismo, a dominação, os pequenos e grandes poderes, os oportunismos e a ignorância. De como é vertiginoso o urdir da história no quotidiano. A geração à qual pertence preocupou-se em recuperar a memória cultural perdida nessas e noutras violências, também com o olhar vívido e intrigante das ingenuidades e militâncias da independência. Pelo meio, fugas de percorrer rios e montanhas, perseguições e emboscadas, malembas da guerra civil. Era preciso reaprender as reconfigurações impostas pela guerra e desencantar alguma beleza no seu ruído louco. Porque a vida continua mesmo assim. Nasceu-lhe a filha, novo sentido de si, mas também medos e diabos ampliados. Desceu a Benguela, continuando a aprender a poética do espaço. E depois a dança tentacular de Luanda, que convive bem e mal com os seus fantasmas. E em todos os cantos do país ia reconhecendo a força das mulheres, ganha pão não raramente em desespero, amparando os filhos do mundo, cuidando tão pouco de si. 

Ana Paula escreveu desde sempre mas decide publicar a partir dos 30 e poucos anos. A maturidade a querer fazer-se comunicar. O livro de poesia: Ritos de Passagem, em 1995, o seu livro de iniciação e coincidentemente sobre rituais de iniciação, foi recebido em Angola com adjetivados mimos de “ressabiada”, e “pornógrafa”. Velhos e novos equívocos, explica a autora: é que a sensualidade da mulher parece ainda só funcionar como objeto de desejo nunca como voz desejante. E o feminismo em Angola começa agora a erguer-se como movimento mas antecedem-lhe todos os gestos subversivos de inúmeras mulheres, que arriscaram bastante. Este foi um deles. Seguiram-se livros de poesia como O Lago da Lua (1999); Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos (2001), Ex-Votos (2003), Manual para Amantes Desesperados (2006). Em prosa, Sangue da Bunganvília (1998), Como Veias Finas na Terra (2010) e ainda, em parceria com Manuel Jorge Marmelo, Os Olhos do Homem que Chorava no Rio (2005) e Verbetes para um Dicionário Afetivo (também com Ondjaki e Paulinho Assunção (2016). Os títulos das obras de Ana Paula Tavares desvelam já um pouco da sua poesia, que é em si afecta ao acto de nomeação: frutos, pessoas, lugares, ciclos e gestos invisíveis. 

As crónicas são centenas mas nomeio a colectânea  A Cabeça de Salomé (2004) e as crónicas ilustradas pela mão plástico-poética de Ivone Ralha, crónicas que tive o prazer de receber semanalmente no Rede Angola, jornal de grande liberdade de opinião e de linguagem onde trabalhei. 

A sua vida fez-se também de experiências profissionais no sector cultural em Angola, onde trabalhou no Ministério da Cultura no Kwanza-Sul; no Museu Nacional de Arqueologia, em Benguela; no Património Cultural em Luanda; na Secretaria de Estado da Cultura, em Luanda.

Podemos encontrar textos seus dispersos em antologias internacionais. Em Portugal é, há largos anos, professora na Faculdade de Letras e investigadora. Licenciada em História, doutorou-se em Antropologia (Etnografia), com enfoque nas sociedades lunda e tchokwé, ricas em práticas sociais e artísticas. Sociedades de fronteira, diríamos, entrelaçando o império lunda e corredor de 3 ou 4 impérios coloniais, belga, britânico, português. Zona que apela a vícios extrativistas, portanto. Desses povos interessou-lhe precisamente o confronto com um modelo de exploração singular da história colonial em Angola que teve o seu ex-líbris na companhia Diamang. As pesquisas académicas, sejam históricas, linguísticas e antropológicas de Paula Tavares têm ecos na sua voz poética, desde o processo identitário cultural de Angola, traduzido no detalhe dos elementos tradicionais, as influências da modernidade, os rituais, os tempos em justaposição (o tempo mítico circular e um tempo urbano, associado a uma certa ideia de progresso), o olhar local e global, e um interesse especial para os que ficam de fora da equação do poder, aqueles que mantêm modos de ser e pensar com quem teríamos tudo a aprender, mas que não são tidos nem achados para a abstrata ideia de cidadão. 

Na literatura, além de autora, participa em vários júris de prémios literários, mantendo-se atenta às gerações mais novas, como por exemplo o diálogo epistolar que manteve com o escritor Ondjaki nas páginas do Jornal de Letras.  De prémios e distinções destaque-se o Prémio Literário Mário António, da Fundação Calouste Gulbenkian (2004), o Prémio Nacional de Cultura e Arte, em Literatura (Luanda, 2007) e o Prémio Internazionalle Ceppo/Pistoia, Firenze (2013). 

De influências literárias angolanas refira-se à cabeça David Mestre, Arlindo Barbeitos e o eterno amor partilhado por Ruy Duarte de Carvalho, mas ainda os brasileiros Jorge Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Murilo Mendes, Clarice Lispector, o mexicano Octávio Paz e o nigeriano Wole Soyinka.

E agora pedia-lhe para comentar este excerto da crónica Utopias de 98, “os poetas têm sobre o comum dos mortais a  grande  vantagem  de  poder  cultivar,  na  sua  grande  lavra  de palavras,  passados  intactos  que  visitam  e  tratam  para  depois distribuir  por  pequenos  trabalhos  que  nos  devolvem  a  um  mundo mais-do-que  perfeito  e  entretanto  perdido.”

Lisbon Revisited, 29/6/2019.

 

 

por Marta Lança
Cara a cara | 21 Agosto 2019 | Ana Paula Tavares, Casa Fernando Pessoa, Literatura, poesia