Estes nomes fazem parte de uma lista cuja mesma lógica serviu no parlamento à leitura de uma outra com nomes de várias crianças de uma escola pública, expondo-as ao ódio e à violência. Trata-se de um documento, talvez uma listagem de desembarque de um navio negreiro, que Dulce Fernandes incluiu no seu mais recente filme, Contos do Esquecimento (2023, 63’) – uma arqueologia que escava o papel de Portugal no tráfico transatlântico e dos seus legados no presente, em sala no City Alvalade. Por outras palavras: a lista de hoje só é possível porque ontem houve listas como esta com que inicio este texto.
19.07.2025 | por Inês Beleza Barreiros
A visita da sobrinha desdobra-se numa longa escuta, devolvendo-nos, com pudor e firmeza, a complexidade da criação feminina e da exclusão estrutural de mulheres na história, sem sucumbir aos moralismos. Não podemos esperar que A Visita e um Jardim Secreto repare uma injustiça histórica desta e de tantas mulheres artistas, nem reabilita Isabel Santaló para o cânone, resgatando o que não se deixou resgatar. É um filme que respeita a escolha do silêncio, a opacidade de quem já não precisa de explicar-se. Mas talvez componha uma arte com uma história – como defende Filipa Lowndes Vicente – feita de gestos pequenos, de memórias frágeis, e de vozes que não se calam, mesmo quando escolhem o silêncio. E de transmissão, de outras mulheres antes de nós que nos fortaleceram, que abriram caminho para nós.
18.07.2025 | por Marta Lança
Há uma questão geracional que é a de gostar de muitas coisas e não gostar de nada, ter muitos estímulos e ao mesmo tempo um niilismo existencial de que isto não serve para nada, uma precariedade laboral muito grande, uma infantilidade ou infantilização que leva, de facto, à dificuldade em tomar decisões, a uma superproteção. Não há necessariamente uma questão de género embora, as raparigas (do casting) tenham uma ideia de ser mulher, o que implica uma força e desenvoltura de «isto é a minha voz e quero tê-la», enquanto os rapazes estão mais perdidos.
19.06.2025 | por Marta Lança e João Rosas
Este ciclo procura exibir alguns dos produtos cinematográficos que, desde meados da década de setenta e até hoje, saíram do território. Convocando múltiplas temporalidades e respetiva complexidade histórica – a euforia e a urgência da revolução, a angústia da guerra e a reconstrução nacional, o colapso da promessa socialista e a sua reconfiguração numa chave capitalista e neoliberal –, a programação que aqui incluímos é uma oportunidade para refletir na pluralidade e polissemia do cinema angolano. É também o testemunho da sua fertilidade e resiliência criativas.
17.06.2025 | por Sofia Afonso Lopes
O filme é filosoficamente complexo e tingido de um romantismo sombrio. A premissa de um comerciante chinês expor em Luanda, capital de Angola, uma boneca de plástico da Virgem Maria, e esse objeto supostamente ter o poder de influenciar a vida de muitos habitantes locais, chega a ser um paradoxo mordaz e jocoso até; uma divindade originária no Médio Oriente, tornada caucasiana pelo Ocidente e, no caso do filme, vendida e distribuída, como forma de controlo e manipulação, aos africanos por um chinês. Essas dicotomias ajudam-me a questionar o "poder" de forma interessante sem roçar a analogia rasa dos maus contra os bons.
28.05.2025 | por Marta Lança
Um desses filmes raros que não entram pelos olhos adentro, mas que antes se entranham pelos poros, que se pressentem nos silêncios herdados, que se adivinham nos gestos sussurrados, que sentimos pelas ausências angustiantes que vivenciámos na nossa própria experiência. Com o ritmo complacente de uma brisa seca que sobe a encosta do vulcão antes de tombar o sol e refrescar o planalto, esta obra-prima inaugural não oferece explicações –– oferece pertença.
