Celebração dos “nómadas digitais” e invisibilidade dos imigrantes. Lívia Apa
Lívia Apa é pesquisadora, tradutora e professora com uma forte ligação à literatura árabe contemporânea e aos estudos pós-coloniais. Italiana de origem e lisboeta por escolha, desde há duas décadas que tem esta relação com a cidade. Vive entre o Bairro das Ex-Colónias e São Bento, onde trabalha. Circula pela cidade de autocarro ou TVDE, numa Lisboa que conhece bem mas onde observa, com preocupação, as tensões sociais cada vez mais acentuadas.
Para Lívia, os problemas mais gritantes da cidade são claros: a especulação imobiliária, o aumento brutal do custo de vida e a transformação dos espaços públicos, que antes permitiam uma vida mais aberta, acessível e partilhada. A pandemia agravou tudo. A cidade ficou mais agressiva, mais dividida — com “guetos” marcados pelo dinheiro e pela cor da pele. Ao mesmo tempo, ela reconhece que cresce uma força cultural potente vinda das margens, uma pressão necessária que desafia o centro e pode transformar a cidade, Inshallah.
Lívia Apa
Lívia denuncia o contraste brutal entre a celebração dos chamados “nómadas digitais” e a invisibilidade dos imigrantes que sustentam a cidade com seu trabalho precário. Lisboa, segundo ela, vive uma contradição gritante: valoriza o poder de compra enquanto ignora os direitos. É um apartheid velado que separa mundos que coexistem na mesma geografia, mas em realidades paralelas. Considera escandalosa a forma como os bairros de autoconstrução, colados ao conforto lisboeta, são ignorados por grande parte da população, um apagamento que revela o abismo entre classes e raças.
Para a investigadora italiana a memória da presença africana em Lisboa precisa ser tratada com responsabilidade e base histórica. Monumentos e marcos que realmente narrem essa história, que desconstruam a ideia de “invasão recente”, são urgentes para reequilibrar a narrativa dominante. Apesar de reconhecer mudanças, como o crescimento das vozes negras no espaço público, ela alerta: ainda são vistas como “exóticas” e estão longe de ocupar posições de poder institucional. A verdadeira representatividade — em escolas, hospitais, tribunais e parlamento — continua rarefeita.
Por fim, Lívia é direta: Lisboa é uma cidade difícil para imigrantes porque Portugal é um país racista. Como em muitos lugares, o preconceito é estrutural e naturalizado. E o pior, diz ela, é que os mais pobres são ensinados a desconfiar uns dos outros, enquanto o verdadeiro poder continua intocado. A cidade precisa de outra consciência, crítica, justa e coletiva, para ser verdadeiramente de todos.