"O Cinema Negro pode ter um papel preponderante na reconfiguração da memória coletiva portuguesa", entrevista com Kitty Furtado

É com entusiasmo que entrevisto a Kitty Furtado, curadora da mostra Black Gaze - Mostra de Cinema Negro em Portugal que decorre entre 8, 9 e 15 e 16 de novembro, no estúdio Centro de Arte Moderna, Lisboa. Com um percurso marcado por uma atenção crítica à produção audiovisual afrodescendente e às suas reverberações políticas, Kitty Furtado propõe aqui uma seleção de filmes que desafiam os regimes visuais dominantes, afirmando o cinema negro como uma contra-esfera pública transnacional — um espaço onde se articulam resistência, criação e pertença a partir de outras geografias do olhar. A mostra reúne obras que atravessam línguas, territórios e tempos, revelando aquilo que a curadora nomeia como uma “condição entre-lugar” — esse estado de trânsito e deslocamento que atravessa muitas das experiências negras no mundo. Mais do que um recorte identitário, Black Gaze apresenta um cinema em movimento, capaz de reconfigurar o passado e de propor novos modos de escuta e visibilidade no presente.

Kitty Furtado, fotografia de Rui MurkaKitty Furtado, fotografia de Rui Murka


O título “Black Gaze” carrega uma crítica implícita ao olhar dominante e ocidentalizante. Como foi pensada a curadoria da mostra para deslocar esse olhar e reposicionar as subjetividades negras no centro da narrativa?

Sim, sem dúvida. Dizer Gaze Negro alinha um pensamento crítico sobre a visualidade dominante, que é branca e ocidental. Porque a forma como vemos o mundo e como o imaginamos não é neutra, nem individualmente construída. Pelo contrário, a nossa perceção da realidade tem sido construída ao longo de séculos pelas lentes da branquitude ocidental. Sabemos isto, pelo menos desde que Edward Said, que era palestino-americano, escreveu o Orientalismo (publicado em 1978). Said explica como o Oriente foi construído na literatura ocidental, ou seja, o que pensamos que é o Oriente (seja lá isso o que for) não tem tanto a ver com aquilo que as pessoas desses territórios dizem de si próprias, mas principalmente com o modo como esses mesmos territórios foram sendo descritos na literatura de viagens, na ciência, etc. A visualidade vigente, ou hegemónica, ou dominante, como queiras, foi construída pela literatura, pela arte, pela ciência, pelos média, ocidentais, e também em grande medida pelo cinema, cujo olhar é predominantemente branco, masculino e de classe média e alta. Por isso, dizer Gaze Negro é, à partida, uma afirmação política. Tanto mais que Gaze não é apenas olhar – por isso não traduzi para português – to gaze implica uma relação de poder entre quem olha e quem é olhado, porque o Gaze tem uma duração mais prolongada que o simples olhar. O Gaze implica a produção de um discurso sobre o que se vê. Logo, dizer Gaze Negro é inverter as posições tradicionais entre quem produz o discurso e quem é alvo dessa mirada… 

Que papel desempenha o cinema na construção de uma esfera pública?

A mostra foi toda ela pensada com este Gaze Negro como ponto de partida. Considero que todos os filmes da mostra foram produzidos no âmbito de uma esfera pública transnacional negra cujas rotas se intersectam em Lisboa e cujo discurso repõe alguma verdade histórica e acrescenta complexidade ao que fomos, ao que somos e também ao que desejamos ser enquanto sociedade. Esta esfera pública alternativa — podemos designar assim, ou também podemos chamar contrapúblico —, constituída por sujeitos portugueses afrodescendentes e também angolanos, brasileiros, caboverdianos, guineenses, santomenses e moçambicanos, é, a meu ver, o fenómeno mais interessante da vida artística e política nacional neste momento e tem no cinema uma das suas expressões mais interessantes. 

A mostra está dividida em blocos temáticos como Entre-Lugar, Memória e Ancestralidade, e Feminismo. Que critérios orientaram essa divisão e o encaixe dos filmes em cada eixo?

