Em cada mulher há uma rebelde. O futuro será o que ela quiser.

(Notas soltas a quatro mãos, vinte dedos e umas quantas memórias, a partir do espetáculo Catarina e a beleza de matar fascistas, de Tiago Rodrigues)

“Não passarão”, bordado a vermelho na toalha da “última ceia” de uma família de resistentes anti-fascistas. Sobre as nossas cabeças, sobrevoam nuvens e andorinhas, também elas vermelhas. Largado à cabeceira da mesa, em silêncio aflito e rosto torcido de ódio, está o fascista. Ouve tudo o que vai ser dito, mas não sobe um grau no seu termómetro de empatia. Mal seria. 

De entre as tradições transmitidas de geração em geração nesta família, contam-se o nome Catarina, por todas e todos partilhado, a receita de pézinhos de coentrada e o ritual de anular um fascista por ano. Sepultados os corpos dos fachos sob os sobreiros, bem se pode estrumar a terra com os seus restos mortais sem dar expediente à cortiça. Há coisas que não se aproveitam.

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As andorinhas deixaram de migrar e o céu é “cinzento sob o astro mudo”.

É um futuro não muito distante, logo ali na próxima legislatura. O número de deputados do partido fascista passa de 1 a 117, já se encontra há um ano no poder. Os sindicatos são ilegalizados, censura-se a internet e acaba-se de vez com a “ideologia de género” tal como com as “modas” dos queixumes racistas e anti-coloniais — produtos dum “marxismo cultural” que assolava a Nação. 

Saias fin de siécle e citações de Brecht, tópicos de conversa do quotidiano contemporâneo, toques de telemóvel verbalizados. Este futuro-logo-ali-que-parece-passado é uma confusão temporal criada para desassossegar quem descansa na ideia de que os horrores totalitaristas da história ficaram lá atrás e as boas graças democráticas estão seguras. Esse tempo é hoje, sempre reactualizado. Um fascista é o passado e futuro sem memória.  

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[Visito às vezes a ingénua e ilusória ideia de que a história da humanidade é uma via de sentido único, um caminho de progresso em que as sociedades de amanhã serão sempre melhores que as de hoje. Logo a experiência do quotidiano se encarrega de me fazer abandonar esse o pensamento encantado.] 

As utopias de amanhã serão fruto de uma laboriosa vontade. No que toca a esse caminho, não há, nem se deseja, uma ordem natural das coisas. A disputa é permanente e contínua, que não se baixe a guarda. O futuro é o que dele fizermos.

Freedom is a constant struggle.

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O fascista terá sempre a mesma idade. 

Apenas meio século depois de uma revolução ter derrubado a ditadura, dos movimentos independentistas terem pegado em armas contra o colonialismo e terem derrubado a ditadura, de acharmos que as liberdades, as conquistas sociais e laborais estariam mais ou menos garantidas, os fascistas regressam ao poder.

A tradição das Catarinas é posta à prova numa perigosa e estimulante contemporaneidade.

Trementes como funâmbulas quanto à legitimação da violência, mais do que convicções, fronteiras éticas entre justiça e vingança no ato de matar tiranos, a peça convoca os tempos do fascismo (do passado ao futuro) e ativa vivências que carregamos.

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[Há uma costura afetiva entre Catarinas, ao longo de toda a peça. Um fio que as liga no laço familiar mas também na construção da identidade de resistente antifascista. Penso no meu avô, membro do MUD Juvenil, preso no Limoeiro; penso na minha mãe, que distribuía panfletos ilegais cuja origem desconhecia; penso nos meus pais militantes e sindicalistas no pós 25 de abril. Seria a minha mãe militante se o meu avô não o fosse? Seria eu militante se a minha mãe não o fosse?]   

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Em cada mulher há uma rebelde. O futuro será o que ela quiser. Nenhuma palavra rima com rebelde. 

A rebeldia, a sede de vingança e as dúvidas das Catarinas açoitam a violência, exposta e velada, maior ou menor, no flanco de todas e cada uma das mulheres. O eco da luta feminista exponencia a peça, num fulgor esperançoso, semeando a indignação tão antiga como atual das mulheres. E premonitória. 

