“Vejam um Preto em chamas”, filme Complô de João Miller Guerra

“Vejam um Preto em chamas”, filme Complô de João Miller Guerra No seu acto final, Complô não poupa socos, mas vai com luvas de lã. De volta ao estúdio –– esse refúgio improvisado entre blocos de prédios algures na Margem Sul – pressentimos a mudança de tom. A raiva dá lugar à ternura, talvez porque a ternura sejá mais poderosa. Ghoya grava uma faixa para a companheira. A sua voz abranda, amacia. “Baby, nós merecíamos um filme,” ele diz.

02.11.2025 | por Pedro José-Marcellino aka P.J. Marcellino

Povo Krahô inaugura primeira sala de cinema em Terra Indígena do Brasil

 Povo Krahô inaugura primeira sala de cinema em Terra Indígena do Brasil O cinema é diferente — é um lugar de encontro, onde tem espaço para nossas memórias e nosso olhar. Quero que as crianças Krahô possam lembrar sempre dos mais velhos e que, sentadas no nosso Cinema Comunitário, possam imaginar o futuro a partir da aldeia e de nossas imagens.” — Ilda Patpro Krahô O Cinema Comunitário Krahô está localizado na aldeia Koprer e terá uma programação regular organizada pela comunidade. Está também em construção um acervo audiovisual, reunindo quase um século de registros sobre os Krahô e outros povos indígenas do Brasil. Esse material ficará disponível em uma rede interna da aldeia, podendo ser projetado a qualquer momento na tela do cinema.

02.11.2025 | por João Salaviza e Renée Nader Messora

Ver é um verbo demorado. Ensaio neocolonial sobre tempos, olhares e desconfortos.

Ver é um verbo demorado. Ensaio neocolonial sobre tempos, olhares e desconfortos. Na sala de montagem, trabalhava-se numa sequência de vinte minutos que não chegaria à versão curta, o mesmo é dizer de 217 minutos. No ecrã: três corpos, três temperamentos. Conversavam, provocavam-se, mediam-se. Vi em silêncio por meia hora, enquanto o Pedro discutia opções com a montadora. Visto de fora, pareceu-me uma cena magnética, em que nada acontecia e tudo acontecia. Pensei que é assim que a realidade respira quando não é obrigada a caber num guião. Numa cena lenta, tensa e viva. Vinte minutos, e nem um a mais do que precisava. Pinho monta como quem tenta ressuscitar o tempo. Deixa o ar mover-se, o pulso palpitar, o olhar perder-se e regressar. Não corta para acelerar, corta para ser honesto. É um gesto radical, hoje, num mundo onde até a indignação precisa de caber num clip.

24.10.2025 | por Pedro José-Marcellino aka P.J. Marcellino

Tarrafal, um filme de Zezé Gamboa

Tarrafal, um filme de Zezé Gamboa Particularmente emocionante é a passagem do depoimento de Justino Pinto de Andrade quando ele presta uma sentida homenagem aos seus companheiros de desterro, sem citar o nome de ninguém, que já depois da independência e na sequência dos acontecimentos do 27 de Maio de 1977 viriam a ser presos, torturados e mortos em condições extremamente violentas pelos seus próprios camaradas da luta anti-colonial.

09.10.2025 | por Reginaldo Silva

Cinema Troiano: arquivos espectrais da Palestina

Cinema Troiano: arquivos espectrais da Palestina Mais de setenta e sete anos depois do início da Nakba, o que pode a poesia face ao genocídio na Palestina e à ruptura do elo entre o ver e o agir? E o que faz o “cinema de poesia” aos arquivos da história? Através de uma travessia entre o cinema de Jean-Luc Godard e Kamal Aljafari e a obra de Basma al-Sharif, Maryam Tafakory e Lincoln Péricles, esta programação debruça-se sobre a profanação de arquivos, na sua materialidade e espectralidade, como instrumento de uma re-articulação da estética e da ética e de exercício de justiça no cinema de e sobre a Palestina.

