Durante o tempo que corria lento, shelter-in-place, fui mergulhando nos universos que estas duas mulheres traziam para mim. Nunca mais parei. Quando comecei a escrever este texto, tinha a forte sensação de que haveria algo mais a ligar estas duas mulheres do que a sua força e uma necessidade de construir narrativas quase tão intensa quanto a sua necessidade de destruir outras (narrativas). Entre o luto da minha cadela e uma busca voraz de futuro que me levou a mergulhar de cabeça na tradução do texto Positive Obsession/Obsessão Positiva, de Butler, descobri esta ligação. O que se segue é a história desta descoberta.
27.06.2024 | por Patrícia Azevedo da Silva
Após o fracasso das tentativas, o nome completo da criança e o hospital onde o aborto seria realizado foi vazado para uma ativista de extrema direita que convocou uma verdadeira caça às bruxas, endossada por uma horda de seguidores. A menina precisou de entrar escondida, no porta-malas de um carro, no hospital no Recife, no Estado de Pernambuco, onde finalmente conseguiu ter seu direito cumprido, porém precisou aderir ao Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência (Provita) e mudar de identidade e endereço para ter a oportunidade de viver sem a perseguição de fanáticos religiosos.
19.06.2024 | por Gabriella Florenzano
Na rua, a vender, tudo se partilhava. O que era de uma estava sob cuidado de todas as outras no mesmo espaço. Havia relações de confiança entre minha mãe e suas companheiras que chegaram a transcender o espaço da rua e perduram por anos. Essas mulheres emprestavam o pouco que tinham quando uma ou outra precisasse de ajuda, praticavam o Ubuntu mesmo sem conhecer a palavra: uma era porque as outras eram. Existiam em coletivo. A solidariedade entre essas mulheres não deixava de ser um ato político na medida em que, juntas, resistiam a um contexto sócio-histórico e político hostil, encontrando ferramentas conjuntas para a sua sobrevivência e das suas famílias.
17.01.2024 | por Leopoldina Fekayamãle
Ao aprofundarmos a reflexão sobre as lógicas coloniais ainda presentes em nosso cotidiano, revelamos a complexidade da verdade e a urgência de agirmos em consequência disso. Isso implica em abandonar posturas arraigadas e abrir mão dos privilégios associados à branquitude e à Europa. Essa renúncia pode ser o ponto de partida de negociação da realidade.
24.10.2023 | por Marcela Pedersen
Precisamos de uma crítica queer, ainda, por nos encontrarmos numa relação de curto-circuito causal com as instituições que governam o conjunto das relações sociais. O ciclo de acomodação e assimilação, pela sua lógica aditiva e integrativa, colocará sempre a racionalidade da instituição primeiro. Eventualmente, esta poderá atualizará a sua retórica, o seu reportório: as fórmulas da sua representação. No limite, talvez seja impactada, a um nível menos percetível, pelos princípios e pautas políticas às quais dedica apenas a mais performativa das atenções.
16.07.2023 | por Salomé Honório
Nesta obra, pretendo, pois, repensar em parte as questões levantadas nos Problemas de Género que provocaram desorientação, e reflectir sobre o funcionamento da hegemonia heterossexual no forjar de matérias sexuais e políticas. Este livro, como reformulação crítica de práticas teóricas distintas – entre elas os estudos feministas e queer –, não se quer programático. Ainda assim, enquanto tentativa de clarificar as minhas «intenções», parece destinado a gerar um novo conjunto de equívocos. Que ao menos sejam equívocos produtivos.
24.06.2023 | por Judith Butler
Já entendemos a predisposição cissexista e trans-exclusionária da larga maioria das instituições artísticas e culturais portuguesas. Somos capazes, confio, de reconhecer um recorte pelo qual corpas queer são constituídas enquanto autoras e estórias queer são constituídas enquanto obras, desde que se salvaguarde a distância crucial que separa “queer” de “trans”. Corpas e estórias trans importam, neste paradigma, como tópicos. Como objetos formais, figuras de estilo, artefactos ocasionais. Como elementos variáveis na produção do espetáculo, e na preservação do espetáculo da norma enquanto tal.