Na realidade, dedico-me a pensar sobre o Cinema Negro em Portugal há alguns anos. Esses quatro blocos temáticos - que correspondem aos dias de programação, não é? – constituem um conjunto de características que identifiquei transversalmente nesta produção cinematográfica. No fundo, são eixos fundadores ou, pelo menos, estruturantes deste discurso. Estas características não pretendem ser totalizantes, no sentido em que não pretendem abarcar todos os filmes e muito menos dizer que os filmes se resumem apenas a esses aspetos, porém, considero que, na sua grande maioria, os filmes produzidos no seio deste contrapúblico — esta diáspora africana em Portugal — partilham pelo menos uma ou duas dessas linhas temáticas. Escolhi para cada uma das sessões filmes que, a meu ver, exemplificam bem a faceta do discurso que quero destacar como transversal. 

Como foi o processo de escolha dos filmes e realizadores? Como pesou também o valor simbólico ou histórico no caso de alguns filmes?

Por exemplo, para falar de uma condição entre-lugar, que é dos/as autores/as e que depois também é dos filmes e das suas personagens, começamos com o filme de Pocas Pascoal, Alda e Maria, por aqui tudo bem… a história de duas irmãs a viver em Lisboa, numa altura em que se desenrola uma guerra civil em Angola. ‘Por aqui tudo bem’ é a frase (mentira) que se ouve nos frequentes telefonemas entre Lisboa e Luanda. Depois seguimos com outros filmes da Vanessa Fernandes e da Denise Fernandes em que também é muito evidente esta condição entre cá e lá…

Time to change, Pocas PascoalTime to change, Pocas Pascoal

A Memória e Ancestralidade são outros eixos muito importantes desta produção, porque há uma tentativa partilhada de revisitar a história e de dar visibilidade ao que foi invisibilizado a par de uma necessidade de aproximação a uma ancestralidade real ou imaginada. Para ‘ilustrar’ este eixo, escolhi começar com Constelações do Equador de Silas Tiny, um filme sobre as implicações da Guerra do Biafra – Nigéria - em São Tomé e Príncipe, na altura, uma colónia portuguesa. Depois continuamos com dois filmes de Welket Bungué – Memória e Latitude Fénix – um autor cuja obra é muito marcada por esta necessidade de conversar com os antepassados para imaginar o futuro alternativo. 

Outro aspeto muito importante nesta produção cinematográfica é a sua característica feminista e amiúde eco-feminista. É importante frisar que grande parte das pessoas que constituem esta esfera pública alternativa são mulheres e pessoas não binárias. Estou a falar também até ao nível da produção e da divulgação e também do estudo do acontecimento. As questões de género são muito centrais na produção, quase sempre aliadas a propostas ecologistas e a uma noção de tempo espiralar, que coloca em causa o tempo linear ocidental. No dia dedicado ao feminismo, vamos poder ver, entre outros, A Ilha de Mónica de Miranda, que dispensa apresentações, e Homestay de Lolo Arziki, um filme sobre um projeto de turismo sustentável, totalmente gerido por mulheres, na ilha do Maio em Cabo Verde. 

Finalmente, o último dia, como não podia deixar de ser, é dedicado à luta antirracista, que curiosamente comporta muitos filmes sobre e com a família. Espero que o público não queira perder os filmes de Raquel Lima, Falcão Nhaga, Fábio Silva, Melissa Rodrigues, entre outros. Alguns destes filmes podiam também estar distribuídos pelos outros dias, porque, como já disse, as obras partilham várias das características enunciadas, porém, no contexto atual, achei importante ter um dia – com muito debate – dedicado ao antirracismo.

O que significa para ti enquanto curadora apresentar esses filmes ao público português hoje, num contexto político-social ainda marcado por tensões raciais e pós-coloniais?