05.10.2025 | por Raquel Schefer

Virá que eu vi, Amazónia no Cinema - Introdução

Virá que eu vi, Amazónia no Cinema - Introdução Este livro reforça a visibilidade de filmes que combatem estereótipos, tentam descolonizar o olhar e afirmam um cinema ético, comprometido e transformador. São exemplos do Cinema Amazónico que apelam à solidariedade e à ação. A luta indígena e de outros povos da floresta não pode ser levada a cabo somente pelos que vivem nesses territórios; exige a mudança de mentalidades e um esforço global de apoio à sua resistência, assim como ações concretas para conter o avanço da destruição. No nosso contexto de urgência climática, é fundamental conhecer a situação vulnerável do bioma amazónico – e, acima de tudo, compreender a conjuntura na origem dessa situação. Por isso, a Amazónia tem de estar presente nas salas de cinema por todo o mundo. Acredito que o cinema pode desempenhar um papel crucial na mudança de consciências e na definição de novas políticas. É a minha contribuição para ampliar esse conhecimento.

28.09.2025 | por Anabela Roque

"Não são águas passadas", reflete sobre o apagamento histórico da escravidão

"Não são águas passadas", reflete sobre o apagamento histórico da escravidão Mais do que uma denúncia, o filme propõe uma reflexão: de que forma a sociedade atual pode se responsabilizar, se conscientizar e criar ferramentas para que os horrores da escravidão não sejam repetidos sob novas formas de violência. “Sempre fiquei impressionada com o fato de Portugal não assumir a triste responsabilidade que teve durante o que eles chamam de expansões marítimas — e nós, brasileiros, sabemos que se trata de colonização. O comércio de pessoas escravizadas é tratado como tabu, como se fosse apenas um ‘efeito colateral’ dessa expansão. Nem a sociedade nem os manuais escolares reconhecem essa tragédia histórica”, explica Viviane Rodrigues. “Espero que a reflexão passe pelo reconhecimento de que países colonizadores, em especial Portugal, tratem o tema com a devida importância. Que a educação das novas gerações reflita de forma diferente das anteriores e que possíveis reparações históricas sejam feitas.”

22.09.2025 | por Viviane Rodrigues

Contos do Esquecimento (ou das listas da nossa vergonha)

Contos do Esquecimento (ou das listas da nossa vergonha) Estes nomes fazem parte de uma lista cuja mesma lógica serviu no parlamento à leitura de uma outra com nomes de várias crianças de uma escola pública, expondo-as ao ódio e à violência. Trata-se de um documento, talvez uma listagem de desembarque de um navio negreiro, que Dulce Fernandes incluiu no seu mais recente filme, Contos do Esquecimento (2023, 63’) – uma arqueologia que escava o papel de Portugal no tráfico transatlântico e dos seus legados no presente, em sala no City Alvalade. Por outras palavras: a lista de hoje só é possível porque ontem houve listas como esta com que inicio este texto.

19.07.2025 | por Inês Beleza Barreiros

Quero aprender contigo, sobre o filme "A Visita e um Jardim Secreto" com a pintora Isabel Santaló

Quero aprender contigo, sobre o filme "A Visita e um Jardim Secreto" com a pintora Isabel Santaló A visita da sobrinha desdobra-se numa longa escuta, devolvendo-nos, com pudor e firmeza, a complexidade da criação feminina e da exclusão estrutural de mulheres na história, sem sucumbir aos moralismos. Não podemos esperar que A Visita e um Jardim Secreto repare uma injustiça histórica desta e de tantas mulheres artistas, nem reabilita Isabel Santaló para o cânone, resgatando o que não se deixou resgatar. É um filme que respeita a escolha do silêncio, a opacidade de quem já não precisa de explicar-se. Mas talvez componha uma arte com uma história – como defende Filipa Lowndes Vicente – feita de gestos pequenos, de memórias frágeis, e de vozes que não se calam, mesmo quando escolhem o silêncio. E de transmissão, de outras mulheres antes de nós que nos fortaleceram, que abriram caminho para nós.

18.07.2025 | por Marta Lança

A Tetralogia da Amizade, conversa com João Rosas a partir do filme 'A Vida Luminosa'

A Tetralogia da Amizade, conversa com João Rosas a partir do filme 'A Vida Luminosa' Há uma questão geracional que é a de gostar de muitas coisas e não gostar de nada, ter muitos estímulos e ao mesmo tempo um niilismo existencial de que isto não serve para nada, uma precariedade laboral muito grande, uma infantilidade ou infantilização que leva, de facto, à dificuldade em tomar decisões, a uma superproteção. Não há necessariamente uma questão de género embora, as raparigas (do casting) tenham uma ideia de ser mulher, o que implica uma força e desenvoltura de «isto é a minha voz e quero tê-la», enquanto os rapazes estão mais perdidos.

