Da Paraíba para o Chiado, a música brasileira em Lisboa pela voz de Natureza

Quando entrámos no estúdio do Kuaquá era demasiado cedo. Ainda nem batera a meia-noite, os filhos do Kuaquá - que é músico e estava a tocar no Bairro Alto - abrem a porta servindo calmamente as primeiras cervejinhas. Aqueles poucos metros quadrados servem como grande lugar de encontro entre músicos. Tanto acontecem ensaios e gravações de música, aulas e workshops, ideias para novos projetos comuns como podem alongar-se improvisos noite fora.

Ali começa outra parte da noite – mais informal - quando os músicos descem da outra parte da noite, depois de terem tocado nos bares da zona. Fica na rua Poço dos Negros, onde  D. Manuel mandou cavar um poço para atirar os cadáveres dos africanos. (Ler sobre Lisboa negra nesta entrevista a Jean-Yves Loude.) 

Inscrito na violência da nossa infindável história colonial, da qual tantas toponímias dão sinal – o Poço dos Negros é também lugar de grandes misturas culturais na cidade, e recentemente ali se desenvolveram algumas estruturas de teatro: a RE.AL, a Cão Solteiro, Teatro Praga, “uma comunidade artística que se vê como um contrapeso ao êxodo e gentrificação deste triângulo entre a Assembleia da República, o Bairro Alto e a Bica. As marcas de invasão turística são cada vez mais galopantes. O aluguer temporário de apartamentos a estrangeiros generalizou-se.” (Público

À histórica presença africana, e muito particularmente de cabo-verdianos, acrescenta-se agora a esta zona portuária de Lisboa o circuito dos músicos brasileiros.

Dentro do estúdio há duas salas de ensaio, estúdios insonorizados. O que salta logo à vista é uma mesa comprida disposta para sociabilizar. As paredes forradas com discos de vinil, pratos de baterias, pequenas guitarras, todo um convite à música. Uns quadros naif. A televisão ligada na MCM desfilando videoclipes pop. Na black box um grupo de músicos ensaia. Falaremos com eles, são a banda do Chico Moreno.

O desafio para ouvir algum protagonista desta rede de músicos brasileiros na cidade chegou por via do projeto “O trabalho da arte e a arte do trabalho – circuitos criativos de formação e integração laboral de artistas imigrantes em Portugal”, coordenado pela Lígia Ferro e Otávio Raposo, do ISCTE-IUL, CIES-IUL, financiado pelo Alto Comissariado para as Migrações, através do FEINPT (Comissão Europeia) que o Buala está a acompanhar.

Kuaquá toca nos Portas Largas.Kuaquá toca nos Portas Largas.

 

Infância à solta em João Pessoa 

Por agora estamos à conversa com um músico de João Pessoa, Paraíba, Brasil, que se apresenta como Natureza. Porquê Natureza? “Natureza é o meu nome natural que eu uso.” Tem uma força e alegria de menino. Um rosto marcado pelas suas longas andanças.  Não tirou os dread locks que desfilam nas suas costas de branco. Com uma gargalhada contagiante, começa a desfiar histórias….

Quando era ainda o Júnior, vinha de uma família de pescadores e gostava muito da natureza, de acampar do mar, mais propriamente  na praia do Poço, João Pessoa. Zona era quase indígena. O seu avô plantou mais de mil coqueiros naquela praia que haveriam de ser “desplantados pelo progresso”. E ali andava Natureza, ainda Júnior, entre prédios, mar e cajueiros (desmataram 18 kms de cajueiros de todo o tipo), sempre fugindo de casa e da escola. O avô e tio tocavam violão, Júnior ia pegando o jeito, até que conheceu um amigo que lhe garantiu: “Rapaz tu tem jeito, tu é bom. Tu é um músico.” Acreditando no presságio, o amigo levou-o a estudar música no instituto dos cegos.

“Lá tinha uma tradição, só tocávamos músicas nossas. Criávamos. Músicas que ainda toco até hoje.”  E sobre o que falavam as canções? Questões sociais, o ambiente, amor.

Começou a trautear o Xote da Morena, música do Natureza que a banda Xapadão, do Espírito Santo, canta. 

