A cidade-fantasma de Ihosvanny

Pasaje, 70x100cm, Acrylic on paper, Ihosvanny (2019)Pasaje, 70x100cm, Acrylic on paper, Ihosvanny (2019)

'Whitechapel lines', acrylic on paper, Ihosvanny (2019)'Whitechapel lines', acrylic on paper, Ihosvanny (2019)

A cidade é confluência, lugar de todos, mas mais de uns do que de outros. Na sua agitação, colidem transações, mercadorias, serviços, interesses, ideias progressistas, individualidades, algoritmos de finanças, passos que se atropelam ou se evitam. É agente do transitório, interface de rostos desconhecidos e gestos em vertigem. Acolhe múltiplos cansaços, pernas dormentes em transportes e cabeças num alhures que não se adivinha. 

A toda a hora, a cidade põe-nos à prova no desafio de vivermos juntos.

A série exposta em Work in Progress, do artista angolano Ihosvanny - passageiro frequente entre Luanda e Barcelona - traduz uma certa loucura melancólica do mundo urbano. A partir de pormenores indiferenciados de Lisboa, Nova Iorque, Luanda ou Londres, o traço sensível e os cinzas esbatidos da sua pintura convocam uma sensação de desconforto mas também de opacidade. Montados em contiguidade e atravessados pelo olhar do visitante, os quadros em mosaico levam-nos a extrair uma certa ideia de cidade que cada um transporta.

É uma cidade-fantasma, não no sentido de phantasmagoria, de fantasmas surgidos numa sala escura através de ilusões de óptica. No nosso passo apressado e dirigido, cadência de funções, trocas e compromissos, podemos não reparar nos lugares de passagem, sustentação e atravessamentos, elementos que conectam e edificam a cidade: cabos, tapumes, estaleiros, parafusos, andaimes, passagens, túneis, ruelas, betão. Isolando tais elementos, tão discretos quanto incómodos, Ihosvanny salienta matrizes geométricas. Vertical e horizontal. Linhas de prédios, janelas e transportes. Luzes que a iluminam, sombras que ajudam ao mistério, apagões da sua inoperância, burn out geral de milhões de habitantes. Traços que lembram o modo subtil de sermos “comandados”: sentados da mesma maneira e a olhar para o mesmo horizonte, muito provavelmente o do ecrã. Linhas rectas que contornam gestos urbanos que renovam a metrópole, sempre por cumprir. A tentar impor ordem ao caos, os imparáveis afazeres transformam a sua população em consumidores e produtores, seja de vivências, trabalho ou de cultura. As pessoas passam a ser densidade populacional, ciclos de ocupações temporárias.

Tal como o título da exposição, as cidades vivem em work in progress, eternamente inacabadas e insatisfeitas. Em permanente reconfiguração, estaleiro de obras ora aqui ora acolá, requalificações seriadas, corrida às cidades sustentáveis, mais ou menos citizen friendly, não dispensam camadas de demolições, entulho, lixo. Um dos seus problemas de fundo é a lógica de acumulação que, por sua vez, lhes dá sentido existencial. As cidades tudo engolem e tudo regorgitam, lidando mal com os resíduos, sejam eles matéria ou pessoas. 

Outro aspeto bastante curioso nesta série, que será já uma marca do autor, é a ausência de seres vivos. Zero figuras: humana, animal ou vegetal. E tudo isto muito previamente às cidades se confinarem por decreto de proteção à pandemia. Embora se pressinta a presença de seres vivos neste vazio, curioso é a possibilidade dos espaços, num aparente abandono por não estarem ao serviço imediato de pessoas (o que lhes dá razão de ser), terem agência própria. 

Retomemos o conceito de opacidade do autor antilhano Édouard Glissant (2010), que defendeu o direito à opacidade1 como base real para uma verdadeira poética da relação, entre pessoas das mais diferentes culturas. Poderá ser um bom gancho para se pensar a ausência de seres humanos nos quadros de Ihosvanny. Se olharmos com mais atenção o cinza, preto e rasgos de vermelho, a pintura, próxima da ilustração ou da banda-desenhada distópica parece deixar emergir um grito de socorro, uma vontade secreta de um dia puxar o travão da imparável máquina produtiva. Este apelo poderá ter a autoria de alguém que dormiu na rua sem ninguém reparar. Alguém que se foi embora largando o colchão-vestígio, a miséria da vida que deixou de encaixar nas regras da cidade. Ou a casa de cartão ao lado do banco. O lastro da precariedade e incapacidade, que se arrastará por anos enquanto reverso da acumulação. Percebemos como existem dois pesos e medidas para a ideia de cidadão e, nesta assimetria, a relação que Glissant falava é boicotada. A cidade é relação e simultaneamente boicote de relação. 

Ruinas, 70x100cm, acrylic on paper, Ihosvanny (2017)Ruinas, 70x100cm, acrylic on paper, Ihosvanny (2017)

Também inconclusa e em processo, é a perceção do artista, estimulada pelas contradições e fluxos urbanos. A sua pintura consegue agarrar e fixar a performance efémera e em metamorfose da cidade, e assim cristalizar algo que cairia no vazio, designadamente momentos ocultos nos quais alguém passa sem ser visto, choca sem sentir. Olhos que não descolam do pequeno ecrã ou o incontável repisar de um papel lançado ao chão.

É difícil fazer comunidade na cidade. Diria que a equação desta tentativa equivale aproximadamente à de uma luta por metro quadrado. Tentando apurar o sentido do viver em comum, os cidadãos lá vão resistindo, habitantes de cidades sob vários regimes, ditaduras, do capitalismo industrial ao capitalismo financeiro, obedecendo aos fluxos e mercados, palco da gentrificação que seleciona e expulsa habitantes. Nestes quadros, observamos ainda as fronteiras invisíveis entre as distintas pertenças à cidade, geografias segregadas já naturalizadas. Apesar de cada vez mais uniformizadas e colocadas no horizonte da máxima rentabilidade, haverá sempre vozes, no âmago das cidades (às vezes, desde o fundo do esgoto), a sussurrar, nos pesadelos de cada um, à vez, a sua diferença e o seu direito à opacidade. Haverá sempre experiências de fazer cidade, redes de solidariedade contra o isolamento e a trituração do humano e das árvores, e as ruas serão ciclicamente tomadas exigindo vida e condições para vivê-la.

 

Sobre a exposição Work in progress de Ihosvanny, com curadoria de Inês Valle, no Espelho d’Água, Lisboa, entre 24.11.19 > 24.01.20.

 

  • 1. No sentido de Glissant, opacidade será aquilo que não pode ser reduzido na sua densa singularidade, que promove uma relação mais substancial com o Outro. (Poética da Relação, 2010, pp. 189 -191).

por Marta Lança
Cidade | 13 Agosto 2020 | acumulação, arte contemporânea, cidade, Glissant, luanda, opaco, pintura, transitório