A verdade é que estou muito feliz com esta mostra. Há vários anos que eu e a Rita Fabiana, curadora do CAM, andamos a congeminar esta mostra. A Rita gostou muito de me ouvir falar de Cinema Negro quando fui apresentar o Path to the Stars da Mónica de Miranda, na estreia do filme — isto foi em 2022, creio — e disse-me logo que queria ver e mostrar os filmes de que eu falava. Na altura eram muito menos conhecidos ainda, porque nos últimos tempos felizmente os filmes têm tido mais divulgação, além de que apareceram outros filmes e cineastas novos e novas. Como dizia, pensámos logo em fazer, mas não foi possível fazer a mostra imediatamente; eu, na altura, não tinha financiamento para prosseguir o meu estudo e sentia-me um pouco insegura; entretanto, esse aspeto foi ultrapassado porque recebi a devida validação por parte da academia (estou a rir-me de mim própria); depois, o CAM entrou em obras… e só agora finalmente o ciclo vai para a frente. É muito importante mostrar estes filmes num espaço como o CAM. A história da Fundação Calouste Gulbenkian, como tantas outras instituições em Portugal, é uma história atravessada pelo racismo estrutural e institucional. Foram pessoas negras que construíram aquele edifício e, no entanto, poucas vezes lá entramos como artistas e mesmo como público. Quanto a curadores, devo ser das primeiras… Uma mostra de Gaze Negro de algum modo repara um bocadinho essa injustiça. Sou muito grata à vida por me deixar contribuir um pouquinho para a reparação do irreparável.

Isto que digo toca na tua questão do contexto, que me parece que colocas de modo bastante eufemístico. O racismo estrutural, o colonialismo e o recrudescimento da estrema direita tornam esta mostra importantíssima nos nossos dias. Diga-se em abono da verdade que talvez ela não existisse se o mundo não fosse racista, colonialista e fascista. Mas se o mundo fosse perfeito, talvez não existisse arte. Nenhuma arte. A arte serve para nos consolar. 

A mostra apresenta filmes que desconstroem narrativas oficiais e propõem reparações simbólicas. Como vês o papel do cinema na reconstrução da memória coletiva negra em Portugal?

Mais do que um papel importante na reconstrução da memória coletiva Negra, o Cinema Negro pode ter um papel preponderante na reconfiguração da memória coletiva portuguesa e dar um contributo para a reconfiguração da memória coletiva europeia. É pelo menos assim que eu o vejo. O Cinema Negro que é também muito investigativo – aspeto muito transversal a toda a arte contemporânea, não apenas Negra – mostra-nos que as pessoas Negras não apareceram na sociedade portuguesa (e europeia) vindas do nada e de um momento para o outro. No caso português, há pessoas Negras em solo luso pelo menos desde o século XVI e sempre fizeram parte e sempre contribuíram de muitas formas diferentes para o que somos hoje enquanto sociedade. A História de Portugal é, sim, uma história de interculturalidade, de partilha, de proximidade entre povos e culturas diferentes e também é uma história de exploração e extrativismo, de escravização, de racismo, de ganância, etc. Tudo isto somos nós, portugueses, e o cinema ajuda-nos a aprender a conhecer e a lidar com os aspetos propositadamente invisibilizados da nossa história.  Por outro lado, o Cinema ajuda também a combater a hipervisibilidade Negra, enquanto grupo. Porque se é verdade que os sujeitos racializados não têm visibilidade enquanto indivíduos, também é um facto que esses mesmos sujeitos são hipervisíveis enquanto representantes de um grupo; uma pessoa Negra é sempre percebida enquanto representante do seu grupo de pertença – todas as pessoas negras - e este cinema mostra pessoas Negras como indivíduos, mostra histórias de pessoas Negras – só isto, no caso português já seria muito, porque permite humanizar aqueles que foram sistematicamente desumanizados. No cinema também. 

Referes que muitos realizadores negros não querem ser rotulados apenas como “cineastas negros”. Como equilibrar a valorização dessa identidade política com a liberdade criativa e autoral? 

