Geração da Utopia ou geração do desencanto?

(Fotos retiradas da página do grupo.)

Na intervalo da peça as pessoas dividiam-se, uns gostavam muito pela importância de contar esta história, outros comentavam que era um pouco chato um texto tão longo ser quase todo interpretado. É que se tratava de um trabalho de muito fôlego, e exigente para atores e público. 

A Geração da Utopia, interpretada em 2014 pelo Teatro Griot. A adaptação ao teatro do romance homónimo de Pepetela que acompanha quatro décadas da vida de angolanos que, com maior ou menor intensidade, estiveram envolvidos na luta pela independência de Angola e de que cuja vida seguimos o desenlace nos loucos anos 1990. A teia de relações das personagens serve de pretexto para a exploração de grandes temas: o surgimento de grupos de poder dentro dos movimentos independentistas; a instrumentalização da independência para fins próprios; o desencanto e a desistência das utopias que guiaram os movimentos de libertação. O retrato histórico vai enquadrando com o plano fechado para o percurso pessoal de cada personagem. A peça procura evocar, de forma minimal mas realista, o período e circunstâncias da acção, dos conservadores anos sessenta em Portugal, cujo epicentro da acção é a Casa dos Estudantes do Império (que foi pensada para apoiar e controlar estudantes colónias, acabando por ter um papel fundamental para as lutas pela independência) aos anos noventa em Luanda, passando pela guerra e os guerrilheiros que se encontram junto da fronteira com a Zâmbia.

A adaptação do texto e a encenação coube a Guilherme Mendonça e o elenco contou com os actores Ângelo Torres, Giovanni Lourenço, Margarida Bento, Matamba Joaquim, Lara Mesquita, René Vidal e Susana Sá. 

Falámos com o encenador Guilherme Mendonça, que fez a adaptação e encenação, e com um dos actores, Matamba Joaquim, sobre a peça Geração de Utopia.

Como foi adaptar um texto com um arco temporal tão alargado? Que metodologia de trabalho seguiu?

A principal dificuldade foi a extensão do livro, o que coloca um problema muito pragmático de tempo de leitura e de análise. A este junta-se a extensão dos acontecimentos narrados. Mas fui muito organizado na leitura começando por fazer uma cronologia muito detalhada do romance, que incluía acção remota (por exemplo Aníbal relata um episódio de maus tratos que testemunhou em criança, sabemos também a data de nascimento de Aníbal e Sara). A minha vontade inicial era misturar os tempos e os lugares numa espécie de ‘lugar’ dramático. Percebi rapidamente que isso não faria justiça ao romance — seria talvez interessante como exercício teatral, mas poria em questão o aspecto histórico e o caminho das personagens. Tornou-se claro para mim que era preciso respeitar a estrutura do romance para respeitar a progressão do assunto.

Seguiu-se a selecção e dramatização. Queria que a peça nos transportasse com o realismo possível para os anos sessenta e setenta. Era importante encontrar soluções ágeis para algumas cenas — como por exemplo a luta com o polvo e o a narrativa interior de Vítor no segundo acto. Por outro lado, era necessário condensar personagens e acção. Por exemplo, no romance Aníbal vai para a cama com Nina, mas na peça ficamo-nos pelos avanços sexuais de Nina — na forma dramática, é possível sugerir o universo habitado por Aníbal com um gesto de Nina (o levantar de saia).

Os actores contribuíram nesse processo dramatúrgico?

Os actores contribuíram para a discussão. O meu processo é esse: pôr toda a gente a falar e criar um ‘sentir partilhado’ do universo ficcional.

O que mais interessou neste romance do Pepetela?

Substância. É fácil fazer afirmações sobre a história recente africana, falar de corrupção, de problemas humanos, sociais e políticos. A mim interessa-me saber com detalhe como aconteceu. Quem são essas pessoas que lutaram? Como o fizeram? Quais os momentos chave desse percurso? Por outro lado, esta é uma história de todos: somos, de facto, irmãos; partilhamos uma história recente. Haverá poucos africanos (de Moçambique, Angola, Guiné e Cabo Verde) que não tenham um familiar português e haverá poucos portugueses que não estejam, de uma maneira ou de outra, ligados a África.

Algumas pessoas estavam incomodadas com a extensão da peça e por ser demasiada colada ao texto. Que acha?

Acho que têm razão. O problema não é tanto a extensão mas sim a adaptação. Esta adaptação/encenação foi feita em tempo record. É preciso dar tempo aos actores para memorizar e eu não podia desestabilizar a sequência de memorização pelo que a certa altura tive de deixar como estava. Na verdade, ainda queria fazer alterações. As cenas com a Marília, por exemplo, são desnecessárias. O segundo acto podia ser condensado, uma grande parte do quarto acto também pode levar uns cortes.

A peça interessa mais a pessoas ligadas à história de Angola ou considera ter uma certa universalidade?

Creio que é universal. Algumas pessoas encontraram n’A Geração uma revisitação dos assuntos que lhe interessam, outros encontraram aí informação que desconheciam; outros ainda interessaram-se pela história de aventuras.

O desencanto, aburguesamento e a criação das elites que vinham de uma geração revolucionária são dados pela comicidade. Como vê esta mesma geração?