As Catarinas desejam vingar todas as Catarinas anteriores. As Catarinas, protagonistas que não perdoam a quem matou as outras Catarinas, pensam em desfazer-se de um carrasco de inúmeros modos ressuscitado.

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Aconteceu-nos ver esta peça duas semanas antes do momento em que diversas vozes saem da timidez e do decoro-à-portuguesa e esfregam no focinho do status quo o cansaço ancestral e generalizado das mulheres.

Cansaço de assédios, de objetivação do “animal-mulher”, dos abusos de poder, da chantagem emocional, da figura da cuidadora gentil, da exploração do nosso tempo e dedicação, da tentativa de razia ao nosso corpo e mente. Saturação de quem torna públicas histórias desde sempre vociferadas, na intimidade e pesadelos, enquanto condição…. “filha, tens de sofrer e superar”. 

Demora a interiorizar o facto de tratar-se de uma doença social e estrutural, que conta milhares de anos. E num meio minúsculo, quem traz incómodos para a mesa-da-esplanada-onde-todos-se-conhecem, arranja sarilhos.  

Sempre soubemos que é comum os poderes sintonizarem-se para derrubar as mais fracas, mas as resistências organizam-se melhor. Lembramo-nos da estratégia e colaboração das Martas para se libertarem da ditadura teocrática de Gileade na série Handmaid’s Tales.  Vai-se perdendo o medo da partilha pública da dor. E da raiva. 

E uma das boas notícias é que, paralelamente ao espernear de machistas empedernidos, vai-se reconhecendo e retratando o padrão de abuso e autoritarismo e somos muitas Catarinas a travar a longa história de impunidade do patriarcado, que a todos e todas nos agride…  

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[Colocadas em gavetas da opressão, gajas, bichas, trans, negras, índias, sem terra, sem voz, todo-o-mundo que foi e continua a ser pisado, luta por retirar de cima esse gigante pé que impede a vida. Se acionamos categorias étnicas e de género —apesar de querermos sair de dentro das tais gavetas —, é no sentido de se perceber (com todas as evidências e croquis), para que lado tem pendido o poder e, sobretudo, para fazer da nossa vulnerabilidade uma força sem recuo.]

Que força é essa, amiga? 

A força de sair da figura da vítima e poder elencar outros exemplos às nossas filhas e filhos, irmãs, tios, mães, amigas, netas, avós. Outras histórias que não… mortes por apedrejamento, por honra ou por aborto, mutilações genitais, tráfico, prisão doméstica, quotidianos de violência física, psicológica, humilhações, infantilização e condescendência intelectual, discursos de ódio, elogios interesseiros, rapinagem ao nosso corpo, miséria extrema, analfabetismo, escravidão sexual, salários inferiores, desemprego duradouro, esterilizações forçadas, violação… 

[Numa  lógica semelhante à da guerra e do colonialismo, à violação preside uma ideia de conquista do corpo outro pela violência, de marcação como  propriedade. Daí a mulher como troféu dessa dominação primitiva.]

As Catarinas despem a pele de vítimas e são agentes da sua história. 

Nada disto é novo, o processo vem sendo operado, muitas vezes em surdina outras em estridência. 

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As Catarinas não perdoam a quem matou, como na canção do Zeca. 

A camponesa Catarina Eufémia, assassinada pela polícia política do regime salazarista a 19 de maio de 1954, no monte do olival, por exigir pagamento e trabalho digno num saco roto de exploração: o trabalho à jorna, da monocultura, do cereal ao olival intensivo, passando pelos frutos vermelhos. Tudo sempre tão antigo quanto atual.

[A minha família materna é de Baleizão, e as minhas tias assistiram à insurgência e ao assassinato da ceifeira. E bem se lembram do ambiente de medo no Alentejo (“o medo entra por qualquer fresta”), das torturas na Casa do Povo da aldeia, dos cavalos da GNR passando panfletos subversivos jogados de misteriosas janelas. Contaram já eu era crescida, depois de ouvir muitas vezes o “Chamava-se Catarina” e modas alentejanas sobre exploração e sangue… A terra paga-me em vida eu pago à terra em morrendo.]