19.05.2025 | por P.J. Marcellino
Nestes últimos, o jardim surge precisamente como essa construção colonial (na qual se inclui a estufa), que não deslocou apenas pessoas humanas, mas também plantas e o jardim crioulo aparece como espaço de resistência e criação das pessoas escravizadas e subalternizadas. Porém, na obra de Mónica de Miranda em geral, a memória é um veículo agenciador das presenças e não um dispositivo ao serviço da cristalização de identidades. Um movimento perpétuo que potencializa possibilidades de reescrever histórias e pensar futuros.
09.05.2025 | por Ana Cristina Pereira (AKA Kitty Furtado)
O cinema africano, afrodiaspórico e caboverdiano serve também para disputar narrativas – não só sobre África e sobre os africanos, sobre os caboverdianos e sobre as nossas perspectivas plurais, mas também sobre o que é o cinema em si, quem tem o direito de o fazer, quem tem o direito de ver e de ser visto, de falar e de ser ouvido. É um trabalho lento, minucioso, mas necessário. É o trabalho de reinscrever no nosso imaginário coletivo as imagens que nos pertencem, e que, por sua vez, nos transformam. Neste contexto, o futuro do cinema nas ilhas será inevitavelmente arquipelágico, feito de imensas vozes dispersas, mas em constante diálogo entre si, com Cabo Verde e com o mundo, feito de memórias partilhadas, mas reinventadas, de recursos limitados mas de criatividade infinita.
29.04.2025 | por P.J. Marcellino
Walter Salles, o terceiro cineasta mais rico do mundo, que “perde” apenas para George Lucas e Steven Spielberg, com um patrimônio herdado de origem bem controversa, reunindo o Unibanco, fruto de uma expansão beneficiada pela política de centralização bancária da ditadura brasileira, com a metalurgia e mineração que dominam 80% do mercado mundial de metal, sabe perfeitamente disso.
18.01.2025 | por Gabriella Florenzano
No Estado do Acre, região da Amazónia Ocidental brasileira, a mobilização político-social de centenas de seringueiros - trabalhadores que vivem da recolha artesanal da borracha – iniciou-se na década de 1970, como resposta ao modelo de desenvolvimento imposto pelo regime da Ditadura Militar, que incentivou a ocupação da floresta por colonos conhecidos por ‘paulistas’, denominação atribuída aos imigrantes provenientes da região Centro-Sul do país. Fazendeiros e pecuaristas invadiram terras habitadas, desde há décadas, por seringueiros ou coletores da castanha-do-brasil, com o objetivo de desmatar para abrir pastos destinados à criação de gado.
06.01.2025 | por Anabela Roque
O processo tornou-se uma extensão da colonização, reforçando o poder de um Estado-nação sobre comunidades locais, em vez de devolverem efetivamente os objetos às pessoas que os produziram ou veneraram, e ignorando assim a complexidade das histórias locais. Basicamente, a França tinha saqueado as obras no passado e depois dizia: “não devolvo porque vocês não têm como cuidar delas”, Benin resgata as obras no presente e diz “não devolvo porque vocês vão torná-las objeto de cerimónias religiosas”. As estátuas saem de uma caixa para outra, mas em nome de libertação ou de restituição.
28.12.2024 | por Marinho de Pina
É necessário fazer mais que monumentos, filmes ou pedidos de desculpa. É preciso, entre muitas outras coisas, trabalhar os discursos, trabalhar as formas de educação, investir na educação das populações mais vulneráveis, trabalhar e melhorar as relações entre os povos e os países, melhorar as condições de trabalho e de acesso aos espaços e meios de circulação à população preta portuguesa ou em Portugal, dignificar as histórias dos países africanos que foram colonizados, sem criar ou repetir narrativas que promovam complexos de inferioridade.
19.12.2024 | por Marinho de Pina
O novo filme dedicado ao povo indígena Yanomami, A Queda do Céu (2024), dos realizadores brasileiros Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha, começa com um extraordinário plano-sequência que transcende a sua função de prólogo de abertura, afirmando-se como um plano merecedor de um lugar de destaque na história do cinema que aborda a Amazónia. Trata-se de uma poderosa representação cinematográfica dos povos indígenas amazónicos, guardiões culturais e espirituais da terra-floresta. Com este primeiro plano estabelece-se uma dialética, mediada pela cosmologia Yanomami, entre o visível e o invisível, entre o céu e a terra, oferecendo-se ao espetador um atalho para um melhor entendimento da luta indígena contra a emergência climática que enfrentamos.
