A vida é um palco sem fim, percurso de Raúl Rosário

Conviver com o Raúl é assistir constantemente a representações. O próprio mangolê…. são os gestos, as expressões da fala, as caretas, o ar gingão, o rapaz está sempre em personagem. As histórias nunca se esgotam perto dele, exercendo um encantamento que não nos deixa arredar pé. À boa maneira angolana, a excitação de viver, a variedade de perspectivas, a teatralidade, o riso em vez do choro, tudo converge para o talento que Raul Rosário perseguiu.  

O actor angolano de 36 anos, filho de mãe enfermeira militar e pai engenheiro agrónomo, nasceu em Benguela no bairro Benfica e aos 4 anos rumou para Luanda com a família. Durante uma temporada viveu em Belgrado, Jugoslávia, onde teve o primeiro contacto com a expressão dramática e o circo. De regresso à banda, um vizinho do Prenda que tinha uma quinta, a sociedade hípica de Luanda, levou-o a montar cavalos. Nunca mais se livrou da paixão pelos cavalos, foi instrutor durante 10 anos.

Estudou no instituto Karl Marx, em Makarenco, onde começou a demonstrar interesse por artes. No entanto, o pai aconselhou-o a tirar o curso técnico de electricidade. Aos 17 anos reprovou e aos 18 foi para a tropa. Fez o treino militar na escola Comandante Raúl Argueles (“coincidentemente o nome da minha rua no Prenda é comandante Raúl Argueles, mas deram-me o nome de Raúl por causa de um médico amigo da minha mãe.”) Não foi pêra doce. O seu pelotão ia para Mavinga, zona de fortes combates. Mas a boa disposição nunca o largou: “no quartel, quando não tínhamos nada para fazer, eu começava a contar histórias, a aldrabar, a recriar coisas. Sempre tive interesse por filmes e pelas boas representações, queria saber como se tinham construído os bons actores.”

Quando saiu da tropa estavam marcadas as eleições “e parecia que ia haver paz”, mas foi a guerra que chegou a Luanda em 1992. “Com tudo isso activou-se mais a minha consciência política. Já tinha viajado pelo país, acreditava que não nos podíamos matar assim entre nós. Nunca mais quis saber de armas e optei pelo teatro para servir algo construtivo.” Os caminhos da liberdade faziam-se escolher. Já se tinha estreado no teatro com a peça “Equus”, encenada por Maria João Ganga. Seguiram-se várias no Elinga Teatro.

“Nessa altura ainda me encontrava no início das lides teatrais, era mais uma gratificação pessoal. Gostava de me sentir acarinhado depois de fazer uma peça, mas queria aprender sobre técnica.” Ao surgir a oportunidade, em 1997, de ir em digressão a Cabo Verde, Évora e ao festival de Almada, Raul conviveu pela primeira vez com actores profissionais do Brasil e de Portugal e percebeu que ser actor era uma profissão séria e que dava para viver disso. Foi tentando, dentro do possível, profissionalizar-se.

Depois do projecto “Navegar é Preciso”, em S. Paulo, uma peça de Mena Abrantes, é convidada para a Expo 98 (e em 2005 para Itália). Raúl fica uns tempos por Portugal, país onde tantos africanos acabam por rumar e descobrir-se. Em Coimbra integra o elenco da Escola da Noite em “Os Persas”, de Ésquilo (encenação de Pierre Volts) e em “Jacques e o seu amo”, de Milan Kundera (encenação de Sílvia Brito).

O teatro tornou-se, mais do que uma escola, a escola. Para construir uma personagem faz uma pesquisa histórica e biográfica. “Tento-me identificar o mais possível. No teatro estamos sempre a aprender, a cantar, a dançar, a dizer frases categóricas e a relativizar o mundo, olhando para ele de tantas perspectivas”, diz. Raul aprendeu a ser mais doce: “senti barreiras em Portugal mas na minha própria maneira de ser. Quando fiz a peça infantil ‘O Embondeiro que Sonhava Pássaros’, de Mia Couto, tinha que cantar para as crianças, mas eu vinha com uma dureza tal de Angola que era difícil para mim, fui afinando e agora consigo fazer coisas dispersas.”   

Em 2000 regressa a Angola: “Percebi um certo marasmo quando voltei. Mas na Europa sentia uma coisa física de ligação à terra, já tinha vivido muitos anos aqui, tinha uma forte bagagem, queria mostrar outras coisas.” Chegado de fresco, depara-se com a falta de profissionalização, mas recusa-se a trabalhar noutras áreas. Tem a primeira de três filhas, e insiste na representação, noutras vertentes também.

