Os conflitos ambientais e as artes numa rede de Terra Batida
Um projecto singular. Juntar artistas, activistas ou cientistas em diversos territórios, do Alentejo a Aveiro, num processo de questionamento dos confliitos socioambientais, e daí nascerem uma série de apresentações, de Vera Mantero a Rita Natálio, no festival Alkantara. É a rede Terra Batida.
É quase um festival dentro do festival. A partir deste domingo, dia 15, e até 27 de Novembro, a rede Terra Batida propõe performances, conversas, pesquisas e debates, no Teatro São Luiz , em Lisboa, no contexto do Alkantara Festival. Estas propostas artísticas, da autoria de Marta Lança, Rita Natálio, Vera Mantero, Ana Rita Teodoro, Sílvia das Fadas ou Joana Levi constituem um dos momentos centrais de um projecto que congrega uma rede de pessoas, ligadas a diversas práticas e saberes (dança, cinema, performance, artes visuais, cientistas, activistas ou até cooperativas), que se propõem abordar conflitos socioambientais.
“Tudo isto surgiu há cerca de dois anos e parte da minha permanência no Brasil, onde vivi desde 2012, fazendo um doutoramento em Antropologia, entre cá e lá”, revela a artista e pesquisadora Rita Natálio, autora de conferências-performances em que tem vindo a abordar o conceito de Antropoceno e o seu impacto nas relações entre arte, política e ecologia. “Tenho vindo a desenvolver projectos que abordam as alterações climáticas e o impacto na vida de certas comunidades, em particular dos povos indígenas, e também o seu reflexo em práticas artísticas”, expõe. Em 2018, coincidindo com a eleição de Bolsonaro, resolveu regressar a Portugal, onde sentiu que existia “uma espécie de ausência” destas questões, na sua relação com o território.
“No Brasil entusiasmava-me a sobreposição de perspectivas, aquilo que em alguns lugares é denominado ‘environmental humanities’, congregando práticas artísticas, estudos culturais, das ciências sociais e humanas, na sua relação com as intervenções nos territórios que eram múltiplas e que constituíam também visualizações estéticas sobre esses mesmos lugares.”
A cumplicidade para tornar o projecto possível foi encontrá-la em Marta Lança, investigadora e editora da plataforma Buala, também ela habituada a abordagens transdisciplinares, em que as esferas sociopolíticas e artísticas andam a par. Em ano de pandemia constituiu um desafio a realização de várias residências, com a participação de artistas, cientistas, activistas, dirigentes associativos ou cooperativas das regiões de Ourique, Castro Verde, Montemor-o-Novo, no Alentejo, ou Aveiro, Ílhavo e Gafanha da Nazaré. Lisboa foi também equacionada, mas devido ao vírus, foi eliminada para já, o mesmo acontecendo com Sines. Foi a partir dessas residências que, em parte, os espectáculos a apresentar no Alkantara foram concebidos.
Em Ourique tomaram consciência do novo universo agrícola trazido pelos regadios do Alqueva, que operaram uma mudança física, humana e laboral, na região. O arqueólogo e especialista do património Miguel Rego guiou uma visita à Herdade dos Aivados, uma das mais antigas experiências comunitárias do Alentejo. O agrónomo João Madeira deu a conhecer a herdade de criação de ovelha campaniça na zona de Mértola. A activista ambiental Ana Lúcia Nobre mostrou acções de regeneração do montado. A forma como o ordenamento político e económico foi moldando o território, criando tensões, perdas ou resistências foi abordado pelo arqueólogo e editor do jornal Mapa Samuel Melro.
Em Montemor houve conversas, viramse filmes, apresentaram-se trabalhos, conheceram-se projectos locais de cooperação e agro-ecologia, enquanto em Ílhavo ou Aveiro se deu a conhecer a Associação Bioliving, que tem desenvolvido um projecto de recuperação da biodiversidade entre indústrias de celulose, ou o Movimento Aveiro em Transição, uma rede de cidadãos que acredita que um futuro mais sustentável só será possível através da superação de desafios económicos, sociais e ambientais. “O Alentejo interessava-nos enquanto território de alterações paisagísticas e intervenções políticas, enquanto em Ílhavo ou Aveiro havia a relação com o mar que também levanta questões urgentes”, explica Marta Lança.
