Superintensiva

Excerto da conferência-performativa apresentada no Festival Alkantara de 2020, no Teatro São Luiz, como programa da rede TERRA BATIDA.

Texto, conferência-performance – Marta Lança

Ensaio visual – Maria Mire

Sonoplastia – Nuno Morão

Atravessemos um olival de vários tons e intensidades. Importa fazê-lo aqui, no centro de Lisboa, onde as oliveiras são discretas e ornamentais. Por exemplo, as do jardim das oliveiras no CCB, ou em frente aos Jerónimos. Não se pode pensar nisto sem os séculos de viagem, depredação e ocupação imperial que nos antecedem.

Ou a memória da ruralidade nos arrabaldes da cidade, por exemplo nas azinhagas de Carnide.
Ou as palavras que Jesus Cristo terá dito no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, de onde foi levado para o grande sacrifício.
Enfim, por todo o lado, a oliveira não se livra da história.

Uma árvore secular (e bíblica!), parente pobre da agricultura, ultimamente afobada em superintensivas produtividades. Os seus ciclos de vida são acelerados, a curva do percentil estagna cedo. A produtividade, ora aí está. Quer dizer, passa-se há algum tempo no novo universo agrícola dos regadios do Alqueva.

A equação é mais ou menos esta:

Por um lado, lucros maximizados por fundos de investimento. Por outro, solos exaustos de difícil regeneração.

Ou: Transformações físicas, humanas, laborais, de uma região. Ou: Do celeiro do país ao olival intensivo. Ou: Do sequeiro ao regadio. Ou: Do dourado da seara ao verde-petróleo do olival. Ou do verde, ao preto para chegar ao dourado do azeite. Ou Como gerar riqueza semeando pobreza. Ou Do antigo cerealense ao megalatifúndio regulado por dinheiros internacionais. Ou Ninguém defende a monocultura mas para lá caminhamos.

Ou uma singela pergunta: Como chega o azeite aos nossos pratos?

E ainda uma constatação pessoal: uma lisboeta vai viver para o interior e apercebe-se de que o país não é só paisagem.

A sul do Tejo há quem grite a palavra ecocídio a propósito do olival, amendoal, e outras experiências em modo superintensivo. Ecocídio: destruição em larga escala do meio ambiente. Sobrexploração de recursos não-renováveis. Nada posso acrescentar ao que se pensa e age sobre estes problemas, antigos, agora na boca de mais gente com noção de que será melhor viver num bom ambiente… Agradeço a camponeses, cientistas, jovens, anónimos, comunas e comunidades, ativistas, e a todas as micro-experiências que denunciam, boicotam ou mitigam o modelo económico e social que nos fez chegar aqui.

Aqui onde? Aqui onde a situação é grave!

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O GAIA Alentejo convoca para a manifestação em Beja “Travar o Ecocídio”, em setembro. Cita-se um texto de Filipe Nunes, do jornal Mapa, intitulado

“Queremos Respirar!” 

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Em que é que o eco de ecocídio nos ecoa?

Quando a nossa avó decapitava galinhas, o meu irmão implorava: “- Não matem os animais, vamos comprar comida ao supermercado.”
Quando é que isto aconteceu? Não vermos a morte de outros para vivermos. Desejar não saber da destruição à volta da nossa bolha.

Terá sido quando os nossos pais vieram do campo para a cidade?
Terá sido quando o polegar começou a tocar mais no ecrã?
Bichos só pets, selvas só urbanas. Nas casas, limpamos tudo o que lembre o pó de onde vimos. Porquinhas vão à escola, gatos usam botas, tocam piano e falam francês, grilos são consciência, Elsa é nome de depressão, Katrina de furacão, Bárbara de tempestade. Uma selvajaria de país. Elementos da terra e do mar, recursos. As pessoas, users. As identidades, objectos de consumo.
Consumir, consumir para estabilizar esta destabilização filha da puta.

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O futuro agora:

Monotorizar plantações e lavouras. Drones, satélites, GPS e visão aérea dos campos. Sensores medem temperatura e humidade. A vida emocional dos porcos e a qualidade da fruta vigiadas por ecrãs. Pepino e milho tecnológicos. A mosca, cuja picada afecta a azeitona, combatida a feromonas.

