O mundo está cheio de estórias, basta estar atenta - entrevista a Aline Frazão

Muitos lhe admiram o profissionalismo e a consistência com uma idade tão jovem. Voz doce e a firmeza na guitarra, alma de poeta e convicção no sonho de uma Angola com maior horizonte e igualdade, Aline Frazão já conquistou o coração de muitos ouvintes. Fala de uma particular forma de sentir e criar, da qual resulta o seu primeiro disco Clave Bantu, cujo lançamento está em curso nas suas várias geografias afectivas.

Como se tem operado a tua descoberta da música?

Tem sido um caminho bonito e gratificante, de muita aprendizagem, trabalho e de algumas dúvidas também. A nível criativo uma descoberta partilhada com outros artistas com quem tenho aprendido imenso. Por outro lado, começar agora uma carreira profissional na música dá muito trabalho. O contexto actual apresenta muitos desafios especialmente para quem está a começar. É o momento de experimentar novos modelos porque os antigos já deram provas de que caducaram. A internet vem mudar a maneira como se lida com a música, seja no papel de artista, seja como público. Pessoalmente, como tenho optado por uma via mais independente, aprendo a gerir eu mesma a minha carreira. Isso também é uma descoberta interessante. Gosto de poder acompanhar passo a passo o desenvolvimento das coisas, o que acontece com a gravação deste disco. Todo o processo de vê-lo ganhar forma é trabalhoso mas apaixonante, desde os ensaios até ao disco na casa das pessoas. Vale a pena.

Como caracterizas a música que compões?

Não há um tipo, uma forma ou fórmula. Começa bastante espontâneo e parte muitas vezes da observação. Podem ser meros devaneios descritivos, relatos de estórias ou uma crítica social concreta. As pessoas e as relações entre elas são uma fonte inesgotável de temas. O mundo está cheio de estórias. Basta estar atenta. Algumas dentro de nós, na nossa casa, no trabalho, outras na nossa porta, no semáforo, no trânsito, no musseke ou no Miramar. Gosto que as músicas tenham algum conteúdo que faça pensar, que nos ponha de vez em quando em cheque-mate, que nos provoque, que nos faça sentir coisas e mudar de pele.

Sentes-te uma boa contadora de estórias da tua Angola?

Há em Angola excelentes contadores e contadoras das nossas estórias, epecialmente na literatura. Essas estórias fascinam-me, gosto de ouvi-las, lê-las e vivê-las mas não as sei contar com especial arte. É verdade que Angola, e em especial Luanda, faz parte da minha própria estória e esse é um caminho pelo qual passo obrigatoriamente quando canto e quando escrevo. Levo isso dentro. Além do mais, sou de uma cidade altamente inspiradora, um caos de estórias permanentes e mutantes. Eu tento cantar e contar tudo isso, a saudade, o deslumbramento, a revolta, o ritmo.

Qual é a força de actuar ao vivo?

Feliz, como em casa, na minha verdadeira pele. No dia-a-dia temos que assumir sempre tantos papéis que sabe bem subir a um palco e poder despir todas essas capas. Para mim é sempre uma experiência intensa: tem um lado curativo e um lado comunicativo potente. É um luxo contar com a atenção e com o silêncio das pessoas num mundo cheio de estímulos de informação. A música ao vivo ainda consegue ser um momento de “stop”.

De onde vem essa maturidade e segurança quando estás em palco e na gestão da tua carreira?

Fui ganhando segurança com o tempo, conseguindo dominar os nervos e centrar-me no que tinha para dizer. Não gostava da sensação de ficar com coisas por dizer. Talvez essa inquietude e ansiedade me ajudem a construir alguma segurança para logo poder desfrutar de estar em palco. Também com o tempo fui aprendendo a moldar a minha voz ao que queria transmitir, sempre de uma forma autodidacta. Gosto muito de interpretar canções e o repertório brasileiro foi uma grande escola. Admiro a força da Elis Regina: é impossível ficar indiferente a uma interpretação dela.

Que dizes do trabalho em colaboração com outros artistas angolanos?