12.12.2024 | por Anabela Roque
Davi Kopenawa destaca, no documentário Escute: A Terra Foi Rasgada, a importância de continuar a denunciar e a construir alianças, não só com outros povos originários, mas também com parceiros não-indígenas, tanto no Brasil como fora: “Pessoal não fiquem tristes. Nós ainda estamos vivos. Não é hora de chorar. É hora de lutar. De continuar a viajar, denunciar. (…) Eu preciso do meu povo vivo e que permaneça no seu lugar. (…) Eu estou-me sentindo forte, porque nós estamos unidos. Estamos fazendo a aliança para ficar uma luta só. Sem luta, ninguém vai sobreviver”.
20.11.2024 | por Anabela Roque
O filme de Bodanzky é o que mais expõe os conflitos sociais gerados pela atividade clandestina e ecoa a urgência do seu combate. O documentário revela como o garimpo afeta, de forma catastrófica, o meio ambiente e a saúde dos povos originários através da contaminação por mercúrio - metal usado ilegalmente pelos garimpeiros na extração do ouro.
08.11.2024 | por Anabela Roque
Fazê-lo em Lagos tem especial relevância, uma vez que se assume como local emblemático na História da expansão portuguesa e também como o primeiro porto de desembarque europeu de pessoas escravizadas na costa ocidental africana. Na atualidade, a relevância da descoberta em 2009, de 158 ossadas de africanos escravizados, enterrados onde, dos séculos XV a fim XVI-inícios do XVII, havia uma lixeira urbana (no Valle da Gafaria), durante trabalhos arqueológicos preventivos da construção de um parque de estacionamento, veio confirmar as fontes documentais que referem que em Lagos aconteceu a grande primeira venda de pessoas escravizadas da Época Moderna.
08.11.2024 | por Luísa Baptista
No Manifesto apresentado no Festival de Cinema de Berlim, os líderes indígenas reclamavam: “Mais pajés, mais Céu, mais espíritos, mais floresta, mais vida. Menos ódio. Menos intolerância. Menos racismo.” E deixavam claro que “precisamos superar a impossibilidade de conviver em igualdade nas nossas diferenças, e passar a partilhar o mundo com outros seres vivos, outros viventes, viver e se olhar e se reconhecer no olhar do outro, com reciprocidade, com respeito aos humanos e respeito também aos não-humanos, uns ao lado dos outros, vivendo juntos em nossas diferenças”.
17.09.2024 | por Anabela Roque
Todos os dias chegam cubanos. No DIP criou-se uma sala só para as peças contra os carcamanos e os fantoches. Eu continuo na projecção das reportagens e de alguns filmes. O 2 dentes de ouro já foi bater continência ao Brejnev (Paiva foi com ele) e assim que chegou, afastou o camarada ministro da defesa, ao que parece vai fazer uma superação profissional no estrangeiro. Nos comitês de bairro só se fala de “aprender, aprender, aprender sempre".
14.08.2024 | por Fradique
Depois de ler e ouvir os mais recentes arquivos de Isaurino, tive de dar um tempo, falar com algumas pessoas e mergulhar em outros arquivos. Senti que estava a ser enganado, que talvez a vida e as notas deste projecionista angolano fossem apenas uma imaginação de um mais velho que se perdeu ao longo das suas memórias na diáspora. Só uma certeza existia. Os meses agitados e de grande conflito para Isaurino Lisboa no final 1979 continuaram durante todo o ano seguinte.
14.08.2024 | por Fradique
A divulgação das circunstâncias do combate travado na floresta é uma chamada à mobilização global pela Amazónia, no sentido de equilibrar as forças para que este bioma deixe de ser a região com o maior nível de conflitos e assassinatos no Brasil e para que documentários como O Território e Somos Guardiões, gravados em pontos geográficos distantes e com povos indígenas distintos, não tenham guiões tão semelhantes.
05.08.2024 | por Anabela Roque