Na peça Catarina ou a Beleza de Matar Fascistas, a sede de vingança provém precisamente da amiga que assistiu ao assassinato de Eufémia. Chegou a casa e encontrou-se perante a cumplicidade muda do marido, soldado que nada fez para deter o crime do tenente que alvejou a campina com três tiros. Chegou a casa e…

e matou-o. 

Deu cabo do marido à frente dos filhos. 

É dela, da bisavó das mais novas Catarinas da peça, matriarca ancestral de todas as Catarinas, a carta-manifesto que inspira a família a instituir o ritual de vingar todas as ceifeiras, todas as rebeldes, todas as filhas das filhas. A sacrificar os malfeitores, os cúmplices dessas mortes e todos os fascistas que violentaram mulheres. 

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Cenas de família e de morte

Matar é um ritual de confirmação de pertença, de reforço e inscrição do nome Catarina na história. Não é tarefa fácil, mas “quanto maior a heroína maior o obstáculo”, e quanto mais ressurge o fascismo mais se nos exige estratégias para anulá-lo. Que não se banalize o “extermínio”, palavra e ação cara ao próprio.  

Na casa das Catarinas, seguem-se hesitações: 

— Não consigo. 

— Consegues. Tu és a mais forte, a mais determinada, a favorita da mãe. A inveja é a raíz do amor entre irmãos.- diz a irmã [num piscar de olho a Tchekov].

— Tenho dúvidas. - diz a Catarina a quem chegou a vez de matar.

A Catarina-minha irmã, mais nova, ainda não iniciada na arte - encoraja-a.

A Catarina-minha-mãe - que já matou 7 fascistas - endoutrina-a. Toda uma litania pela justiça.

Ter dúvidas é o mesmo que calar e trair. Fomos educadas para isto. Nós somos as que não perdoam. As que vingam o sofrimento de todas as que vieram antes de nós e as filhas das filhas. A nossa vingança só pode ser justa. 

Lembra-te dos discursos de campanha, de quando as alarvidades começaram a ter votos. Lembra-te de toda a infraestrutura de impunidades, deste totalitarismo que se instalou. Lembra-te de quem disse: se as minorias estão mal que se vão embora. Das deputadas negras serem mandadas para a sua terra. Lembra-te dos homossexuais serem de novo trancados nas sombras (e ela “Catarina-minha-mãe” tem uma companheira e as filhas são das duas). Lembra-te das elites que mandam. Lembra-te da violência doméstica.

[Insinua-se no tempo da peça que o Juiz Neto de Moura terá desaparecido e sido ali enterrado. Sim, aquele que citou a Bíblia e o Código Penal de 1886 numa sentença sobre violência doméstica: “Mulheres virtuosas são mulheres obedientes Os homens podem bater-lhes, mas, desde que obedeçam, não procurarão mais motivos de querela”. Num país com exemplos deste calibre em cargos de poder na justiça, pensemos nos “chefes” dos vários setores. Cultura, universidades, fábricas, empresas, restauração, serviços.]

Não tenhas medo. É preciso definir linhas vermelhas que não atravessamos. A democracia não tem ferramentas para combater o fascismo. Isto não vai lá com petições online nem manifestações.

Não deves pensar demasiado. O fascismo está sempre com o cioc, ainda que chegue com pézinhos de lã. 

Vá, sente a terra nos pés, o gatilho no dedo. Cerra os punhos. Pensa em vingar todas as mulheres. Depois seguem-se o prazer e a satisfação. Missão cumprida. 

(tiradas da peça; do que nos lembramos)

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[Porque temos de discutir, uma e outra vez, justiça e vingança? Escrevemos sofisticados códigos de conduta, edificámos complexas estruturas para aplicar a lei feita pelos homens — talvez isso seja parte do problema — , tentando deixar para trás o bíblico ‘olho por olho’. Mas essa justiça vem sempre atrasada e raramente abarca todas. Essa justiça parece tão aquém. Quando chega a justiça? ] 

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[O equilíbrio entre o fazer comunitário e o respeito pela individualidade de pensamento é ténue. A tentação de impor está sempre presente. À militante é pedida prova de lealdade ao colectivo. Quem recusar será traidora.]

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E assim a peça aborda o confronto intergeracional e a tensão entre mãe e filha, outro clássico do drama universal. 

— Mãe, como te tornaste tão cínica?

