O coma do criptozoólogo Svart através da chuva
Miguel Gullander é professor e escritor. Há muitos anos em países africanos, este luso-sueco irrompeu nas nossas vidas com uma escrita urgente, crua, cheia de lampejos. Viveu em Benguela e no Namibe, Angola, depois de Cabo Verde e Moçambique, foi leitor de português em Windhoek e Pretória. Recentemente entre Portugal e a Guiné Bissau. Em 2008 acompanhou uma expedição pela mata angolana na pegada da palanca negra, na qual se inspirou para escrever o romance Através da Chuva e é aí, entre episódios alucinantes, que encontramos um curioso protagonista, o criptozoólogo Svart.
Recordo-me de quando voltaste da expedição para salvar a Palanca. Esses dias pareciam mesmo delirantes, juravas que tinhas avistado a Palanca. Como foi integrar o grupo de cientistas e homens do mato?
O avistamento foi feito e relatado pelo Pedro Vaz Pinto nos seus relatórios. Eu vi mesmo! Mas que interessa isso ao próximo? Essa bebedeira de beleza é como uma boa bebida que cada um quer para si e a do outro não interessa! Que interessa o que o outro viu?! Esse é exactamente o problema da Criptozoologia. Viu mesmo, ou não? Existe mesmo, ou não?
No momento em que mais ninguém viu deixa sempre uma sombra de dúvida…
O que importa é o que o próprio viu, sentiu, descobriu. No fim de tudo, esse é o tesouro do Criptozoólogo: o tesouro, a verdade que o é para si. O próprio é que sabe se viu, ou não. Isso muda tudo. É um instante de divino que só cada um pode descobrir. O que o outro amigo ao lado viu e sentiu nunca me satisfará. Eu tenho que beber o meu próprio cálice. Eu tenho de me meter na minha própria picada afora, haja minas ou não.
Svart sai de um coma prolongado e parece que isso traduz uma verdade qualquer anterior às camadas de sarcasmo.
Anterior… mas que é entendida posteriormente. Eu já estive em coma. Fui defenestrado a 140 quilómetros por hora, para uma distância de 30 metros. Mas não perdi a consciência durante uma hora. Ainda tive a preciosa oportunidade de vivenciar todo o processo de afundamento nas águas profundas… Há eventos que nos atiram para lá do sarcasmo. Um coma, um cancro, um acidente terrível – a morte de alguém que amamos. São grandes e brutais despertares…
Porquê?
Quando se acorda duma coisa assim já não há espaço nem tempo para mais palhaçada: agora temos de ir directos à jugular daquilo que nos importa na vida. Já não há mais excesso de confiança no tempo ou esperança que amanhã ainda poderemos vir a ser felizes. Não há amanhã! Olha o desperdício do hoje.
Traz a urgência de viver. Também vives assim?
Vivo com o desespero de quem está apaixonado e lhe querem roubar o amor. Aproveita agora, ou morre ridículo – relembro isto todo o tempo. Pois pode ser que bazes amanhã, exatamente no dia que tinhas guardado na tua esperança para seres feliz. Acorda do coma! Descobre que não tens mais tempo! A tua cabeça arde como uma tocha em chamas! O que fazes? Não interessa a idade que temos, já todos perdemos tempo demais em coma, em relações podres, empregos da treta, ou a ver televisão! Esta é a urgência.
Quem está a contar a história em Através da Chuva?
Angola inteira, mais as pessoas, os animais, as picadas, o gindungo, os londindis, os embondeiros, as ruínas e os prédios de vidro, todos contam essa história utilizando-me como canal, como provisório intérprete. E o que senti que se me estava a ser pedido para ser escrito é que nenhum de nós escapa das consequências dos seus actos semeados no passado. É isso o que a Vida me pediu para contar neste livro. E que por não nos darmos conta disso continuamos a plantar as mesmas sementes com a esperança de que produzirão frutos diferentes. É estúpido esperar mangas de sementes de limões. Semeamos os nossos dramas futuros, agarrados às nossas fantasias de amor, ou progresso ou importância e estatuto. Logo, vivemos aprisionados num circuito fechado e auto-replicado dos nossos próprios pesadelos e carências. Mas tudo isto é, afinal, um pesadelo cómico. Nós é que nos enfiamos a nós mesmos na camisa-de-forças e fazemos um supremo esforço estúpido para ser felizes, como se por nos puxarmos pelos atacadores dos sapatos fôssemos levantar os pés do chão.