Gosto muito de manter contacto com outros artistas angolanos porque há uma afinidade e linguagem partilhada. Interessa-me muito colaborar e criar em conjunto, misturando a música com literatura, com cinema, com performance, com artes plásticas, com dança ou com fotografia. Nesse sentido, tenho tido o prazer de trabalhar com o Agualusa e com o Ondjaki em algumas letras, e também com o Kiluanji Kia Henda, com quem ando a cozinhar umas ideias.

Como tem sido viver longe de casa e ver Angola à distância?

Em geral, desfruto bastante da viagem, dos lugares e das culturas onde me encontro, evitando comparações. Viver em países chamados “desenvolvidos” pode ser uma boa escola se sabes seleccionar e aproveitar. Tenho sempre em mente Angola: acompanho as notícias, especialmente a nível político e social. Mesmo estando longe não deixo de me preocupar com o que acontece lá. Talvez viver fora nos dê esse distanciamento necessário para analisar a realidade de forma crítica e mais objectiva, livrando-nos do peso dos problemas de todos os dias que nos absorvem completamente numa cidade como Luanda onde a noção de tempo se reduz muitas vezes ao curto-prazo, tal é a dificuldade de fazer planos. Há muitas coisas que falham: a falta de luz e água, o trânsito não avança. Isso ocupa-nos a cabeça. Mas também é verdade que viver assim nos dá outra ginástica mental para resolver problemas.

Conta-nos um bocadinho sobre o teu primeiro disco.

Será um disco com canções minhas, com um som minimalista mas com muita energia também. Como durante muito tempo me apresentei só com a guitarra, e além do mais é o instrumento que uso para compor, quis manter-me fiel a essa sonoridade inicial dando mais força e completando com outros instrumentos. Então formei esta banda. No contrabaixo o cubano Jose Manuel Díaz, um músico impressionante que vem do jazz mas que leva no corpo o groove cubano. O Carlos Freire, da Galiza, na percussão. Ele formou um set de bateria muito interessante, usando instrumentos de percussão, o que faz com que se mantenha essa ligação à terra, mais quente. Vamos gravar todos ao mesmo tempo, como se fosse um concerto, e sem metrónomo. Desta forma procuramos conseguir uma música mais fresca e autêntica.

Como imaginas o concerto ideal em Luanda?

Os concertos são muitas vezes surpreendentes e criam-se dinâmicas entre músicos e público difíceis de prever. Por isso é preferível não os idealizar muito e deixar que aconteçam.

Quais as tuas principais referências no universo da música angolana?

Admiro a época da música popular a partir dos anos 50 em Luanda, todos aqueles conjuntos, dos N’gola Ritmos aos Kiezos, a Belita Palma e a Lourdes Van-Dúnem. Gosto de ouvir esses discos antigos, e gosto especialmente de semba. Além disso, sou uma grande fã de Filipe Mukenga, André e Ruy Mingas, Paulo Flores… e identifico-me muito com eles a nível musical.

De uma Luanda da infância para a de agora, o que mudou?

Muita coisa mudou da Luanda da minha infância para agora. Na Luanda da minha infância o tempo era mais lento, as distâncias mais curtas e os serões de sábado mais longos. Na Luanda da minha infância não havia elevadores nem tantos geradores, nem tantas antenas parabólicas. Passávamos mais tempo na praia do que no trânsito, não se saía muito de Luanda por causa da guerra, não havia estradas boas até ao Lubango, brincava-se mais na rua ou no corredor do prédio, havia menos muros altos, menos guardas, mas mais meninos de rua. Muitas coisas mudaram. Hoje Angola está em paz e experimenta um momento de grande crescimento económico. Isso alterou o estilo de vida de Luanda para o de uma grande cidade. O stress aumentou, os preços subiram. É muito difícil viver na Luanda de hoje e imagino que, para uma criança, mais ainda.

Aline Frazão e Ikonoklasta (Luaty Beirão) num concerto na Casa do Brasil, Lisboa, Julho 2011, produção BUALA.Aline Frazão e Ikonoklasta (Luaty Beirão) num concerto na Casa do Brasil, Lisboa, Julho 2011, produção BUALA.

público no concerto de Alinepúblico no concerto de Aline

Quais os grandes desafios da tua geração?

