Carlos Paca - “O teatro é a verdade, a reciprocidade no momento”

fotografias de Otávio Raposo

 

Numa afro-Lisboa de esplanadas ao fim de uma tarde, início do verão de 2009, o actor angolano Carlos Paca, na vitalidade dos seus 31 anos e a convicção na voz, vincada na experiência e no futuro, fala sobre o seu percurso, desiludido com a discriminação do actor negro no mercado de trabalho português.

Em que circunstâncias saiste de Angola?
A minha grande motivação para sair do país foi o medo de ir para a tropa. Já tinha vivido nos EUA, na Swazilândia, na África do Sul. Fui para Angola em 1992 quando aquilo aqueceu, depois tive de fugir em 1998. Tinha 18 anos.

E actualmente manténs ligação a Angola?
Vou frequentemente, duas vezes ao ano. Está lá toda a família, cá em Lisboa tenho uma irmã e um sobrinho.

Quando emigraste pela primeira vez foi duro?
Senti-me logo em casa, nunca foi um choque ou uma diferença muito grande. Sou de uma família onde as pessoas estão habituadas a viajar: Brasil, Portugal. Estive sempre a deixar amigos e namoradas. Mas Nova Iorque foi um salto que me deu a volta à cabeça.

Sempre de um lado para o outro, tens bicho carpinteiro…
Não só. Sinto uma frieza muito grande na capacidade de criar laços. Apego-me às pessoas mas quando não estamos, não estamos. Posso passar muito tempo sem falar com o meu irmão e depois retomar como se nada fosse.

Porque foste para Nova Iorque?
A minha mãe morreu em 88 e o meu irmão sempre sonhou com a América, então fui com ele para estudar na High School. Trabalhei numa pizzaria, 8 horas por dia. Recebia 300 dólares por semana, já dava para viver.

Como descobriste que gostava de representar?
Fazia parte dos grupos de teatro da escola. Não gostava de estudar, no entanto era bom aluno. Representar era um escape. Só queria brincar. Em Angola temos as “estigas” e ninguém podia comigo. Depois aprendi nos EUA que estigar é stand-up comedy. É natural o meu lado comediante.

E daí a ser mais profissional?
Cheguei a Lisboa e inscrevi-me na Academia de Tv Cinema. Quando estava a desistir de Portugal em termos artísticos, estreei-me no teatro profissional com a Laranja Azul, de Joe Penhall, encenada por Natália Luíza, em 2004. Tenho um irmão que tem um problema de foro psicológico, e só se entende comigo. Esta peça tinha um personagem que era border liner da personalidade. Tinham feito o casting e não encontravam ninguém com o perfil da personagem. Eu, com a experiência do meu irmão (conhecia a medicação acompanhei-o sempre), tive facilidade com a personagem. Foi a peça que mais gostei de fazer, não podia falhar, e ensaiávamos no Júlio de Matos.

Entre o teatro e televisão onde te sentes mais à vontade?
Sinto que preciso de fazer teatro para viver. A perda dos meus pais abateu-me imenso: quando morreu a minha mãe chorei muito, depois com o meu pai já não consegui chorar, o meu coração estava cauterizado. O teatro ajudou-me a trabalhar a emotividade e afectividade, coisa que eu não tive (não me lembro do Natal há muito tempo!). Então, o teatro dá-me essa ideia de comunidade, família, de calor. Infelizmente, não nos paga a renda. E por isso enveredo pela televisão e cinema. Mas o teatro é a verdade, a reciprocidade no momento. Na televisão sinto-me muito falso, é muito rápido, não há tempo para uma pessoa se instalar. E hoje é tudo pela imagem, pelo negócio e ainda somos mal tratados.

Que problemas sentes na contratação de actores negros, a natureza dos papéis? Fará sentido falar de limitações por questões raciais?
O que faz mais confusão é que estamos em Portugal onde, no século XV, um quinto da população era negra. Convivemos há 500 anos. Os homens responsáveis pelo panorama artístico em Portugal foram nossos professores. Não consigo perceber porque é que ainda somos actores temáticos, que temos de fazer coisas específicas para pretos. Já me disseram muitas vezes: “não há papéis para pretos”, mas o que é um papel para preto? Não consigo perceber.

Exemplos.
Só se trabalha em temas que têm a ver com racismo e guetos. Acabamos por nos cingir a esse tipo de assuntos.

Vocês não podem ser porta-vozes importantes?
Hoje em dia deixei de acreditar no mercado português, não faz nada por nós. Tivemos muitos actores negros conhecidos que já se foram embora para África e para outros lados. O Ângelo Torres, o Daniel Martinho, tão conhecidos e com qualidade, e ainda têm de ir a castings (por exemplo, na série Equador, o único actor santomense e que tem um prémio importante em França teve de fazer um papel estúpido, que era segurar o cavalo para o protagonista). São os nossos modelos, que deviam ser incentivados. Pela vida deles, consigo perceber que não há muitas oportunidades por cá.