O que nos prende?
Em África apanham macacos usando uma técnica muito interessante: colocam pedrinhas (que chocalham) dentro de um coco que tem um orifício onde, a custo, entra a mão do macaco. O coco, claro, está preso. O macaco chocalha o coco, fica curioso com o que tem dentro e enfia a mão lá dentro. Depois de agarrar numa das pedrinhas tenta retirar a mão com a sua preciosa conquista… Mas o punho fechado em murro não lho permite. Vai ficar ali, preso, agarrado a uma inútil pedrinha, sem conseguir libertar-se. Obviamente comem-no. Nós também somos estes infelizes macaquinhos, de punhos cerrados à volta das nossas tretas. As nossas ideias, desejos, certezas. Os nossos territórios, petróleos, igrejas, os nossos conceitos de felicidade. O nosso euzinho – essa é a principal das pedras a que nos agarramos. As nacionalidades, as fronteiras, as posses. Um pesadelo cómico em forma de donut, que se repete, sem parar, até que se abra os olhos e se veja algo novo, algo que nos muda, algo que está para lá da mortalha mental de ruído que consideramos ser a nossa identidade. Ou se morra sem ter visto nada. Precisamos de ver algo para lá, através. E largar as inutilidades, caso contrário somos mesmo comidos.
Mais uma vez, ecoa no livro a crítica às ONG como “o refugo profissional de muita gente… pseudogestores, mulheres frustradas, anormais com ganancia de ajudar o próximo”. Em que se distingue disto o protagonista Svart, sendo que trabalha como cooperante?
A crítica não é à cooperação, pois em si, é como a política, pode ser boa ou má. O que critico é a “mão esquerda” ficar feliz porque a “mão direita” fez algo bom, “deu algo” a alguém. É o tal auto-engradecimento dos egos, causado por boas ou más ações. Se uma pessoa chega à cozinha e vê a torneira ligada no máximo, que faz? Naturalmente desliga-a. Fica orgulhoso, e cheio da sua própria importância? Claro que não, a menos que seja parvo. No mundo deveríamos actuar com essa naturalidade – e espontaneidade de resolver o que necessita de resolução. O problema é quando se fica orgulhoso por um nada, por se ter desligado uma torneira ou trabalhado numa ONG – e o pior, quando se considera que foi noutra cozinha de outra pessoa qualquer, um país pobre ou em guerra. Fica-se a achar que se foi “bom” – e com isto vem uma certa expectativa, por exemplo de gratidão.
Que os “outros” agradeçam?
O mundo é um só – uma gigantesca cozinha. É a artificial noção de fronteiras que nos faz ficar convencidos que estamos a lidar com “outros”. Em última instância não há outros nenhuns – somos todos a mesma raça e o que afecta um país, um povo, um homem – afecta-nos a todos.
Houve realmente influência de uma atmosfera de Conrad na descrição do horror?
Acho que a vida tem mais de ridículo do que de horroroso. As nossas maiores tragédias nascem daquilo que é mais cómico em nós: a nossa estupidez e paralela vontade de auto-engrandecimento.
Mas sentes mesmo essa decadência à tua volta como algo terrível? Ou estás só a estetizar?
Os processos de decadência fazem parte dos mesmos da regeneração. Não há drama nenhum em a vida ser impermanente, é uma lei, tudo passa. Nada de terrível no sábio Panta Rei, tudo fluí de Heráclito… No entanto, o nosso coração das trevas – o pavor inconfessado dentro de cada ser humano – é a noção da sua própria insignificância e brevidade – e não o aceitar.
Há tantos anos que andas em países do sul… tens saudades de alguns ambientes de Portugal e Suécia?
Não tenho saudades de nada nem de ambiente nenhum. As saudades que tenho são de pessoas, e essas estão espalhadas pelo mundo fora. Às vezes apetecia-me assistir a um concerto de típico Swedish Metal, mas depois passa-me.
Começaste em Cabo Verde (na ilha do Fogo) e actualmente na Namíbia, com muitas paragens pelo meio (Maputo Benguela, Namibe e Pretória). Consegues enunciar um aspecto particular de todos os pousos onde estiveste?