“O Alentejo é importante pela marca da intervenção humana. Tem sido alvo de muitas experiências e tem sofrido grandes alterações ao longo dos anos — da cultura do montado à monocultura de cereal durante a campanha do trigo do século XX, até às últimas intervenções da agricultura industrial financiada por grandes fundos internacionais.” Uma das condições que impuseram a si próprias na escolha dos diferentes intervenientes era que tinham de pertencer a diferentes áreas. Queriam ter diferentes saberes, conhecer diversas escalas, desde o agente local que está muito focado nas conflitualidades do lugar onde reside ao cientista que tem distanciamento e um posicionamento global dos problemas. “Convidámos pessoas das artes performativas, do cinema e da imagem, ou da literatura e da escrita. Mais do que trabalharem questões ambientais — até porque não existem muitos que o façam de forma directa — interessou-nos que o seu trabalho fosse estimulante”, diz Marta Lança.
Em ano de pandemia constituiu um desafio a realização de várias residências, com a participação de artistas, cientistas, activistas, dirigentes associativos ou cooperativas.
“A Vera Mantero é um dos poucos casos que já trabalham estas questões há décadas, actualizando-se continuamente, mas pensámos em colocá-la em confronto com novas gerações e outras urgências. Foi criar um puzzle de pessoas com sensibilidade para estar e pensar nos territórios, e depois criarem uma peça, uma performance, uma pesquisa ou um workshop, que fosse uma manifestação desse processo, mesmo que inacabado.”
Nos diferentes lugares onde estiveram, uma das condições era trabalhar com os locais. Contactaram pessoas individuais, para diversas visitas de campo, bem como uma série de colectivos. “Isso foi muito importante, ouvir as pessoas falar, estar lá com elas, irmos ao terreno”, constata Marta Lança. “Tal como foi central convidar artistas que não fossem apenas mostrar as suas pesquisas. Haver troca dos dois lados. Queríamos ter essas outras histórias, da mesma forma que havia a consciência de que Lisboa estava também presente, porque transportamos a nossa visão da capital e como é que nos relacionamos ou não com estes territórios. Para muitas pessoas foi uma descoberta contactar com problemas que não lhes tocam directamente, mas ao estar lá perceberem que afecta a sua forma de vida, através do fazer agricultura, dos alimentos que chegam, do extractivismo.” Sensibilizar. Criar outros imaginários desses lugares. Mostrar focos de conflitualidade, mas também marcas de resistência e resiliência. Expor que está tudo ligado, o local e o global, vidas de campo e de cidade.
“O desafio era descodificar as paisagens, no sentido mais abrangente da expressão, a partir de diferentes visões”, explicita Rita Natálio. “O nosso desafio enquanto proponentes destes encontros foi preparar um programa para que os convidados depois desenvolvessem as suas propostas.” E aí tanto houve um biólogo marinho, como o artista local, um pescador como o director do Museu Marítimo de Ílhavo, com a sua visão sobre a pesca do bacalhau. “Como também houve uma jurista que trabalha sobre direitos do mar, ou uma realizadora como a Luísa Homem, que fez uma biopic sobre uma geógrafa. Existiu uma constelação e sobreposição de olhares sobre os territórios, o que nos permitiu atravessar questões económicas, raciais, relações de género, entre espécies ou entre centro e periferia.”
Essa acumulação de perspectivas tanto pode fascinar como criar resistências, pelo menos num momento inicial, quando o projecto ainda não é muito discernível, mas Marta e Rita sentiram, sobretudo, curiosidade. “Gerou-se muito interesse quando dizíamos ao que vínhamos, principalmente entre os actores locais, porque de alguma forma também seria uma forma de ampliar discussões que são tão locais que por vezes não furam a barreira comunicacional”, observa Rita Natálio.
“Existiu um misto de adesão e de alguma resistência no embate inicial”, admite Marta Lança. “Não se pensa que pode haver um pensamento complementar e alguma surpresa, do género: ‘Porque é que os artistas agora se estão a interessar por isto?’ Mas nota-se ao mesmo tempo uma grande vontade de mostrar o que se anda a fazer ali. Houve uma espécie de tradução de linguagens de um lado para o outro, o que mostra como são necessários projectos de estudos culturais do ambiente.” Às vezes a comunicação era à escala local. Outras vezes global. E outras ligavam-se. Problemas com florestas, incêndios ou matas nativas até ao aquecimento global, alterações climáticas ou a subida do nível médio do mar. Do trabalho de campo saíram várias constatações. Nada é preto e branco. Os problemas são complexos. E nem sempre fáceis de identificar. “As rotulações por vezes são ambíguas”, comenta Marta Lança. “Por exemplo, visitámos uma quinta de agricultura intensiva que se rotula ‘bio’ porque não usa químicos — claro que é melhor não usarem, mas a sua motivação tem que ver exclusivamente com questões de mercado, porque o azeite fica numa categoria gourmet, ou seja, as questões têm várias camadas. Num mesmo terreno podes ter a conjugação de boas e más práticas.