O primeiro contacto com a televisão é através de um trabalho do Óscar Gil, Caminhos Cruzados, onde representa o emblemático Kito. A produção foi um sucesso, ganhou o prémio nacional de cultura e artes em Angola. Faria também o papel de mecânico na série “Sede de Viver e um tenente em “Entre o crime e a paixão”, ambas da TPA. A experiência em cinema aconteceu com O Herói de Zezé Gamboa e Cidade Vazia de Maria João Ganga, em 2003. Começa a ganhar fama com as personagens de vilão.

Mas o seu percurso é indistrinçável do teatro Elinga: “O Pássaro e a Morte”, “Cangalanga a doida dos cahoios”, “Instantâneos de poesia angolana dos anos 50”, “Luís Lopes de Cerqueira, ou o mulato dos prodígios”, “As Bruxas de Salém”, “Morte e vida severina”, “Quem me dera ser onda”, “Yerma”, “Quantos Madrugadas tem a Noite”, “Kimpa Vita”, “Adriana Mater” são pontos na sua carreira. No teatro, “Woza Albert”, do sul-africano Percy Mtwa, encenada por Miguel Hurst e co-interpretada com Orlando Sérgio, dá-lhe grande experiência pois  multiplicava-se em 16 personagens.

ENTREVISTA
Como tem sido a tua experiência com o Grupo Elinga Teatro?

Se não existisse o Elinga não seria o que sou hoje (mesmo que seja mau). Penso que José Mena Abrantes é uma das pessoas mais avisadas sobre teatro em Angola, dos poucos que viaja e vê espectáculos. Com este grupo aprendi as bases sólidas para um trabalho de actor, os exercícios básicos. Mas a minha mania de querer que isto resulte,  leva-me a desejar ir mais longe, profissionalizar-me e às vezes assola a frustração de trabalhar com pessoal que disto talvez apenas deseja passar uns bons momentos. Já discuti isso, estrebuchei, mas agora estou um pouco mais maduro e entendo que cada um trabalha como pode. Estreou há bem pouco a peça do Mena Abrantes “A Errância de Caim”, baseada no livro Caim de José Saramago. Não participei porque não estava de acordo com algumas ideias do texto, mas adorei ver os meus colegas em cena brilhantemente encenados. Já se tornou uma família, já estou no grupo há 19 anos, e acho que tenho de começar a retribuir o que o teatro me deu.

Do teatro que viste e fizeste em Angola que peças são melhor conseguidas?
Uma vez em Mbanza Congo, no Zaire, vi uma menina actriz na igreja baptista a representar a pomba que surge quando João Baptista está com Jesus no rio. Nunca tinha visto nada assim, a  menina parecia que flutuava, e falava em Kikongo, língua que eu não entendo mas ali consegui perceber tudo. Penso que o teatro é bom quando se acredita! Gostei de trabalhar na “Kimpa Vita”, estava sempre a descobrir mais sobre a história, era interessante. Mas também gosto bastante dos temas sociais, das zungueiras (vendedoras de rua), dos alambamentos (ritual pedido de casamento), etc.

O que te fez sair de Angola para fazer teatro lá fora?
Foi precisamente o desejo de ter mais conhecimentos técnicos sobre a arte. Estive na Malaposta em 1995 e fiquei de boca aberta ao encontrar aqueles actores que viviam disso (até hoje só meia dúzia podem em Angola). Já tinha conhecimento que um actor do Elinga (o Orlando Sérgio) estava em Portugal, voltei dois anos depois, durante a Expo 98. Angola  estava em guerra, não se tirava nada do teatro e eu vivia em Angola ou tratando de cavalos ou trabalhando nas ONGs. Também queria aprender melhor o português, pois na altura tinha imensas dificuldades em me comunicar, ora como pode um actor viver sem comunicar? Ter feito os “Persas” em Coimbra, com a Escola da Noite, deu-me um conhecimento mais profundo da história ocidental do teatro, ter trabalhado em teatro profissional mostrou-me as exigências que isso implica, a ideia de trabalhar com as escolas e toda a máquina que as sociedades europeias põem a funcionar para que o teatro seja visto nas salas de espectáculo e não só, abriu-me a mente para as nossas pequenas cidades africanas que não podem deixar de o fazer. Não me venham com a conversa de carregar as imbambas (malas) e fazer espectáculos de cá para lá, isso já nós fizemos,  não gosto que se pense nos africanos como gente que tem que viver sempre na poeira, merecemos sim uns espectáculos dignos e para isso é preciso investir e ter conhecimento, para isso é necessário o intercâmbio cultural também.