É um desafio conseguir romper com as dinâmicas viciosas que se vivem em Angola como a corrupção, as cunhas e o medo de falar abertamente. É um desafio deixar de olhar para o próprio umbigo e abrir os olhos à injustiça e a desigualdade que se vive no nosso país, é um desafio renovar a classe dirigente, educar as novas gerações e não cair no erro de pensar que o crescimento económico desenfreado é o melhor caminho para Angola. É um desafio encontrar a nossa cara, a nossa identidade, entre as nossas raízes e o kuduro mais urbano. Falamos de tendências muito marcadas não só em Angola como em todo o mundo, às que é ainda um desafio contrariar. Mas tudo depende da nossa própria vontade, da nossa iniciativa, da nossa criatividade. Eu tenho esperança.

A terminologia cultura lusófona faz algum sentido para uma pessoa como tu?

A cultura lusófona são várias culturas que falam muitas línguas diferentes mas que podem comunicar entre si através da língua portuguesa. A lusofonia ainda não existe, pelo menos como eu a idealizo. A lusofonia às vezes acontece, quando eu encontro alguém do Rio de Janeiro em Buenos Aires e começamos a conversar sobre os nossos laços e as nossas diferenças de sotaque, ou quando viajas a Cabo Verde e encontras um imaginário da tua infância, das mornas que ouviam os kotas lá em Luanda. A lusofonia é um projecto, uma espécie de quimera em que alguns acreditamos, em que algum dia a língua poderá servir de abraço entre todos esses lugares tão ricos e diferentes, sem preferência e assumindo a nossa História, dialogando, cantando, pensando juntos. E é claro, não é possível conceber a lusofonia sem a presença da Galiza. Até foi o Pepetela quem propôs uma vez o termo “Galeguia” em vez de “Lusofonia” e acho que é uma proposta interessante. Dessa forma, retiramos o “luso” que tanto pode atrapalhar na hora de olharmos para a verdadeira razão de se falar português, francês e inglês em África, que é a colonização. Por outro lado, “Galeguia” remete para a origem da língua, o galego-português, e inclui essa terra que pode ser a peça-chave no puzzle, por gozar de um estatuto de neutralidade dentro da lusofonia, fora da polarização viciosa de Brasil-Portugal.

És uma rapariga aparentemente doce, onde escondes o mau feitio e teimosia?

Não considero que tenha mau génio em geral mas, se tiver, também o melhor é não esconder. Pode surpreender algumas pessoas quando canto alguma música minha de cariz mais crítico ou a forma como defendo algumas ideias em que acredito. Mas também tenho aprendido a não entrar em qualquer discussão. Valorizo muito o debate e a troca de ideias mas prefiro sair de cena quando as pessoas já não se ouvem e aquilo se transforma numa afirmação de egos. Eu própria tive que aprender a ouvir. Quanto à teimosia, acho que não sou uma pessoa teimosa. Sou bastante determinada quando tomo uma decisão ou um caminho, mesmo que, muitas vezes, demore a decidir e dê muitas voltas.

Aline FrazãoAline Frazão

Como vês a situação e condição das mulheres angolanas?

As mulheres angolanas têm que começar a pensar sobre a sua própria condição e sobre o papel que querem assumir neste momento do país. A verdade é que não têm muito tempo para isso. Afinal são elas as que o mantêm a funcionar, são as grandes administradoras das economias familiares, as grandes educadoras, as grandes trabalhadoras, seja na zunga, seja em casa a cuidar da família. Penso que a verdadeira mudança e (r)evolução social e política em Angola só vai acontecer quando as mulheres saírem desse âmbito quase exclusivamente privado e vierem participar na cena pública, decidindo e opinando como iguais. Temos que nos fazer ouvir. Quando isso acontecer vamos todos ganhar. É preciso trabalhar para que se criem condições para que isso aconteça, principalmente a nível educativo para que se abandone a mentalidade sexista e para que a igualdade de direitos e de oportunidades seja uma realidade em Angola.

 

Entrevista parcialmente publicada na revista angolana Chocolate, em 2011.

por Marta Lança
Cara a cara | 9 Novembro 2011 | Aline Frazão, cantora, lusofonia, música angolana