Terra prometida, as dores da perda do império

sobre Angola Terra Prometida - a vida que os portugueses deixaram de Ana Sofia Fonseca, Esfera dos Livros


Um mini branco deixado à porta de casa, os saltos altos no quarto, a vida deixada. Talvez voltasse. Esta imagem mostra bem a hesitação do gesto, a precipitação de uma fuga, a vontade do regresso.

Depois de uma primeira onda de livros que destilavam ressentimento e saudade, escritos logo após a descolonização (haverá certamente outras tendências que desconheço), assistimos a um novo surto de literatura emocional, testemunhal e impregnada de cheiros a terra vermelha e memórias de uma África correspondente aos melhores anos da vida de muitas pessoas. “Retornados” ou seus descendentes produzem livros, muitos são péssimos e dão continuidade apenas a uma e a mesma versão da História. Surpreendentemente, o registo memorialístico, contado por alguém que soube pegar nas memórias dos outros para lhes dar consistência, tem um enfoque diferente neste livro.

Como a própria autora, a jornalista free-lancer Ana Sofia Fonseca, explica, a nossa geração pode contar esta história sem a tentação de cair em nostalgias, mostrando como “uma época [pode ser] um lugar de (des)encontros.” A autora entrevistou cerca de 80 portugueses e angolanos e, a partir de todas essas memórias, aplica-se na não-ficção que revela o drama desta gente sim, mas sem omitir o que até então poucos portugueses deram a conhecer: a segregação, as divisões indígena-assimilado, a violência do sistema colonial, a alienação de quem o vivia, salientando as famílias tradicionais sem fazer exercícios de expiação.

A escrita, de frases curtas e sempre com potencial de visualização, é absorvente e muito bem contextualizada no tempo retratado, com expressões da época, cruzando dados que investigou com  os dos informantes. O livro avança pelo “que faltava contar: a vida privada”, o dia-a-dia, episódios, usos e costumes; traçando um percurso que vai do apogeu ao declínio colonial. E de facto, “a vida que os portugueses deixaram” - antes deste mundo ter virado às avessas e de ouvirem “brancos de merda vão para a vossa terra”, e meio milhão partir em pontes aéreas - era um fartote de boas razões para se ser feliz. Em Angola eram jovens, solteiros ou casados de fresco, e desconheciam quão nostálgica a sua vida viria a ser quanto mais memórias acumulavam: “foi a idade de ouro. foi lá que vivi o meu grande amor, foi lá que fui uma vedeta e que fui feliz” diz o entrevistado Alcobia. Charuto à noite a acompanhar o vinho do Porto, bacalhau no prato e idas ao cinema três vezes por semana ver as musas de Hollywood numa ocidentalizada Luanda, onde na escola se aprendia A de Angola, S de Salazar e P de Pátria, e algumas meninas mais atentas se perguntavam “mas onde estão os africanos?”, perante a ausência dos mesmos nos seus meios. Com liberdades muito maiores do que na metrópole, serviçais contra quem exercer poder, encontravam-se no café Arcádia ou na pastelaria Versailles, mostravam as pernas nas boites, no Tamar, assistiam a corridas de carro, os liceais frequentavam bailes, e havia quem vivesse o espírito hippie com jeans, liamba e Beatles, sem faltar o que fazer e como conviver.

Duas cidades coexistiam: a de asfalto e a dos musseques, “visível na geografia e na melanina, embora com alguns negros abastados no asfalto, os assimilados, muitos mestiços”. Algumas preciosidades, como o depoimento de Videira, um empregado em casa de brancos que “batiam mesmo feio”, contando como “doía o corpo e o orgulho” na obrigação de mostrar o livrete de trabalho ao chefe de posto, passaporte para a “cidade dos brancos”.

São estórias de vida de um piloto, uma fadista, um arquitecto, fazendeiros e muitas esposas. Portugueses que vieram povoar Angola no navio Império nos anos 50 (cerca de 78 826), nos grandes paquetes, ou já lá estavam há várias gerações, o certo é que em 1974 contavam-se já 500 mil. Desde 1961 que a metrópole lançava para África os novos colonos com a livre circulação nos territórios portugueses. Sentindo a brisa da terra das possibilidades -“Quem diria que bastava cruzar o Atlântico par passar de jornaleiro a patrão?” - transportava-se um mundo para outro. O Atlântico, também corredor para a Guerra que os navios Niassa, Vera Cruz e Uíge rasgavam atolados de soldados, era uma sombra que pouco perturbava quem estava em terra.

É que a guerra rebenta e ironicamente dá-se o boom económico do café e algodão. A UPA acende o rastilho, europeus e bailundos envolvidos com os portugueses atacados à catanada, o 4 de fevereiro e o assalto às prisões e a pontos cruciais do poder colonial. Depois sente-se o adensar da guerra. E sabemos de estórias de como se ia cosendo a resistência e a luta independentista. A do governador geral Venâncio Deslandes que implantou a Universidade no Lubango e deu aso a grande preocupação pois temia-se o terrível projecto de uma  independência branca, de modelo rodesiano. Aflora a história da família Van Dunnem, em que João segue o irmão José em greves e manifestações, distribuindo panfletos com mensagens subversivas. A do livreiro da Lello, Felisberto Lemos, amigo de soldados futuros capitães de abril, e “terroristas” futuros líderes africanos, dando conta de disponibilizar os livros proibidos pela PIDE (desta constavam 800 polícias sem a 4ª classe nos anos 70 em Angola), que iam de Franz Fannon a manifestos comunistas. O mundo estava a mudar, as discussões aqueciam na universidade, a pressão internacional para a descolonização era muita mas a vida boa de alguns falava mais alto: “quem é que pensava em ideologia quando tinha o Mussulo e bom boi para fumar?”

No fim o livro revela a embriaguez de Luanda como símbolo da decadência de um sistema que não ousava ver a mudança a acontecer: “surda à guerra, bate pé ao destino, diverte-se como se a festa ainda não tivesse acabado”. Depois, o desencanto.  A relação difícil destas pessoas com a metrópole, onde todos contam que se sentiram estrangeiros: “isto era um atraso. No Fundão, só por a minha mulher fumar, trataram-na como se fosse uma vadia.”

O que perturba mais neste livro, para quem conhece a Angola de hoje, 35 anos após a independência, é que muitas das descrições se mantêm actuais se pensarmos no estilo de vida das burguesias africanas e dos expatriados que por lá habitam, em hierarquias, desigualdades e segregações que em nada ficam a dever ao anterior sistema, tendo-se mudado apenas os rostos e cor do poder e não o seu paradigma.

'os dias da independência, angola 1975', de  Joaquim Lobo'os dias da independência, angola 1975', de Joaquim Lobo

publicado originalmente no Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa 2010

 

por Marta Lança
A ler | 18 Janeiro 2011 | angola, anos 70, colonialismo, retornados