Chama-se “Agricultura de precisão”.
Oh pá! Também ninguém queria voltar à força braçal de sol a sol.

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Em 2002, bum! Fecham-se as comportas do maior lago artificial da Europa: Alqueva. Guterres ainda não era dos capacetes azuis mas tinha na cabeça um capacete de engenheiro ao exibir o esplendor das obras públicas. Investido TANTO dinheiro público numa barragem, eis que havia água para resolver o problema da seca e os seus impactos e pôr o rural a produzir à grande.

Qual é mesmo a questão, agora que já não falta água?

“É pela água que ainda se mata e morre no interior, companheiros. Enterremos a foice e o martelo, erguendo de novo as enxadas!”

As coisas descontrolaram-se. Como a terra já se vinha esgotando na Andaluzia, assaltou-se o Alentejo. O modelo intensivo cresce ao ritmo de mil hectares por mês.

Já cobre cerca de 75% da área de rega no perímetro do Alqueva. É o vale tudo.

Instalar um olival é considerado “reflorestação” e combate à desertificação LOGO, é uma operação subsidiada por fundos comunitários.

A terra perdeu a sua função social, avisou uma eurodeputada comunista.

A terra e as suas infinitas funções: é de quem a trabalha, é um activo na bolsa dos agrário- milionários, é lugar de comum e da partilha, o húmus da terra é um liquificador de mortos e vida.

E a água não era para todos? A água flui, como a finança.

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Alentejanos no seu montinho, na sua aldeia e comunidade. Gente reservada e de modos antigos. Grandes extensões de terra. Baixa densidade populacional, pirâmide etária a dar para o idoso. Gabados os vinhos e a gastronomia, o relax ideal para escapadinhas da cidade. Mas afinal o Alentejo é uma reserva-laboratório de experiências político-paisagísticas. As suas personagens resistentes à miséria, seca, despovoamento e exploração, tornam tudo isto uma distopia agrária, digamos.

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Este projeto começou a ganhar forma na Ásia menor durante o Paleolítico Superior. Este projeto começou a ganhar forma na minha cabeça, quando procurava qualidade de vida, isto é, ar e espaço, para criar uma criança. Ourique, capital do porco preto e seus lagartos, secretos, plumas e bochechas. Num monte habituado à cultura de sequeiro, as flores silvestres brotam dentro e fora do murinho de pedra-sobre-pedra.

No caminho de carro, vejo estacas branquinhas alinhadas ao estilo cemitério americano. Uns meses depois, sebe-oliveiras atrofiadas no tamanho e na copa, de produção precoce, assistida por herbicidas e agroquímicos para desinfestar e adubar. Fecho os vidros ao fumo pestilento do bagaço de azeitona, usado como combustível e biomassa. Imagino a contaminação no fumo e nas linhas de água, na roupa, nas paredes, nos pulmões. Imagino o abate às azinheiras adultas para fixar a monocultura de olival. Não se vê gente, mas sabemos da exploração laboral e da negligente saúde pública.

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Recapitulando:
1. Desígnio predador da agroindústria: ar e tempo contaminados.
2. Resiliência da oliveira, guardiã de línguas proféticas e do Mediterrâneo, madrinha dos nossos re- fugados. A torção do seu tronco e rugas ancestrais. Símbolo de longevidade. Árvore perene, raízes compridas de seis metros que absorvem água e nutrientes minerais. Árido ou pobre, qualquer solo que tenha carbonato de cálcio faz uma oliveira viçosa. Para além das azeitonas e azeite, serve para lenha, carvão, sombra, combustível, iluminação. Usos terapêuticos e estéticos.
3. As azeitonas gostosas, sobretudo as galegas. Curtidas com pão, queijo, a adornar o Bacalhau à Brás, o bitoque e as pataniscas. Mas, tal como o vinho está para a uva, o que importa é fabricar azeite e colocá-lo no mercado.
4. Os maravilhosos encantos do azeite extra-virgem: sabor, tempero e saúde.

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Através das oliveiras é também o caminho dos amantes. No filme de Abbas Kiarostami, os actores interpretam um par que se casou pouco depois do tremor de terra de 1992. Num longo plano-sequência, o actor persegue a actriz tentando persuadi-la que também eles deviam casar.