Há um aspecto comum a todos esses quadrantes: eu próprio. Onde quer que vá – incrível – eu estou lá sempre! Nesse sentido, o testemunhar, sem nenhum propósito que não apenas esse de testemunhar esta longa picada por África, isso tem sido o aspecto particular, o denominador comum. Eu ainda estou aqui: a escrever.
A escrita tem sido a companhia de todos esses lugares e experiências. É o teu espelho biográfico?
A minha estrada é pavimentada a tinta. Escrevo a minha estrada, escrevo o meu mapa. Toda esta deambulação é uma mesma viagem.
E o que se encontra?
A busca nunca cessa até ao final da viagem, em que se descobre que o próprio caminhar, o próprio viajar-no-presente-activo era o objectivo em si. Atravessar esta vida, a experiência partilhada de estarmos juntos neste mundo estranhíssimo, onde precisamos de cumprir um fado, sabendo que intrinsecamente nos falta algo – e que algo de importância tem de ser procurado e encontrado. E que talvez a procura e descoberta não sejam coisas diferentes. O destino seguinte é desconhecido (e inevitável) e nesta falta de plano está justamente a liberdade. O mundo vai surgindo por meio do Verbo. A escrita é a minha aliança de noivado com o mundo em meu redor, usando uma técnica que me permite dar corpo ao informe, às sensações e sentimentos. Escrevo sobre o que amo e odeio. Há uma dinâmica erótica, de amor e de morte, entre o mundo, o artista e a ferramenta que ele usa. É um casamento autêntico. Tudo se espelha e mutuamente se altera nesta interdependência. O espectro de arco íris que o cristal lança sobre a folha de papel, pertence a quem? Ao papel em branco? Ao cristal? Ao mundo que tem essa luz toda? A escrita molda a minha biografia, eu escrevo o mundo, o mundo escreve-me a mim, desde sempre.
Desenvolveste um lado predador da experiência de vida para poder contar?
Gosto da escrita-de-risco, em que escrevo o que EU VI, EU SENTI. Sempre gostei do Tomé da Bíblia, foi o mais honesto de todos os discípulos. Enfiou mesmo o dedo na ferida para comprovar. Na minha escrita eu vou mesmo atrás, a farejar, sempre no encalço e, quando já estou ao alcance, toco, enfio o dedo. A literatura dá-nos coragem para ousar e tentar coisas que, felizmente, toda a gente julga serem apenas ficção quando as leem…
De onde nasce o horror?
O horror nasce de pessoas que insistem em tentarem ser algo que não são – tentarem ser importantes, imortais, famosas, um cabeça grande, um chefe. Daí nascem os grandes horrores: “grandes” homens a tentarem fazer “grandes” coisas. Dá sempre errado. Nem é preciso lembrar os grandes nomes dos grandes líderes e messias que transformaram o mundo neste circo.
Porque escolheste ser professor?
Eu não queria ser professor, queria ser vocalista duma banda de Death Metal e escritor. E tornei-me professor, talvez não seja assim tão diferente…
Como passas aos alunos o prazer de ler e pensar?
Há qualquer coisa de performance-extrema no facto de dar aulas e é preciso ter cordas vocais, sem dúvida. Eu não passo nada aos meus alunos. Eu amo o que a boa literatura e as pessoas que a escreveram nos provoca no corpo e mente – e é inevitável que os meus alunos acabem por notar! A um professor que não ama o que ensina – mesmo que seja um mestre da pedagogia – os alunos nunca aderirão. O prazer que tenho nas letras e arte passa por contágio, como uma gargalhada. Quero que os meus alunos riam comigo, pensem comigo. Uma gargalhada que nos ajuda a sobreviver.
O que falha mais no sistema de educação em Angola?
Os sistemas de educação e saúde são dos melhores barómetros dos problemas de um país. Considero que os problemas do sistema educativo angolano corresponderão geometricamente aos outros problemas vitais da sociedade em questão. Acho, também, que a dificuldade em encontrar e comprar revistas, jornais, manuais e livros em Angola é um problema gravíssimo.
Pelo preço?
Os livros – sejam eles quais forem – têm preços chocantes e incomportáveis. Penso que uma sociedade nunca poderá evoluir academicamente (e não só) enquanto o livro for considerado um objecto alienígena de luxo, inacessível e incompreensível para o cidadão normal e estudantes.
Entrevista publicada no Rede Angola a 13/10/2014.