A Herdade do Freixo do Meio é um exemplo interessante, com um modelo agro-florestal, ou a Miga, que é uma cooperativa de economia solidária.” De um lado existiu troca com pessoas que trabalham mais com danos e problemas, e outras que estão a tentar fazer experimentações sociais, ensaiando novos modos de fazer. “Estas residências foram pontos de partida para coisas que são muito densas e complexas e vejo-as como o início de algo que se vai desdobrando no tempo, identificando que conflitos ali estão latentes e que dúvidas e inquietações se levantam nesses territórios”, explica Rita Natálio. “E aí a ideia de rede é importante, fomentando a comunicação e a circulação de informação e de práticas.”
Agora existe o desafio de traduzir muitas dessas experiências e conhecimentos em momentos performativos, uns finalizados e outros em construção, no âmbito do Alkantara. No domingo, dia 15, online, será feita a apresentação da rede e os seus processos de trabalho, ao mesmo tempo que será lançado um número especial do jornal Mapa. Nos dias 16 e 17, no São Luiz, será a vez de Marta Lança e a encenadora e dramaturga brasileira Joana Levi apresentarem dois momentos performativos. A segunda, a residir em Lisboa desde 2017, participou nas residências do Alentejo, uma experiência que considera impactante. “A realidade da desertificação, principalmente em Ourique ou perto de Beja, bem como os cultivos intensivos e, inclusive, as placas solares tornam a paisagem estranha”, conta. “Havia a possibilidade de fazer uma relação entre esse sertão português e o brasileiro e de facto podem-se criar relações, mas o brasileiro, por mais seco que seja, é ainda muito habitado, tem muita agricultura e é uma região muito viva em termos culturais.” Ao longo dos anos, Joana Levi tem trabalhado a partir de diferentes linguagens (teatro, dança, filosofia), abordando, entre outras coisas, contextos e conflitos pós-coloniais e de género. Na residência em Ourique impressionou-a o trabalho das biólogas e investigadoras Inês Catry e Marta Acácio, da zona de protecção especial e reserva da biosfera de Castro Verde, que lidam com muitas espécies de aves ameaçadas. “Os processos de produção daqueles espaços geraram as primeiras questões em relação ao meu trabalho, mas o que me captou mais a atenção foi essa tarefa da conservação de aves.”
A bióloga Inês Catry fez uma apresentação do projecto. “Depois fomos para o campo e participámos nos modos de observação e estivemos nos lugares onde são construídos os ninhos”, recorda. “As cegonhas, por exemplo, são um bom estudo de caso, constituindo um ponto de partida para pensar várias questões.” E continua. “Nos anos 80 Portugal investiu imenso na construção de aterros sanitários a céu aberto, o que acabou por alterar os padrões migratórios dessas aves. Não apenas as cegonhas, mas também as gaivotas passam a ter nesses locais a sua principal fonte de alimento. Em suma, comem lixo. E por terem acesso a esse alimento o ano todo deixam de emigrar. E de ameaçadas e em vias de extinção, nos anos 80, as cegonhas têm um crescimento exponencial e hoje são vistas com incómodo por muitos agricultores quase como se fossem uma nova praga.” A sua performance chama-se Rasante e põe precisamente em jogo perspectivas e conflitos interespécies, e de como as fronteiras hierárquicas estabelecidas entre seres humanos e natureza, neste caso aves, podem reproduzir relações colonialistas ou supremacistas.
Já Marta Lança vai partir da sua própria experiência — vive entre Ourique e Lisboa — para em Superintensiva, questionar as expectativas e os trânsitos entre cidade e campo, em confronto com uma realidade conflitual. “Parte-se para o campo com essa ideia de encontrar qualidade de vida, mas as coisas nunca são lineares. Durante dez anos construí uma casa de campo, comprada em ruínas, e criei um espaço de afectos que espelha também um certo meio privilegiado que pode escolher, trabalhar à distância e viver no campo uma temporada — ou seja, pode optar por ter experiências de vida diferentes. A minha performance tem também que ver com essa auto-ironia, mas o ponto de partida é, passe a expressão, essa ideia que de facto não há paraísos na Terra. Todo esse bucolismo que podia ter foi-se esboroando ao perceber que é uma região também ameaçada e violentada. E é também essa história do território que quero contar.”