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“I can’t breathe”, disse Eric Garner, pouco antes de morrer estrangulado às mãos da polícia em Nova Iorque, 2014. “I can’t breathe”, disse George Floyd Jr. estrangulado por um polícia em Minneapolis 2020.

Queremos respirar, dizem os milhões de contaminados por Covid 19 e os trabalhadores de máscaras 8 horas por dia.

Queremos respirar, gritam os 80 habitantes de Fortes, em Ferreira do Alentejo. Contra os fumos das chaminés da fábrica de um grupo espanhol, a menos de cem metros das suas casas. E Maria Joaquina Camacho utilizou a expressão “o lado negro da economia”, narrando uma manhã, no meio da névoa, mais uma manhã de um planeta danificado.

As oliveiras também devem ter falta de oxigénio assim tão apertadas.

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A revolução do olival pelos optimistas do progresso: Se uma campanha óptima de azeitona daria em média três toneladas, um hectare de olival intensivo e superintensivo chega a produzir 12 toneladas. Em 10 anos de cultura, obtém-se a mesma produção acumulada de um olival tradicional de sequeiro em 70 anos. Portugal passou de importador crónico a quinto maior exportador mundial de azeite.

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Segundo o geógrafo Orlando Ribeiro “civilização do granito” é característica do norte do país, à planície do Alentejo corresponde a “civilização do barro”. O barro alentejano foi-se moldando conforme interesses da época e a sua estrutura fundiária faz a história do território.

A terra é um palimpsesto de violência. Na ditadura, impôs-se a desmatação das charnecas e a monocultura do cereal, - a famosa Campanha do Trigo, nos anos 30 conduzida por Linhares de Lima.

Com o fim da Reforma Agrária, os campos ficaram ao abandono e improdutividade. Subsidiados alguns terrenos de pequena e média dimensão para reflorestar com sobreiros, azinheiras e pinheiros. As grandes herdades aguardavam em pousio pela barragem do Alqueva e os seus transvases de água a terrenos a bem da produtividade agrícola. As culturas intensivas deste regadio, é vê-las por todo o lado, à beira das estradas, das aldeias, a interferir com o nosso imaginário de um Alentejo que, em parte, já não existe.

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15 bilhões de árvores são derrubadas todos os anos, 100 milhões de novas oliveiras foram plantadas para a monocultura.

“Quando as árvores que ainda resistem desaparecerem, não haverá outras para as substituir”. E ainda: “A árvore não morre num ano, mas está condenada.”

E ainda: “A floresta do sul não arde como no centro do país, mas vai ardendo sem se ver”. É como o amor.

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Gigantes da olivicultura desta década:

Seis grupos detêm o olival Elaia/ Sovena / Oliveira da Serra - 10 mil hectares; De Prado - 10 mil; Olivomundo 5 mil; Innoliva 3 mil; Bogaris 3 mil. Beneficiários do investimento público 2,5 mil milhões. Grandes embaixadores de azeites do mundo: Sovena / Oliveira da Serra e Gallo/ Jerónimo Martins. E deixo por listar: Áreas plantadas por herdade; Produção anual em toneladas de azeitona; Produção de litros de azeite; Exportações.

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O meu monte fica nos limites de uma Zona de Proteção Especial, também limite do Baixo Alentejo, a caminho do Algarve. A vila é feia, sentimo-nos no universo pastoral Twin Peaks, demora a ganhar confiança. A vinda de uma criança religa à terra e apazigua o olhar desconfiado perante os citadinos que ocupam parte da província, consultam o Borda d’Água e esmeram-se enquanto neo-rurais. Ajudou ainda o ritual de almoçar sozinha numa tasca, ouvindo as novas do mundo agrícola e fazendo caricaturas à minha maneira.