Sim, digo que os e as cineastas Negros e Negras querem poder ser outras coisas, na verdade, querem poder ser tudo o que lhes apetecer. Não devia precisar de o dizer, porque as coisas óbvias não carecem de ser ditas. Porém, digo isso justamente porque ao agrupar artisticamente pessoas que muitas vezes nem se conhecem, posso estar a colocá-las sob o perigo de serem acusadas de identitarismo, de falta de densidade artística, intelectual, ideológica até… de serem sectárias, enfim, um conjunto de mimos que dirigem a pessoas como eu, por ser ativista antirracista, e que não quero emprestar às pessoas que fazem as obras que estudo. Eu entendo a identidade como uma soma, como algo que é mutável, construída ao longo da vida e que, na realidade, é muito plástica; temos sempre várias identidades que se revelem num onde e num quando circunstanciais. Porém, como sugere a tua pergunta, a categoria política de raça é inseparável do meu trabalho. Por isso, a resposta de quem pensar como eu está na prática de todos os dias, seja artista, curadora, produtora, académica, ou outra… a Gayatri Spivak fala de essencialismo estratégico, não é? Seria uma espécie de acordo temporário, com objetivos de emancipação social definidos. O conceito é bom, mas traz problemas consigo. Por um lado, o adjetivo ‘estratégico’ permite a aceitação do ignominioso ‘essencialismo’, por outro, essa aceitação chuta para bingo as propostas da teoria social pós-estruturalista, que preconizam a diluição das categorias identitárias – estou a pensar em Foucault e Butler. Estes problemas que parecem exclusivos da academia e do ativismo político atingem também a esfera da arte e do cinema, que existem no mesmo mundo de toda a gente e que, portanto, sofrem com os mesmos dilemas. Neste caso, algumas pessoas, por um lado, recusam a categorização de que são alvo, mas, por outro, precisam de se identificar com as categorias que dão sentido artístico e político à sua produção e, muitas vezes, também um espaço de existência pública. No fim, cada um fará fazendo o seu caminho. 

Quais são os desafios e as potências dessa posição periférica dentro do sistema cinematográfico português?

As dificuldades específicas das pessoas Negras que querem fazer cinema em Portugal estão todas relacionadas com o racismo e com o classismo estruturais no país. O cinema em Portugal é uma atividade muito nobre, de ‘famílias’ também elas muito nobres, que se conhecem ou reconhecem umas às outras, pelas referências, pelos gostos, pelos tiques, pelos vícios, podemos dizer, pelo modo como respiram. Ora, evidentemente, dessas famílias não fazem parte pessoas Negras. Não quero falar muito sobre isto, porque sinto que ando sempre a dizer as mesmas coisas… já falei muito de herança – que obviamente não é só material -, já falei muito da falácia da meritocracia, já falei de segregação. Prefiro concluir esta conversa com algumas palavras sobre a força deste cinema. Quero dizer que os filmes são muito belos, que têm bandas sonoras amiúde irresistíveis, que muitas vezes são atravessados por um grande sentido de humor e quero reafirmar que o facto de serem feitos a partir de uma perspetiva nunca antes presente, oferecem à sociedade portuguesa a possibilidade de um diálogo honesto e mais profundo com o seu passado, a confrontação rigorosa e sem complexos com o presente e também um espaço para imaginar futuros alternativos, sustentáveis e justos.

Bilheteira: 

1 sessão: 5€

Passe diário: 7.5€

Passe: 30€

Esta mostra pretende dar a conhecer o Cinema Negro feito em Portugal nas últimas décadas e contribuir para o debate público em torno destes filmes e das muitas questões que suscitam. 

Construídas em torno dos temas Entre-Lugar, Memória e Ancestralidade, Ecologia e Feminismo, Antirracismo – Família e Rua, as sessões contarão com a presença de cineastas para conversar com o público sobre as obras apresentadas. 

O título do ciclo parte da ideia de que to gaze não é o mesmo que olhar (to look) implica uma relação de poder assimétrico entre quem olha e quem é objeto desse olhar. 

Curadoria: Kitty Furtado 

Convidados: Fábio Silva, Falcão Nhaga, Lolo Arziki, Melissa Rodrigues, Pocas Pascoal, Raquel Lima, Silas Tiny, Vanessa Fernandes, Welket Bunguê. 