É uma paisagem diversa aquela que nos pretende devolver, em que o bucolismo convive com agro-químicos, a exploração intensiva e a experimentação política com a resistência à pobreza, à seca e ao despovoamento. “A minha casa ainda é uma zona de protecção, com o ecossistema do montado, o horizonte das planícies, um ar respirável e uma biodiversidade de aves e ervas. Mas depois existem todas as outras contradições. Os desastres ambientais, as culturas superintensivas, os danos no solo, a mão-de-obra quase escrava, os ciclos artificiais, as culturas que estão a destruir outras. E os alentejanos no meio disso. O agricultor tradicional que não consegue acompanhar as exigências da produção intensiva. A quem rende, afinal, este tipo de produção? Interessa-me interrogar tudo isso. Acaba por ser a história de uma lisboeta que percebe que o Alentejo não é só paisagem e que há uma série de complexidades nessa forma de olhar bucolicamente para o campo.”
No dia 19, a realizadora Sílvia das Fadas, que vive actualmente no Alentejo, em colaboração com o artista Francisco Janes, autor da composição sonora, apresentarão o filme Luz, Clarão, Fulgor, seguido de uma conversa, enquanto no dia 20 a coreógrafa e artista multidisciplinar Ana Rita Teodoro (em colaboração com a investigadora Teresa Castro, com interesse nas formas de vida vegetais) questionará a degradação dos afectos, humanos e não humanos, associados à paisagem e cultura alentejana em Leitura de Seres Vegetais.
A 23 e 24 a artista Maria Lúcia Correia, cujo trabalho espelha as crises ecológicas, e a coreógrafa Vera Mantero, que há muito reflecte questões de sustentabilidade ambiental e económica, partilham uma pesquisa, na forma de performance-conferência, em que estará em evidência o que são crimes ambientais e a função dos direitos da natureza, num diálogoem que participarão várias figuras, da jurista Maria Inês Gameiro à curadora Margarida Mendes.
A 26 e 27 estreia Fóssil, de Rita Natálio, que convive com uma série de trabalhos do artista visual Hugo Canoilas, seguida de debates com o arquitecto João Prates Ruivo sobre solos em Portugal e com a plataforma Pólen sobre a mineração. Trata-se da continuação da série de performances-conferências iniciadas por Rita Natálio em 2017, com Antropocenas, a que se seguiu Geofagia em 2018. “O que é um fóssil, como um vestígio da história humana, onde se agregam sedimentos, que podem ser naturais, minerais, vegetais ou humanos, ou um fóssil como vestígio do extractivismo?”, questiona no seu novo trabalho. “A figura do fóssil acaba por constituir um convite para se pensar hoje sobre a crise generalizada a que muitas pessoas têm chamado ‘Antropoceno’.” Nos seus trabalhos, diz, interessalhe “produzir diálogo” e indagar processos contraditórios. “Por exemplo, este novo interesse pelo lítio. É uma situação paradoxal que para se descarbonizar e para nos adaptarmos às alterações climáticas, e diminuirmos o consumo de petróleo, se atente para a criação de uma nova fonte de energia, uma nova especulação económica que tem que ver com a construção de veículos eléctricos, ou com os nossos telemóveis, etc. O problema é que tudo aponta que será tão facínora como o petróleo. O que estamos a fazer é mudar uma forma de vida, mas essa forma de vida é baseada no mesmo tipo de princípios.”
Apesar de a rede fazer um levantamento das muitas conflitualidades, a sua postura é de alento, porque os exemplos de resiliência e de perspectivar outros horizontes também provêm, em muitos casos, do interior dos próprios territórios. Não se deseja um regresso ao passado. Interessa, isso sim, mapear e identificar com um olhar atento, crítico e múltiplo sobre o presente, e projectar futuros possíveis. “O meu desejo é que a Terra Batida não tenha fim”, diz Rita Natálio, quando a convidamos a pensar o projecto no pósAlkantara. “No próximo ano vamos rever este ciclo, haverá novas residências, uma delas em Lisboa, e outra na floresta, possivelmente na serra d’Aire. Gostava que isto se transformasse numa rede de contactos e de práticas, cada vez maior. Mas, claro, isso também depende da força anímica para continuar. É Terra Batida. É partir pedra.”
Artigo originalmente publicado por ípsilon a 13/11/2020