Uma vez que há toda essa familiaridade entre Portugal e África, porque é que a questão não está mais esbatida?  
Nós, em Angola, com os portugueses, vivíamos com eles, aqui vivemos entre eles. Eles convidam-nos para sentar à mesa, mas não nos servem.

Houve uma polémica durante a contratação e as filmagens da série Equador (a partir do livro homónimo de Miguel Sousa Tavares), em que alguns actores (foste um deles) se manifestaram. Em que se baseou?
Estávamos a acabar de filmar o Equador no Brasil. Os actores portugueses já estavam a discutir o próximo projecto e a distribuir as personagens, mas nenhum negro entrava nesse projecto. Não houve trabalho de mesa connosco, a discutir a nossa história, saber o nosso ponto de vista. Porque eles é que sabem, nós limitamo-nos a ouvir. Houve uma coreografia para a qual queria chamar o Pétchu dos Kilandukilo (grupo de dança angolano), mas não, chamaram um coreógrafo italiano. Há coisas que nós queremos partilhar. Em geral, os actores negros são considerados actores inexperientes, porque não passaram muito tempo na televisão: conheces a técnica mas como não exercitas, não és experiente. Mas se não dão oportunidade, não se tem experiência, é um ciclo vicioso. Depois recebem menos e são mal-tratados pela produção. A dicção e o sotaque africano são postos em causa. Já há condições para porem um negro em cada produção em Portugal. Até porque hoje em dia quem sustenta grande parte da economia portuguesa é Angola, deviam ser inteligentes e começar a apoiar mais. Neste momento, não há um actor negro a trabalhar em nada. Isto não é normal. Noutros países as coisas fluem e acontecem.

Quantos profissionais negros existem em Portugal e que papéis têm feito?
Cerca de 40. Faz-se quase sempre papéis de criados ou vilões. Convidaram-me agora  para entrar na série Lola, para assaltar um travesti. O único negro que vai entrar é para assaltar. Eu não me importo, mas não me peçam para fazer uma pontinha, ponham a personagem do principio ao fim da novela para me sustentar e ter trabalho. Não quero ir fazer decoração.

Como é essa experiência noutros países, por exemplo no Brasil?
Em relação à negritude estão muito mais maduros e a luta é muito mais séria. Continuam a queixar-se, claro. Mas a diferença é que o negro no Brasil sente-se brasileiro e em Portugal sente-se imigrante, fazem-nos sentir assim. O governo português diz que está a promover a integração, mas de que forma, se somos excluídos de todos os sectores da sociedade? Mas há também o reverso da moeda: o que é que os actores negros fazem para contrapor esta situação?

Só é válido se participarem em iniciativas para contrariar essa lógica…
Com o Daniel Martinho, o Ângelo Torres e o Miguel Sermão estamos a criar uma associação para fazer parcerias, começar a produzir as nossas próprias coisas. Temos uma agência, a Box, de actores brancos e negros e um agente, Pedro Figueiredo, que regulariza o mercado para obrigar a pagar por igual. Queremos trazer mais actrizes para o espectáculo, há poucas mulheres. O mercado funciona pelo dinheiro e pela imagem. Se quisermos competir neste mercado temos que funcionar com as regras deles.

Mas em geral há consciência desse discriminação?
Há.

Portugal, Nova Iorque, Brasil, Índia, que estéticas e técnicas te influenciaram mais?
Os EUA estão a anos-luz, o teatro deles é muito bom, tal como o inglês. É mais comercial e profundo. Vais à Broadway e não te sentes no teatro, ficas agarrado. Na Índia descobri a arrogância europeia, eles estão muito à frente na indústria de cinema. O actor em Bollywood tem as várias disciplinas dentro dele: canta, dança, representa, não é um produto, é estrela mesmo, e ganha muito bem. A Europa tem de deixar de ter duas medidas para o resto do mundo. Temos tanta coisa para dar. A minha luta agora é Angola e as minhas produções.

Achas que em Lisboa há um verdadeiro encontro de culturas?
Em Lisboa encontram-se muitas culturas, gente de todo o lado. Hoje estive num videoclube de Nollwood, na Almirante Reis, com malta do Gana, Namíbia, etc. Fecham-se nas suas comunidades, é um conforto, não têm muita voz. Devagarinho começam a haver coisas. Temos de fazer acontecer. E aproveitar as coisas da música, dança, teatro, cinema.

E levar a cultura para os bairros periféricos…
A diferença entre mim e um imigrante de “segunda geração” é que ele é filho da senhora das limpezas e do trabalhador na construção civil, nasceu cá entre o fio da navalha, com crises de identidade, não está enraizado. Tem uma postura diferente. Para eles, fazer uma novela é uma oportunidade, por isso também aceitam qualquer cachet.