PROGRAMA

Sábado dia 8

Entre-Lugar 

17:00/19:00

Alda e Maria, por aqui tudo bem (2011), de Pocas Pascoal – que nasceu em Angola e vive entre Portugal e França –, além de ser uma obra seminal do Cinema Negro em Portugal, ilustra na perfeição uma das suas características mais incontornáveis; refiro-me à sua condição entre-lugar. Este poderá talvez ser um traço transversal a todo o Cinema Negro (ou cinema produzido pelas diásporas negras) a nível global, como já observado por Manthia Diawara, em 1993, na obra Black American Cinema.

O filme narra a história de duas irmãs a viver em Lisboa, com os corações em Luanda, onde vive a mãe e onde decorre uma guerra civil. A frase recorrente “por aqui tudo bem” ouve-se nas frequentes chamadas telefónicas entre Lisboa e Luanda. A ação do filme desenrola-se no final da década de 1980, e a forma como Alda e Maria habitam Lisboa é também marcada pela transitoriedade entre uma cidade ainda sob uma mentalidade fascista, profundamente conservadora e racista, e as suas periferias, onde os africanos negros foram “despejados” como restos de um império que, de facto, nunca o foi verdadeiramente, e de uma guerra perdida – a Guerra Colonial (1961–1974). 

M/16

Introdução 

Pocas Pascoal – Alda e Maria por aqui tudo bem (2011 FIC, 99’)

19:30/21:00

A condição Entre-Lugar de pessoas que são simultaneamente europeias e africanas reflete-se de forma vívida nas obras que produzem. Em Si Destino (2016), de Vanessa Fernandes – nascida na Guiné-Bissau e que cresceu em França, Macau, Alemanha e Portugal – o drama de Awa desenrola-se devido à influência exercida pela sua família, na Guiné-Bissau, sobre o seu pai, em Lisboa. O futuro de Awa é posto em causa por leis emanadas da terra natal dos seus pais. O filme é também sobre a transitoriedade de poderes invisíveis e de leis que se fecundam no silêncio. 

Denise Fernandes, nascida em Lisboa, filha de imigrantes cabo-verdianos e atualmente residente na Suíça, narra na curta-metragem Nha Mila (2020) a escala feita no aeroporto da Portela de uma mulher em trânsito de um país europeu para Cabo Verde. A ação do filme consiste na visita de Mila ao bairro periférico, onde familiares seus habitam, porém esta história expõe não apenas um percurso individual, mas uma experiência coletiva de diáspora, em que o “entre” se torna espaço fértil de subjetivação, mas também de vulnerabilidade e desamparo.

M/12 

Denise Fernandes – Nha Mila (2020 FIC, 18’30’’)

Vanessa Fernandes – Si destinu (2016 FIC, 22’)

Conversa: Kitty Furtado, Pocas Pascoal e Vanessa Fernandes (50’)

Domingo dia 9

Memória e Ancestralidade

15:00/17: 00

Os filmes que emergem deste Gaze Negro são, com frequência, gestos de (re)visitação da história com “outros olhos”, tentativas de inscrever aspetos velados do passado nas narrativas dominantes. O Gaze Negro preenche lacunas nas memórias oficiais da vida e da História, enriquecendo o léxico artístico, social e político e, portanto, funcionando como um dispositivo de reparação histórica. Constelações do Equador (2020) convoca a memória de 1967, quando a guerra de secessão do Biafra e a fome que dela irrompeu ceifaram centenas de milhares de vidas. Meio século depois, o filme perscruta vestígios desses acontecimentos através da voz de sobreviventes e da recordação da ponte aérea que então uniu a Nigéria às ilhas de São Tomé e Príncipe. A vaga de refugiados, a sobrevivência precária de mulheres e crianças arrancadas às zonas de conflito, o acesso vedado aos espaços de acolhimento, o silêncio da administração colonial, a repressão da ditadura portuguesa e a vida num arquipélago ainda marcado por séculos de escravatura e de trabalho forçado compõem a tessitura deste relato. Silas Tiny entrelaça observação, testemunhos e imagens de arquivo soterrados para reconstituir a memória da guerra civil desencadeada a 30 de maio de 1967, na sequência da declaração unilateral de independência do Biafra.