19.06.2023 | por Salomé Honório
Com a emergência de feminismos dissidentes, o sujeito político do feminismo hegemónico é colocado sob suspeita. Se, até então, para o feminismo hegemónico a categoria de mulher era relativamente estável, incorporando e subentendendo um sujeito político biologicamente mulher, ocidental, de classe média, branca e heterossexual (silenciando subjectividades outras), com as críticas introduzidas pelos feminismos dissidentes esta categoria universal e naturalizada será alvo de profundos descentramentos ou des-territorializações. Tais desterritorializações (sejam discursivas, geográficas ou biopolíticas/no próprio corpo) surgem, entre outros, de discursos críticos do pós-modernismo, pós-feminismos, feminismos negros (Black Feminism), pós-coloniais e de teóricos gays e teóricas lésbicas, trabalhadoras/es sexuais ou actrizes porno que vêm iluminar – com categorias como raça, etnia, orientação sexual, heteronormatividade – a complexidade e multiplicidade de opressões. Tendo como pretexto a(s) teoria(s) da sexualidade de Beatriz Preciado (2002) lançada(s) no "Manifiesto contra-sexuale" recorrendo às discussões sobre pornografia nos movimentos feministas, este artigo pretende ser um pré-texto da confrontação reflexiva reclamada, aos feminismos, pelos desafios colocados pelas abordagens queer.
21.02.2023 | por Salomé Lopes Coelho
Os tempos mudaram e as famílias acompanharam estas mudanças. Hoje, tendencialmente, vai-se valorizando as relações afectivas em detrimento dos modelos de família do passado. Em vez de se alimentar mentalidades retrógradas da nossa sociedade que ainda hoje condenam mães solteiras, temos de compreender o fenómeno e tentar incluí-lo como um dado nas, cada vez mais variadas, formas de ser família, desde monoparental a famílias compostas, passando por pais ou mães do mesmo sexo. Por outro lado, as mães solteiras são consideradas guerreiras, lutadoras, elogiando-lhes o sacrifício e a abnegação, o que não deixa de ser manifesto de uma mentalidade machista, em que a mulher, cuidadora por excelência, "aguenta tudo" e pode perfeitamente abdicar de si. Uma coisa é ser mãe solteira por opção, outra é, como na maioria dos casos, sê-lo porque o homem não assume a paternidade ou é mais um pai ausente. A educação e o trabalho remunerado foram fundamentais para a emancipação da mulher, a partilha das responsabilidades em relação aos filhos também o são, assim como o direito a ser mãe solteira por opção mas com condições.
24.01.2023 | por Marta Lança
A arte de Uýra Sodoma é plástica, mutável, transitória. É tanto destrutiva e quanto regenerativa, como também o são as transformações contínuas da ecologia úmida e proliferativa da floresta tropical. Replica e altera as forças e formas do território onde nasceu. Sua exploração contínua não é guiada pelo desejo de domínio mas pelo encanto do reimaginar. As formas que Uýra Sodoma cria a partir de seu próprio corpo são enredadoras e deslumbrantes. No centro delas, um olhar agudo escava e revela o está oculto sob os escombros da conquista colonial e sua história sem fim.
02.12.2022 | por Sonia Corrêa
Qualquer tentativa de definir uma «música queer» no contexto português depara-se, desde logo, com uma realidade: não existe entre nós uma frente assim identificada. O que verificamos no tecido musical do país é a gestação de algo que, de uma forma ainda disseminada e desorganizada, anuncia uma tendência. Tentamos juntar as peças desse puzzle e compreender o que está a acontecer no exato momento em que ocorre e não a posteriori, algo que caracteriza, infelizmente, a musicologia. Como o que se vai ouvindo vem de muito distintos núcleos de criação, raras vezes com oportunidades de confluência (concertos nos mesmos espaços, por exemplo), de uma frente não se trata. A motivação para escrever este capítulo está na possibilidade de, juntando microrrealidades específicas, tentar revelar o que as une.
05.09.2022 | por Rui Eduardo Paes e Alix Didier Sarrouy
Em mil quatrocentos e qualquer coisa, ao desembarcarem de seus barcos usando suas pernas em território americano, humanos usaram seus braços para carregar até os barcos coisas que não eram suas, depois usaram seus barcos para levá-las embora. Fizeram este movimento de braços e barcos por séculos Acredita-se que os braços humanos podem ter processado um esticamento por excesso de uso. Usa-se braços para fazer o sinal da cruz.