Desde que chegaste, o que mudou de 1998 para agora?
Mudou muito. Os portugueses estão mais simpáticos, sorriem mais. Deve-se à imigração brasileira e africana. Há muitos casais multiculturais, sobretudo brancas com negros. Apesar disso, o ideal de beleza ainda é muito ocidental. Na Índia, as grandes estrelas indianas são quase brancas, usam base clara. Temos de reconhecer e valorizar a diferença, estamos a perder tanta coisa por causa desta mentalidade.

Apesar da auto-estigmatização do negro, o angolano tem uma atitude diferente, orgulhosa.
Angola às vezes esconde a sua matriz africana. Se usas roupa africana vão te chamar zairense. E os outros países de língua portuguesa também, Cabo Verde é muito próximo da cultura europeia e brasileira. O angolano tem uma postura arrogante, impõe-se, muitas vezes não conscientemente.

Também és assim?
Sim, não posso evitar. Já me senti um mulato cultural, hoje sinto-me mais angolano do que antes. Comecei a aprender quimbundo para a personagem do Equador.

O facto de Angola ser uma economia emergente e todo este boom trouxe diferenças para a percepção da imigração angolana cá em Lisboa?
Para trabalhar em Angola pedem angolanos. De repente, os angolanos são como os americanos em Portugal, são vistos de outra forma.

Pensas fazer alguma coisa em Angola?
Nós não temos lugar aqui. Para mim, a Europa é só uma porta para outras dimensões. Não vou estar aqui até aos 40 anos à espera de uma oportunidade. Já provei que sou bom. Vamos ter uma ponte em Angola, com a nossa experiência vamos mudar alguma coisa. Sou actor, guionista, realizador, com os canais de televisão tenho muito para fazer. Não há futuro para um actor africano em Portugal sem passar por Angola.


Fruto da globalização
Formação não falta a este actor angolano. E nunca com uma influência só, mas um fruto da globalização. Na sua longa lista contam-se as técnicas para TV e Cinema Workshop de representação, que fez em 1994 com Bill Josh  na África do Sul, onde também praticou Comédia com Linda Shin. Em 1998, parte para Nova Iorque para ter formação em  Representação com Joel Perez. No início da década de 2000, está em Lisboa na Academia de TV, Teatro e Cinema (Arť6), mas em 2003 volta a voar, desta vez para o Brasil, onde aprende Técnicas de TV e Cinema para profissionais, com Maurício Matar e Wolf Maya, da TV Globo.

No teatro, premiado com Angola Prestígio, não deixa de dar cartas. Vimo-lo em “Lisboa Invisível”, peça do Teatro Meridional que reflectiu sobre a realidade dos imigrantes africanos em Lisboa. “Os Lusíadas, Rumo ao Oriente” encenada por Antonio Pires. Culturalkids (2007), “Os Negros” de Jean Genet, por Rogério de Carvalho, no Porto, que tinha um elenco integralmente composto por africanos. “Homem Branco Homem Negro” de Jaime Rocha, Teatro Aberto (2006), “Laranja Azul” de Joe Penhall, UAU produções. são algumas das peças.

 

Experiência no Cinema e TV

2010 - O Grande Kilapy, filme realizado por Zézé Gamboa
2008 – Kaminey. Filme Indiano realizado por Vishal Bhardwaj para Bollywood (Protagonista, personagem Cajetan).
2008 – Equador. Mini-série baseada no romance de Miguel Sousa Tavares (personagem Joanino) para a TVI.
2007 – Superfície. Filme realizado por Rui Xavier. Menção Especial do Júri - Festival de Berlim e Prémio de Melhor fotografia no Festival Indie Lisboa.
2007 – Gente Fina. (Protagonista e Autor), programa de comédia para a RTP África.
2007 – Os Primos. Programa de TV realizado por Nuno Vieira para a RTP África.
2007 – Sempre em pé.  Stand up comedy, programa de TV para a RTP 2.
2005/2006 - A Revolta dos Pastéis de Nata. Actor e guionista do programa para a RTP 2.
2005 – Bocage. Série realizada por Fernando Vendrell, David & Golias Produções para a RTP 1.
2005 – Tudo que Você Quer Saber Sobre, série de Teresa Guilherme produções para a RTP 1.
2004 – Inspector Max. Série Policial realizada por Attilio Riccó, Fielmar produções, (personagem Dre) para a TVI.
2003/2004 – O Crime não Compensa, para Ediberto Lima Produções, SIC.

 

in AUSTRAL nº 74, artigo gentilmente cedido pela TAAG - Linhas Aéreas de Angola

 

 

por Marta Lança
Cara a cara | 11 Outubro 2010 | actor negro, Carlos Paca, Equador, movimento negro, teatro