M/12 

Silas Tiny – Constelações do Equador (2020, DOC, 108’)

17:30/19:00

O cinema de Gaze Negro procura recuperar a ancestralidade usurpada pela escravização e pelo colonialismo. A dívida histórica contraída através desses crimes contra a humanidade jamais poderá ser paga, contudo, o trabalho de autorreparação está em curso. Welket Bungué tem sido uma vez consistente neste domínio.

Em Memória ou Calling Cabral (2022) o autor conjuga o misticismo guineense, a poética da simultaneidade e a voz de resistência de Amílcar Cabral. Entre a festa de um réveillon nas Ilhas Bijagó e o reencontro com pessoas e lugares, o filme atravessa camadas de linguagem e comportamento para celebrar a complexidade histórica e cultural da Guiné-Bissau. O olhar surge como escrita de si, como janela e trânsito; os corpos, em circulação, revelam a centralidade do movimento na obra de Bungué.

Em Latitude Fénix (2024) Bungué invoca figuras históricas africanas numa narrativa em que o tempo espirala e se entretece com (e nas) Ilhas de São Tomé e Príncipe. A presença da Princesa de Ébano em infância, juntamente com as forças simbólicas do Fogo e da Cinza, instaura uma atmosfera transmutacional. Quilombismo, afro-folclorismo, afrofuturismo, afro-sincretismo, afropolitanismo, animismo e misticismo conjugam-se numa obra que coloca o corpo afro-diaspórico negro em trânsito no centro da narrativa.

M/12 

Welket Bunguê – Memória ou Calling Cabral (2022, DOC, 19’)

Welket Bunguê – Latitude Fénix (2024, FIC,15’)

Conversa: Kitty Furtado, Silas Tiny, Welket Bunguê (50’)

Dur. 84’

Sábado dia 15

Ecologia e Feminismo

17:00/18:30

Produzido no seio de uma contraesfera pública transnacional, o Gaze Negro no cinema em Portugal é frequentemente moldado por mulheres. A diferença interseccional (género-raça-classe) que marca as suas experiências de vida traduz-se nas lentes com que escolhem filmar. Entre o imperativo moral de imaginar mundos alternativos e a necessidade quotidiana de sobreviver, estas autoras fazem do cinema um espaço de resistência e de criação.

Os habitantes da Ilha (2022) ecofeminista de Mónica de Miranda — um espaço situado entre a realidade e a imaginação — aproximam-se de uma “ciência encantada”, evocando epistemologias africanas para se reencontrarem consigo próprios. Nesse gesto, abrem caminhos para se libertarem do fardo colonial e inaugurarem outros modos de vida. A narrativa acompanha duas mulheres, dois homens e várias crianças que aprendem a desafiar a lógica patriarcal do Humano como universal e superior, percebendo-se como Humanidade-Outra, entre água, pedra, árvore, cavalo, fogo, presenças mais-que-humanas e espectrais.

Também Homestay (2017), de Lolo Arziki, decorre numa ilha — a do Maio, em Cabo Verde. O documentário acompanha o programa de turismo comunitário em que mulheres, chefes de família, acolhem visitantes nas suas casas, encontrando no projeto uma fonte vital de rendimento e de empoderamento económico.

M/12

Mónica de Miranda – A Ilha (2022, FIC, 37,30’)

Lolo Arziki – Homestay (2017, DOC, 15’)

Conversa: Kitty Furtado, Lolo Arziki (40’)

Dur. 92’30’’

19:00/21:00

Hanami (2024) de Denise Fernandes é ambientado na Ilha do Fogo, em Cabo Verde (filmado em São Filipe e Chã das Caldeiras) e conta a história de Nana, que cresceu em Cabo Verde educada por mulheres velhas e sábias. A beleza dos rostos, dos enquadramentos e o conforto proporcionado pela música não elidem a dor que o filme retrata. Hanami dialoga com temas de abandono, pertença e identidade. A Ilha é - a par de Nana - uma personagem central no filme, que perscruta a sua aridez, a sua terra escura, a sua geografia acidentada, o vento e o mar rodeando e envolvendo todas as coisas. A lente de Denise Fernandes privilegia a serenidade e a empatia, evitando moralismos simplistas ao tratar as feridas emocionais.