02.08.2022 | por Manuella Bezerra de Melo
Os estudos compilados nessa coletânea oferecem uma atualização do cenário das políticas antigênero na América Latina, desde 2019, quando foram finalizados os estudos do ciclo anterior. Essa nova rodada contempla sete países (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador e Uruguai) e o ambiente da OEA. Essa atualização foi examina a interseção entre as ofensivas antigênero e antiaborto e as condições decorrentes da pandemia de COVID-19.
Esse exercício, assim com no caso dos estudos anteriores, exigiu a análise de outras dimensões do contexto regional.
07.04.2022 | por Sonia Corrêa e Magaly Pazello
Cabelo liso caindo atrás dos ombros, camisa às riscas brancas e castanhas acinzentadas, lábios pintados de carmim. Braço apoiado numa mesa com uma toalha de renda branca e uma jarra de flores de plástico. Olhos fixos num ponto alto invisível. Fundo de tábuas brancas em ângulo com uma parede verde. Respondia à pergunta: “Quem é Thalia?”. “Thalia é respeitada. Uma das coisas mais lindas que buscamos nesta vida é amar e ser amada. Que alguém te queira pelo que és. Thalia liberta. Somos fortes, também frágeis e débeis, mas somos implacáveis, somos duras.”
Quando os paramédicos da Cruz Vermelha chegaram ao casebre, a ativista já não vivia. Uma onda de protestos e manifestações varreu de imediato as Honduras. “Justiça!”.
01.02.2022 | por Pedro Cardoso
Estamos habituados a que um homem tenha muitas esposas, habituados a marcar casamentos quando se descobre que a pessoa nasceu com uma vagina (e ainda nem sequer lhe demos um nome), às vezes, o casamento é marcado com homens já com outras esposas e com netas mais velhas que a recém-nascida. Habituados a que o homem possua mulheres (em todas acepções da palavra), que quando vemos um homem a desfilar com catorzinhas, assumimos simplesmente que ele está no seu direito e que ela é que é puta.
06.12.2021 | por Marinho de Pina
Imagino que tenha sido mais ou menos por esta altura que Sara se libertou do glossário da doença, abandonando a guerra da informação e interpretação com os médicos e o sistema estigmatizante, complexo como nova gramática agora recusada. Susan Sontag dedica algumas páginas da sua reflexão sobre o cancro precisamente ao sistema de metáforas bélicas que entorna o doente, o seu percurso por corredores de tratamento e minimizações, numa lógica de batalha campal, lutas, vitórias e derrotas. Sara Goulart parece ter desistido precisamente desse argumentário no momento em que escolheu desviar-se da novilíngua obscura dos hospitais.
28.10.2021 | por Margarida Ferra
Não faz mal mostrar ao mundo a realidade, não temos de fingir, chegou a hora de mudar e fazer uso da nossa voz, não somos mais crianças, nem meninas assustadas que são seguidas, nós somos mulheres que dizemos sim ou não quando queremos, que fazemos uso do nosso corpo para o que queremos, que consentimos quando desejarmos e exigimos respeito em todos os momentos da nossa vida. Não vamos desistir.
22.09.2021 | por Alícia Gaspar
A vida organiza-se em rede. Os produtores primários produzem o seu próprio corpo que serve de alimento aos herbívoros que, por sua vez, são o alimento para os carnívoros. Os decompositores alimentam-se da morte de todos os anteriores. As relações entre produtores, consumidores (herbívoros e carnívoros) e decompositores regulam os ciclos em que a matéria é reciclada. Transferem entre si a energia do Sol, que só pode ser capturada pelos produtores primários. Em cada transferência de energia, a maior parte é perdida.
05.07.2021 | por Yayo Herrero
Então eu comecei a pensar que se essas pessoas não conseguiam encontrar ninguém para conversar, e se este seria o registo das nossas vidas naquele momento histórico, eu precisaria fazer um mergulho profundo nessas vidas, nessas histórias. À medida que o projeto foi avançando, ficou claro para mim que a melhor coisa que eu podia fazer era escrever um livro.
23.06.2021 | por Caio Simões de Araújo
"Nunca imaginei participar numa administração para mulheres, ou trabalhar numa posição administrativa ou política, ou em qualquer outro campo, para além de ser uma dona de casa. Para ser honesta, isto é como um sonho que eu nem sequer conseguia imaginar ter", diz Maryam Ibrahim, cinquenta e seis anos.
30.05.2021 | por Margherita Orsini