É terrível, mas parece que no seu caminho os países precisam de passar pelo aburguesamento e pelo novo-riquismo em direcção (esperemos) a uma sociedade mais igualitária. Em Portugal temos fenómenos parecidos, embora menos graves (lembram-se dos anos oitenta?). O novo-riquismo e a corrupção são, parece-me, um subproduto de uma forma de organização social primitiva. Não sou de afirmações pessimistas mas a situação não parece muito promissora para os nossos países. Como cidadão da CPLP fiquei chocado com a decisão de se aceitar a Guiné Equatorial na CPLP e ainda mais chocado com as declarações recentes do secretário executivo da CPLP, Murade Murargy ao Público. Se o menciono é porque acredito que os dois assuntos estão relacionados — não acredito que possamos caminhar em direcção a uma sociedade menos marcadas por clivagens sociais e ao mesmo tempo defender o pior dos exemplos de clivagem social.

Como foi trabalhar com o Teatro Griot? 

Foi muito bom. Portugal precisa de uma companhia africana que seja o espelho desta identidade partilhada. A Griot é uma candidata interessante a tomar essa posição. Recebi com tristeza a notícia da saída do Ângelo Torres e da Susana Sá, que me pareciam um contributo indispensável ao ethos da companhia.

 

Matamba Joaquim, actor do Teatro Griot.

Como foi o trabalho de grupo nesta encenação? 

Ao contrário das nossas peças anteriores, este texto foi adaptado pelo próprio encenador e o grupo só teve de fazer a investigação referente à época e às personagens, foi um trabalho tranquilo.

Como era a sua personagem e que empatia sentiu com ela?

Um angolano que joga no Benfica, descontraído e apolítico, bom de dança e mulherengo. Assim era o Malongo, pai da Judite, homem distraído mas não tanto como parece, visto que mais tarde se torna, através dos amigos, um homem rico e influente. Descobrimos coisas que tornaram o Malongo muito interessante: a gestualidade, a fala, o penteado, a roupa. Quando o encenador me propos fazer o Malongo, no principio não achei muita graça porque o Malongo do livro não é muito interessante se o comparamos com outros personagens. Procurámos dar-lhe a profundidade que lhe faltava no romance, e penso que o resultado foi positivo, diverti-me muito a fazer de Malongo.

O que mais interessou neste romance do Pepetela?

Interessou-me sobretudo a parte da chana, e como ele descreve o tribalismo e o oportunismo.

Ficou a conhecer melhor a história de Angola?

De facto fiquei a conhecer uma parte da história que desconhecia.

O que mais admira e desgosta da geração retratada na peça?

Infelizmente ainda há muitos Malongos e muitos Elias e muitos Víctores e poucos Aníbal. Afinal o Homem Novo foi apenas um mito.

Considera importante mostrar este assunto no contexto português?

Este assunto também é dos portugueses, foi vivido por portugueses, por isso acho importante que se mostre, sobretudo aos portugueses e angolanos mais novos um pouco da história comum dos dois países.

 

O grupo 

Definindo-se como “Uma companhia com uma forte presença de artistas afrodescendentes dedicada à exploração de temas relevantes para uma identidade africana em Portugal”, o Teatro GRIOT tem como missão “Dar a conhecer e promover o desenvolvimento e consolidação de uma cultura africana contemporânea”. Companhia fundada em 2009 por um grupo de actores de ascendência africana, começou por ter várias actividades artísticas, concentrando-se depois no teatro. Procuram uma frente artística que desenvolve uma linha conceptual, estética e dramatúrgica no campo da cultura africana contemporânea e das suas multiculturalidades. A programação tem sobretudo duas linhas: reapreciação dos clássicos da perspectiva de uma nova identidade afro-portuguesa; e a exploração de novos textos africanos, em originais ou em adaptação. 

Apesar de muitas vezes trabalharem com poucas condições, o Teatro Griot consolida-se, tem desenvolvido bons textos e encenações exigentes, vem ganhando qualidade na persistência. Um grupo que traz outros autores e diferentes abordagens que não as canónicas ocidentais, fartos de determinadas dramaturgias e escolhas (no cinema e no teatro) que colocam o negro sempre em papeis serviçais, de bandidos ou secundários. Reforçam o orgulho das referências africanas e da diáspora negra. Promovem e disseminam elementos matriciais da cultura africana na Europa; contribuem para a consolidação de uma identidade africana emergente; construem pontes sustentáveis entre agentes e criadores artísticos portugueses e africanos; estimulam a reflexão sobre a identidade híbrida afro-portuguesa e potenciam uma abordagem multidisciplinar e inclusiva da criação teatral.

Nesse sentido, fizeram o ciclo de autores africanos que começou o ano passado com a Raça Forte de Wole Soyinca, seguindo-se A Geração da Utopia, de Pepetela e irá terminar com uma peça de Breyten Bach As Confissões Verdadeiras de um Terrorista Albino, encenada por Rogério de Carvalho.

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Originalmente publicado na revista Austral, 2014. 

por Marta Lança
Palcos | 9 Maio 2021 | A Geração da Utopia, Matamba Joaquim, Pepetela, Teatro Griot