M/12

Denise Fernandes – Hanami (2024, FIC, 96’)

Conversa com Kitty Furtado e tbc (30’)

Dur. 126’ 

Domingo dia 16

Antirracismo – Família e Rua

15:00/17:00

As primeiras décadas do século XXI deram lugar a um conjunto de narrativas sobre comunidades Negras, frequentemente filmadas nos bairros periféricos de Lisboa e assinadas por pessoas Negras que aí residem. Estas obras procuram trazer verdade ao discurso cinematográfico, ao assegurar a representação de indivíduos e comunidades Negras segundo o seu próprio olhar. Curiosamente, a câmara volta-se com frequência para dentro de casa e para a família — fonte inesgotável de histórias e memórias, lugar de autoconhecimento e de reparação.

Em Sabura (2025), de Falcão Nhaga, um jovem casal enfrenta um futuro incerto. Entre África e Europa, reencontram-se em Lisboa, partilhando casa com outros imigrantes, onde distância e proximidade testam os laços. 

No maravilhoso Fruto do Vosso Ventre (2021) Fábio Silva revisita a relação com o pai a partir de velhas cassetes de 8mm, confrontando-se com memórias de infância e com os traumas familiares que moldaram a sua vida, 

Já em O Essencial é a Fome (2020), Raquel Lima aborda a fome em múltiplas dimensões — física, emocional, espiritual — expondo, em plena pandemia, a urgência do afeto e da partilha como forças de resistência e cuidado.

Falcão Nhaga - Sabura (2025, FIC, 25’)

Fábio Silva – Fruto do Vosso Ventre (2021, DOC/FIC, 20’)

Raquel Lima – O essencial é a Fome (2020, DOC, 21’)

Debate: Kitty Furtado, Raquel Lima, Falcão Nhaga, Fábio Silva (45’)

Dur. 121’

17:30/19:00

Entre a realidade e a ficção, o arquivo e a fabulação crítica, a reconfiguração do passado e a imaginação de futuros alternativos, o cinema de Gaze Negro desconstrói o racismo institucional revelando a sua origem e permanência, ao mesmo tempo que desmascara as suas horripilantes formulações quotidianas e imagina afro-futuros.

Em Time to Change (2024), Pocas Pascoal lembra-nos da urgência da mudança, propondo um olhar crítico sobre colonialismo, o capitalismo e o impacto destes na biodiversidade. Através de imagens do arquivo colonial, evidencia-se que a destruição dos ecossistemas tem raízes longínquas, inscritas na exploração da terra, na caça grossa e no abuso do humano pelo humano.

Eu não sou Pilatus (2019) de Welket Bungué é um manifesto artístico antirracista construído a partir do diálogo entre dois vídeos de telemóvel, difundidos nas redes sociais: um rejeita uma manifestação por direitos civis na Avenida da Liberdade; o outro denuncia a carga policial no Bairro da Jamaica, que lhe deu origem. Ao declarar “eu não sou Pilatus”, Bungué posiciona-se politicamente: não lavo as mãos, não ignoro, não olho para o lado — confronto a injustiça. A pergunta fica implícita: e nós?

Coronas in the Sky (2021), de Melissa Rodrigues, nasce de uma residência artística em plena pandemia. Entre silêncio, sirenes e deslocações exaustivas, materializa-se uma performance-poema que denuncia desigualdades raciais, sociais e de género, questiona o poder e dança sobre a ferida colonial. Uma luz aponta o céu ou o futuro.

Pocas Pascoal – Time to Change (2024, DOC/FIC, 5’)

Welket Bunguê – Eu não sou Pilatus (2020, DOC, 11’)

Melissa Rodrigues – Coronas in the Sky (2021, ficção, 14’)

Conversa: Kitty Furtado, Melissa Rodrigues (50’)

Dur. 80’

 

por Marta Lança e Ana Cristina Pereira (AKA Kitty Furtado)
Cara a cara | 13 Outubro 2025 | cinema negro, memória, representação