Uma casa no campo habita-se devagar. Nunca nunca há-de estar pronta, mesmo quando eu for velhinha, a ler Ellena Feranti à salamandra. Comprei-a em ruínas. Foi preciso: Deixar o passado correr no lençol freático até ao poço que abastece a casa. Desenhar canais de esgoto e de luz, picar a cal, rebocar, colar azulejos, erguer telhados, descobrir o chão antigo sob o cimento. Lançar sementes que não pegaram à primeira. Tomar banhos em barragens cada vez mais minguadas. Viver ciclos repetidos de mínimas diferenças: novos ninhos de cegonha, a cada ano mais sedentárias, o manto à volta: do verde ao amarelo ao castanho; arrancar insistentes ervas selvagens. Na primavera preparar a horta com o vizinho que dá avio de tomates, cebolas, pepinos, courgetes e melancias. Foi preciso: jornadas de trabalho, fogueiras com cânticos desafinados, muita aguardente, muitos cigarros, passagens de ano, retiros de grupos feministas, autonomistas, turistas. Uma gravidez de risco, abrandar para ler romances. A filha arrancou para a vida com uma forte relação com o campo. Fez muitas sestas, brincadeiras, foi à escola na carrinha da Câmara por terras batidas. Ali moraram ingleses da BBC, paulistas fugidos do massacre do Brasil. A Sarah projectava casas de taipa, montou um estúdio de tecelagem: cardava lã das ovelhas do vizinho, fiava e tecia em máquinas construídas por si.

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Rebentou a Covid 19 e o tempo bizarro. Descobertas, ansiedades, apelos da infância, perspectivar a vida, perceber o que não se quer. Na alegria provisória do desconfinamento, a residência artística do TERRA BATIDA ajudou a criar sentidos para a paisagem onde vivia. O Alentejo não pode ser Terra Queimada.

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Entretanto uma pergunta se impõe:
— Porque há tantos famosos Oliveiras em Portugal?
O ditador Oliveira Salazar / o realizador Manuel de Oliveira / o cantor Adriano Correia de Oliveira / a cantora Simone de Oliveira / o escritor Carlos de Oliveira / o opinador Daniel Oliveira.

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Numa reportagem de 1979, mulheres apanham azeitona numa cooperativa, enquanto uma delas vai distribuindo água no canteiro:
— Os homens ganham mais cá gente, também o trabalho é diferente, eles andam em cima das árvores, nós no chão.

—As mulheres não varejam, rastejam.
— Com a Reforma agrária só não trabalha quem não quer. Trabalho duro já antes o era. Eu trabalho desde os 12 e criei 4 filhos.
— É por empreitada. Apanhamos a quantia de sacos, depois vamos para casa fazer o nosso governo. —É conforme a fartura da colheita. É conforme o trabalho quiser. É de sol a sol.

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Conto 37 oliveiras no meu pequeno terreno. Cada oliveira em bom estado equivale a três litros de azeite no lagar da cooperativa. Prefiro fazer conserva. Colhemos as azeitonas das 5 oliveiras férteis, entre outubro e novembro, ficam engelhadas se colhidas tarde de mais. Ano bom ano mau, safra e contra-safra. Este ano a colheita está difícil para toda a gente. O mal é geral, diz-se.

As oliveiras lá estavam mudas e quedas. Troncos corroídos com líquenes, nenhum vestígio de azeitona, folhas verde-petróleo como cardumes à lua, zero produção de azeitona.
Falta-me a sabedoria da poda, que poderíamos aplicar para a vida. Cortar ramos da nossa árvore para dar mais força aos frutos.

Especulou-se: Terá sido o fenómeno limpeza, quando o mau tempo coincide com a altura de mudança da flor para o fruto? Eu bem vi o Candeio (flor) em abril. Terá sido a bactéria Xylella, que afectou tantos olivais do sul da Itália? Será a liquidação de recursos hídricos pelas culturas intensivas?

Plantação. Cana-de-açúcar, café, palmal, soja, milho, amendoal, eucalipto, algodão, alfala, abacates. Cultivar constantemente, sem pousio, produzir para as cotas de mercado. Morrer cedo e espalhar morte.

Moda alentejana

“Oliveiras, oliveiras/Oliveiras, oliveiras/Ao longe parecem rendas/Enlevem-se nas pessoas/Enlevem-se nas pessoas/Não se enlevem nas fazendas.”

 

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por Marta Lança
Mukanda | 6 Janeiro 2022 | agricultura superintensiva, azeitona, monte, neo-rurais, oliveira, Ourique