A memória portuguesa é indissociável da presença negra. Paula Cardoso

Paula Cardoso é jornalista, empreendedora e ativista afrodescendente. Com raízes moçambicanas, tem um percurso marcado pela comunicação, e licenciatura em Relações Internacionais. Fundou o Afrolink, uma plataforma dedicada à promoção de pessoas negras e à discussão de temas ligados à representatividade, equidade e oportunidades. Apresenta o programa de TV Rumos, é cronista da revista Brasil Já, a que junta um espaço de opinião no Gerador. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que contribui para revigorar a democracia portuguesa, e é Embaixadora do European Climate Pact, compromisso de combate às alterações climáticas. Paula fundou O Tal Podcast onde, com Georgina Angélica, conversa, com convidados sobre experiências negras, identidade e desafios sociais, sempre com olhar crítico e pessoal. 

Paula Cardoso, foto de Sara MatosPaula Cardoso, foto de Sara Matos

Qual o seu percurso, circulação pela cidade? Que transportes usa?

Vivo numa zona bastante central de Lisboa, com acesso directo às linhas vermelha e verde de Metro. Por isso, este acaba por ser o transporte preferencial para o meu dia-a-dia. Mas, como as nossas quatro linhas não abrangem toda a cidade, muitas das rotas que faço regularmente exigem também o recurso à Carris e à CP. Hoje, por exemplo, tenho de ir a Alcântara, e há um par de dias tive um compromisso em Benfica, destinos que pedem Metro e Carris. Acrescento que, em várias situações, a ausência de ligações eficazes leva-me a recorrer à oferta TVDE. Acontece, por exemplo, quando me desloco à freguesia de Santa Clara.

Quais são os problemas mais urgentes de Lisboa?

Lisboa vive em estado de falência social, porque a gestão da cidade transformou-a num produto para turista ver e sector privado enriquecer. Basta circular pela cidade para perceber o vazio humano que a habita, efeito de um cúmulo de escolhas políticas que beneficiam negócios e prejudicam as pessoas. Por isso, neste momento, o problema mais urgente é de liderança política e resolve-se nas eleições autárquicas de 12 de outubro. É imperativo votar para retirar Carlos Moedas da presidência da Câmara Municipal de Lisboa, e devolver a cidade às pessoas, escolhendo uma candidatura de esquerda. Caso contrário, continuaremos a padecer dos mesmos problemas, enquanto o executivo se promove em summits e hubs de vaidades. Insisto que a cidade tem de ser devolvida aos cidadãos, e isso passa por: casas para viver, e a preços comportáveis; uma rede de transportes com oferta ajustada às necessidades – de rotas e horários; a implementação do Programa Municipal de Educação Anti-Racista; a limpeza  do espaço público de acordo com a sua utilização, e não segundo ritmos desligados da realidade; a humanização dos bairros de habitação municipal, mediante a adopção de processos participativos – nomeadamente assembleias de cidadãos – para gestão partilhada entre autarquia e moradores; acesso dos munícipes a espaços públicos, como teatros e mercados, para programação de actividades que agreguem à cidade a alma que lhe falta; o regresso reforçado do Orçamento Participativo.

O que acha da situação da maioria da população africana e afrodescendente na Grande Lisboa?

A população africana que habita a Grande Lisboa reconfigurou-se nos últimos anos, com os novos fluxos migratórios oriundos de países africanos francófonos e anglófonos. Hoje, temos uma Lisboa Africana que fala português, inglês e francês – isto nomeando exclusivamente as línguas coloniais –, e com a qual não tenho contacto, inquinando qualquer análise da situação que possa fazer. Em todo o caso, partindo do princípio de que estamos a falar de uma população maioritariamente negra, onde me incluo, o que salta à vista é o reforço das fronteiras raciais, agravadas por fronteiras linguísticas, religiosas e administrativas, que agregam camadas de exclusão às nossas vidas. 

Que lugares escolheria como modo de Memorialização da presença africana e da história colonial? Porquê?

Escolho a Assembleia da República, por ser a Casa da Democracia, sistema político que o país deve às lutas de libertação africanas. Nunca é demais repetir: o 25 de Abril nasceu em África.

Como é que as pessoas negras têm contribuído para o debate sobre a memória em Portugal?

Antes de tudo, com presença. Sou filha de uma geração que se construiu a partir de um necessário distanciamento dos espaços de liderança branca, o que não deve ser confundido com falta de agência política. Pelo contrário. Nos silêncios e nas ausências houve e há estratégias de sobrevivência e resistência. Aliás, como sequer pensar numa aproximação quando todas as memórias da relação com Portugal se construíram num contínuo de sangrentas invasões de territórios, grotescos abusos sexuais, massacres e animalização de povos? Há séculos que contribuímos com as nossas vidas, por isso a nossa existência, por si só, é “O” debate. A memória portuguesa é indissociável da presença negra, e a presença negra é indissociável das lutas pelos Direitos Humanos. 

Acredita que os movimentos e pessoas negras estão a ter mais voz no espaço público em e sobre Lisboa? O que tem mudado?

Sei que mais e mais pessoas negras estão a projectar a voz no espaço público, em Lisboa e sobre a cidade. Observo-o nas diferentes manifestações que nos têm mobilizado; na diversidade de colectivos e produções negras; na programação de inúmeros espaços culturais; e até em iniciativas institucionais, por mais tímidas e inconsequentes que possam ser. A mudança que tem vindo a acontecer é reflexo de décadas de lutas negras que, nas gerações mais novas, já beneficiárias de mais e melhor acesso à Educação, se traduz muitas vezes numa maior consciência política, e num compromisso para a mudança. Assinalo o importante contributo não apenas do movimento associativo, mas também da academia – sobretudo a partir de pesquisas de investigadoras e investigadores negros –, consistentes na valorização e promoção das agendas negras. Com os nossos pensamentos e práticas, somamos e multiplicamos vozes.

Lisboa é uma cidade segregada? Que forma toma essa segregação?

Lisboa é uma cidade evidentemente segregada, sempre foi. Há várias fronteiras entre a Lisboa de Trabalho, a de Residência e a de Lazer, impedindo que se misturem. Hoje, além das históricas e crónicas segregações raciais e de classe, observa-se uma crescente segregação linguística. Isso comprova-se não apenas pela dificuldade de acesso à habitação – engolida pelo turismo e vistos gold –, mas também pela impossibilidade de circular por certos espaços comerciais da cidade sem um domínio mínimo de inglês.

por Marta Lança e Paula Cardoso
Cidade | 25 Setembro 2025 | Lisboa, presença negra, Quem mora nesta Buala