Dos grupos de teatro em Angola, quais destacas, e porquê?
Acho que definiria o momento teatral da seguinte forma: temos grupos com potencial em bruto e grupos com potencial lapidado, qual deles o melhor? O que se passa são alguns grupos que estavam em bruto, viajaram um pouco, viram outros géneros e modos de fazer, e lá vão fazendo algumas experiências, umas bem conseguida outras nem tanto. Isto porque o conhecimento é limitado e os encenadores, actores e  outros técnicos precisam desenvolver-se mais. Algumas pessoas que por cá passam dão uns cursos mas não é suficiente. Não temos escola superior, então temos que ser autodidactas, assim estes grupos vão fazendo até alguns clássicos, muitas vezes imitações bem interessantes. Destacaria o Horizonte, Pitabel, Elinga, Etu Lene, Makotes, Henrique-Artes, Julo, etc Depois temos centenas de grupos espalhados pelas cidades angolanas, especialmente em Luanda, muitos dos quais nunca pisaram uma sala de teatro a sério, então desconhecem o que é luz, cenários, adereços, mas também isso é interessante, eu próprio dou aulas  no bairro Sambizanga a um grupo que nunca se apresentou na cidade.

Porque é que aqueles que fazem teatro nos musseques reproduzem apenas a realidade e tentam sempre passar mensagem?
A impressão que o pessoal, por não ter domínio da matéria teatral, se refugia na realidade, ou como não dá para fazer teatro de intervenção política, o pessoal fica ligado só à realidade, não nego. Talvez seja só o medo político de se extravasar isso mas, por outro lado, imitar uma realidade que por si só já é uma enorme fantasia, pois cá em África a realidade e o imaginário muitas vezes se confundem, também é muito interessante. Estas peças teatrais que para nós às vezes já são chatas, numa sala da Europa podem ser o meio mais rápido de se conhecer Angola e os angolanos. Penso que também tem muito a ver com o nosso passado recente: guerra, socialismo / comunismo, economia de mercado, globalização.

Como entendes a falta de profissionalismo e de investimento no teatro em Angola?
A falta de profissionalismo e investimento de teatro em Angola deve-se a uma ausência de conhecimento a nível geral e legal do que é o teatro. Tirando algumas excepções, as pessoas e entidades que devem preocupar-se com os investimentos, o ministério da educação, da cultura, empresários… raras vezes vêem (bom ou mau) teatro e têm uma ideia errada desta forma de arte. Temos poucos angolanos a irem às grandes salas de teatro no mundo e as pequenas não são nossa cultura. Talvez esteja a mudar um pouco. E como por cá, mais que noutros países, os espectáculos são quase sempre muito pobres, então, torna-se um ciclo que tem de ser quebrado, não se vê a importância do fenómeno.

Quais as melhores estratégias de formação para as artes performativas?
Penso que o caminho que o ministério está a seguir, contratando professores cubanos, é razoável (peca pela demora). A meu ver são países como Cuba, que fazem bem a mistura entre arte africana e europeia, o mais parecido com aquilo que a gente precisa. Penso que temos montes de aspectos da nossa cultura ancestral que deviam ser melhor aproveitados, daí a confusão às vezes, de certas cenas serem ou não teatralizadas e termos um teatro muito urbano e pouco rico sobre as nossas coisas. Também temos que investir muito mais nas pesquisas e intercâmbios com outros países africanos, os sul-africanos são um bom exemplo, os senegaleses também. Os francófonos especialmente, têm a coisa mais bem resolvida que os lusófonos. Cabe aos sociólogos estudar isso, e o nosso Estado tem de estar realmente interessado e atento a isso.
O teatro necessita de espaços específicos… o que está a acontecer com as salas de teatro em Luanda?
Uma autêntica aberração, tem a ver com o primeiro ponto: a falta de bons espectáculos teatrais. Está a acontecer que o Avenida foi destruído, a sala do Elinga vai ser. Temos agora somente o Cine-Teatro Nacional e a Liga Africana, ou… a rua! Dá a impressão que nesta Angola que está a crescer para o futuro, com grandes hotéis, estádios, auto-estradas e condomínios, não há lugar para salas de teatro.

O que mais falta ao teatro em Angola?
Uma sala igual ou maior que o D. Maria II e salas em todas as províncias de Angola.  Claro está, gerida por profissionais, para dar “cumbu” (dinheiro) evidentemente, mas acima de tudo, termos (especialmente o Estado), uma clara visão de que a arte é a única forma de ligarmos os povos e termos conhecimento uns dos outros. E não nos esqueçamos que estamos na era da telecomunicação e esta é uma forma de se conhecer Angola. Neste sentido, os potenciais investidores virão atrás e assim podemos ter actores que vivam disso.

 

in AUSTRAL nº70, artigo gentilmente cedido pela TAAG - Linhas Aéreas de Angola

 

por Marta Lança
Cara a cara | 25 Julho 2010 | actor, escola, Teatro em Angola, televisão