19.06.2025 | por Marta Lança e João Rosas

Uma festa para viver – a propósito dos cinquenta anos da independência de Angola

Uma festa para viver – a propósito dos cinquenta anos da independência de Angola Este ciclo procura exibir alguns dos produtos cinematográficos que, desde meados da década de setenta e até hoje, saíram do território. Convocando múltiplas temporalidades e respetiva complexidade histórica – a euforia e a urgência da revolução, a angústia da guerra e a reconstrução nacional, o colapso da promessa socialista e a sua reconfiguração numa chave capitalista e neoliberal –, a programação que aqui incluímos é uma oportunidade para refletir na pluralidade e polissemia do cinema angolano. É também o testemunho da sua fertilidade e resiliência criativas.

17.06.2025 | por Sofia Afonso Lopes

Nossa Senhora da Loja do Chinês, entrevista a Ery Claver

Nossa Senhora da Loja do Chinês, entrevista a Ery Claver O filme é filosoficamente complexo e tingido de um romantismo sombrio. A premissa de um comerciante chinês expor em Luanda, capital de Angola, uma boneca de plástico da Virgem Maria, e esse objeto supostamente ter o poder de influenciar a vida de muitos habitantes locais, chega a ser um paradoxo mordaz e jocoso até; uma divindade originária no Médio Oriente, tornada caucasiana pelo Ocidente e, no caso do filme, vendida e distribuída, como forma de controlo e manipulação, aos africanos por um chinês. Essas dicotomias ajudam-me a questionar o "poder" de forma interessante sem roçar a analogia rasa dos maus contra os bons.

28.05.2025 | por Marta Lança

Do 'Hanami' de Denise Fernandes (e da papaeira queimada da minha vóvó Nica)

Do 'Hanami' de Denise Fernandes (e da papaeira queimada da minha vóvó Nica) Um desses filmes raros que não entram pelos olhos adentro, mas que antes se entranham pelos poros, que se pressentem nos silêncios herdados, que se adivinham nos gestos sussurrados, que sentimos pelas ausências angustiantes que vivenciámos na nossa própria experiência. Com o ritmo complacente de uma brisa seca que sobe a encosta do vulcão antes de tombar o sol e refrescar o planalto, esta obra-prima inaugural não oferece explicações –– oferece pertença.

19.05.2025 | por Pedro José-Marcellino aka P.J. Marcellino

O aparato de Mónica de Miranda a partir do filme 'A Ilha'

O aparato de Mónica de Miranda a partir do filme 'A Ilha'   Nestes últimos, o jardim surge precisamente como essa construção colonial (na qual se inclui a estufa), que não deslocou apenas pessoas humanas, mas também plantas e o jardim crioulo aparece como espaço de resistência e criação das pessoas escravizadas e subalternizadas. Porém, na obra de Mónica de Miranda em geral, a memória é um veículo agenciador das presenças e não um dispositivo ao serviço da cristalização de identidades. Um movimento perpétuo que potencializa possibilidades de reescrever histórias e pensar futuros.

09.05.2025 | por Ana Cristina Pereira (AKA Kitty Furtado)

Entre Ilhas, Arquivos e Futuro: reflexão sobre o cinema caboverdiano contemporâneo

Entre Ilhas, Arquivos e Futuro: reflexão sobre o cinema caboverdiano contemporâneo O cinema africano, afrodiaspórico e caboverdiano serve também para disputar narrativas – não só sobre África e sobre os africanos, sobre os caboverdianos e sobre as nossas perspectivas plurais, mas também sobre o que é o cinema em si, quem tem o direito de o fazer, quem tem o direito de ver e de ser visto, de falar e de ser ouvido. É um trabalho lento, minucioso, mas necessário. É o trabalho de reinscrever no nosso imaginário coletivo as imagens que nos pertencem, e que, por sua vez, nos transformam. Neste contexto, o futuro do cinema nas ilhas será inevitavelmente arquipelágico, feito de imensas vozes dispersas, mas em constante diálogo entre si, com Cabo Verde e com o mundo, feito de memórias partilhadas, mas reinventadas, de recursos limitados mas de criatividade infinita.