— Lembra-te a tua bisavó, a primeira a matar o marido em frente aos filhos, presa, torturada. 

— As dúvidas persistem. Penso no porquê? Porquê eu?

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Catarina-meu-tio encaixa o dilema da coragem de matar numa metáfora do trajecto de um comboio no qual se pode mudar a direção das agulhas: Matar uma aldeia inteira ou matar a mãe, consoante a agulha dos carris. Catarina-minha-filha escolhe o martírio. E escolhe discutir a coerência e as contradições, e o poder da palavra. Quer fugir, as dúvidas não a largam, põe toda uma tradição em causa, não quer matar, não vai matar. Depois finalmente sente-se preparada. Quando lhe aponta a arma vê apenas um homem indefeso prestes a morrer, não um homem responsável por todas as mortes. Prefere não se esconder atrás de grandes ideias e desobedece. Nenhuma palavra rima com rebelde. 

Pousa a arma no chão porque qualquer vida merece ser chorada. 

Não encontra beleza no ato de matar. 

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Para a Catarina-narrador a sua palavra pode ser o silêncio que tudo observa, que tudo conta ou que tudo trai e mata. A Catarina-minha-sobrinha vegan é troçada pelos parentes de outra geração. A Catarina-sua-mãe lança-lhe:

— Só quando tiveres sofrido muito na vida poderás falar sobre crueldade e dar lições de moral.

A Catarina-meu primo tem espírito de negócio, pese o seu mau jeito. Imagina um turismo rural no montado alentejano com bungalows e boa comida. Vê na censura uma oportunidade e tenta corromper o refém fascista para entrar no seu negócio de turismo rural.

Não há pureza na revolução nem beleza imaculada no gesto revolucionário.

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O fim legitima a violência como meio? A discussão que enquadra a peça é tida entre parentes, à imagem do que acontece numa família política. Reconhecemo-la das militância e dos movimentos sociais, assim como as nuances de posicionamento entre companheiros, as próprias solidariedade, camaradagem, dúvidas e suspeitas, vividas no seio da luta.

(“A violência é um ato de coragem usada como forma de defesa”, palavras de Gandhi, que toda a vida ouvimos convocado como referência pacifista.)

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Chegadas à última parte do espetáculo, quando parece que todos os argumentos foram desfiados e os dilemas das personagens digeridos (mas não resolvidos), uma das Catarina desobedece, recusa e questiona a tradição, não cedendo à pressão do grupo. Um pífio alívio pela aparente vitória da tese pacifista (que não corresponde necessariamente à desobediência da Catarina-que-deve-matar) invade-nos a consciência. 

Mas todas se traem afinal, ou não percebemos como vão tombando.

Ainda que dramaticamente bela, a conclusão não convence. Aí, é ressuscitada a discussão, provocado o espetador, com um discurso que o leva a questionar as suas convicções. 

Essa dúvida leva a outra: como combatemos os fascistas?

[Uma fala longa e irritante, o discurso sinuoso da direita, é corporizada pelo ator Romeu Costa. Não me esqueço de ver o seu empenho na luta do referendo grego de 2015 contra as políticas da Troika. Um ator não é só aquilo que está para ali a dizer, mas tudo o que reverbera. Ele fá-lo tão bem pelo seu avesso.].

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Este é o momento das Catarinas (para quem a violência não é o oposto binário da paz. Em As Guerrilheiras, Monique Wittig põe todas as ‘Elas’ numa luta derradeira contra todos os homens. Depois de morte e detruição, um grupo de guerrilheiras encontra, no mato, um jovem agarrado a um fuzil a chorar corpo e alma. Abraçam-no. Ele já não é um homem, agora é uma d’Elas. É uma Catarina. - acrescentou Pê Feijó). 

[Como a luta, Catarina e a Beleza de Matar Fascistas desperta paixões. Estivemos naquela sala, vimos acontecer, sentimo-nos fazer parte da tragédia e dos dilemas da emancipação.]

Publicado 67 anos após a morte de Catarina Eufémia (9 de maio de 1954)

por Marta Lança e Sara Goulart Medeiros
Palcos | 20 Maio 2021 | Catarina e a beleza de matar fascistas, Catarina Eufémia, fascismo, feminismo, futuro, violência