29.04.2025 | por Pedro José-Marcellino aka P.J. Marcellino

Ainda estamos aqui com medo de não estarmos mais

Ainda estamos aqui com medo de não estarmos mais Walter Salles, o terceiro cineasta mais rico do mundo, que “perde” apenas para George Lucas e Steven Spielberg, com um patrimônio herdado de origem bem controversa, reunindo o Unibanco, fruto de uma expansão beneficiada pela política de centralização bancária da ditadura brasileira, com a metalurgia e mineração que dominam 80% do mercado mundial de metal, sabe perfeitamente disso.

18.01.2025 | por Gabriella Florenzano

Filme 'Empate', de Sérgio de Carvalho: o legado de Chico Mendes mantém-se vivo na defesa da Amazónia.

Filme 'Empate', de Sérgio de Carvalho: o legado de Chico Mendes mantém-se vivo na defesa da Amazónia. No Estado do Acre, região da Amazónia Ocidental brasileira, a mobilização político-social de centenas de seringueiros - trabalhadores que vivem da recolha artesanal da borracha – iniciou-se na década de 1970, como resposta ao modelo de desenvolvimento imposto pelo regime da Ditadura Militar, que incentivou a ocupação da floresta por colonos conhecidos por ‘paulistas’, denominação atribuída aos imigrantes provenientes da região Centro-Sul do país. Fazendeiros e pecuaristas invadiram terras habitadas, desde há décadas, por seringueiros ou coletores da castanha-do-brasil, com o objetivo de desmatar para abrir pastos destinados à criação de gado.

06.01.2025 | por Anabela Roque

Da restituição, notas sobre o filme 'Dahomey', de Mati Diop

Da restituição, notas sobre o filme 'Dahomey', de Mati Diop O processo tornou-se uma extensão da colonização, reforçando o poder de um Estado-nação sobre comunidades locais, em vez de devolverem efetivamente os objetos às pessoas que os produziram ou veneraram, e ignorando assim a complexidade das histórias locais. Basicamente, a França tinha saqueado as obras no passado e depois dizia: “não devolvo porque vocês não têm como cuidar delas”, Benin resgata as obras no presente e diz “não devolvo porque vocês vão torná-las objeto de cerimónias religiosas”. As estátuas saem de uma caixa para outra, mas em nome de libertação ou de restituição.

28.12.2024 | por Marinho de Pina

Das heranças e dos herdeiros

Das heranças e dos herdeiros É necessário fazer mais que monumentos, filmes ou pedidos de desculpa. É preciso, entre muitas outras coisas, trabalhar os discursos, trabalhar as formas de educação, investir na educação das populações mais vulneráveis, trabalhar e melhorar as relações entre os povos e os países, melhorar as condições de trabalho e de acesso aos espaços e meios de circulação à população preta portuguesa ou em Portugal, dignificar as histórias dos países africanos que foram colonizados, sem criar ou repetir narrativas que promovam complexos de inferioridade.

19.12.2024 | por Marinho de Pina

Davi Kopenawa Yanomami: “Vocês ouviram falar sobre a queda do céu?”

Davi Kopenawa Yanomami: “Vocês ouviram falar sobre a queda do céu?” O novo filme dedicado ao povo indígena Yanomami, A Queda do Céu (2024), dos realizadores brasileiros Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha, começa com um extraordinário plano-sequência que transcende a sua função de prólogo de abertura, afirmando-se como um plano merecedor de um lugar de destaque na história do cinema que aborda a Amazónia. Trata-se de uma poderosa representação cinematográfica dos povos indígenas amazónicos, guardiões culturais e espirituais da terra-floresta. Com este primeiro plano estabelece-se uma dialética, mediada pela cosmologia Yanomami, entre o visível e o invisível, entre o céu e a terra, oferecendo-se ao espetador um atalho para um melhor entendimento da luta indígena contra a emergência climática que enfrentamos.

12.12.2024 | por Anabela Roque