Natureza odeia política, por ser muito mentirosa. E por estar desiludido com as capitulações. “Eu conhecia e tomava cachaça com os políticos. O governador, que antes era o perfeito, que estava sempre a favor dos movimentos estudantis, etc é o primeiro a foder todo o mundo. O que era oposição se tornou da posição.”

Foi contratado para fazer um show para um desses que viraram a casaca, que “dantes era pessoa boa.” “Pediu-me a caricatura dele, fiz o boneco e no dia da campanha lá estava ele com o boneco. Quando passaram os meus amigos da oposição ficou-me um vazio. Era a verdade que você não quer ver. Passa a ser um traidor quando você não é.” Então decidiu que a sua forma de intervir seria sempre através da arte.

Natureza foi trabalhando de todas as maneiras que encontrou para sobreviver: como fiteiro, vendendo coisas no pequeno comércio, aos 16 anos no mercado, e pouco depois como office boy num banco (estafeta) e noutras empresas. Paralelamente fez dois bonecos gigantes num bar que era o ponto de encontro de todo o mundo.

Viveu sempre em João Pessoa. Com 16 anos ganhava três salários que gastava com coisas que gostava, como guitarras e já tinha comprado um carrinho. Convivia com artistas, da música e das artes plásticas. Mas naquela mentalidade ser artista era visto apenas como um hobbie ou part-time, ninguém vivia da arte. Só o banco ou coisas do género davam estatuto. E Natureza reflectia: “Caramba, é melhor eu perder o emprego agora, antes que sufoque.”

Auge do rock

No início o rock n’roll dominava. Formaram a banda Adúltera e depois a Danger, para a qual também escrevia as letras. Muito hard rock, meio punk. Como se pode ver no documentário Tá sentindo cheiro de queimado?, de Everaldo Pontes e Bertrand Lira [JP, 18min, doc, 1988].


Nesta viagem pelas bandas underground, grupos punk e hard core, de trash de João Pessoa e Campina Grande damos conta da cena embrionária do rock paraíbano com sinais do que viria a ser a explosão do rock na década de 90. 

A carreira de Natureza vai-se expandido. Uma cassete sua rodou o mundo. O movimento de rock crescia no Brasil. Faziam concertos e marketing caseiro, de mota, que foi depois roubada.  

Natureza administrou o bar Náutilos Submarino, próximo da universidade. Foram dois anos a programar várias bandas do brasil, que iam lá tocar aos sábados, sempre a abarrotar de público o que também trazia chatices: “todo o tipo de polícia baixava lá.”

Era o auge do rock. “Foi uma revolução.”

 

“Nunca pensei vir para Portugal.”

Curiosidade de conhecer o mundo havia. Mas era mais o Japão por causa do pai de um amigo que trabalhava no navio de pesca e matava baleias com canhão. Sim, eram bem vindas viagens para fora do Brasil. Mas ele queria era ir ao Japão, aos EUA, França, à Inglaterra por causa dos Beatles, Argentina e os países de fronteira com o Brasil.

A ideia da música portuguesa era apenas um pouco de Fado que a mãe e a avó ouviam.

Aconteceu estar casado com uma moça que trabalhava no café de um português. Que lhe apresentou um amigo que disse “Vá lá a Portugal, leva a sua música.” Natureza nem precisava. “Nunca vivi de música mas trabalhava com arte e crianças, dava aula de teatro na cidade de Capim, de música, pintura, xadrez, fazia iniciação ao cinema amador com os meninos.” Já há cinco anos que viajava pelo país a tocar MPB, forró, música nordestina, Zé Ramalho, Alceu, Geraldo Azevedo. Trabalhava com ONG, com cineastas, com artesãos. Tudo o que precisava tinha a universidade a dar-lhe cobertura.

Então não seria por razões financeiras que deixava o Brasil, apesar de sempre ter sido aventureiro. Para a mulher sair do trabalho do português que a escravizava, montaram um restaurante. A ideia era Natureza vir para Portugal e, se desse certo, ela viria também. Mas o destino prega partidas. “Aconteceu que ela casou com outro. Foi bom porque quero que ela seja feliz.”

Natureza a tocar na Rua Augusta Natureza a tocar na Rua Augusta

 

Tempos difíceis 

Chegou a Portugal há 6 anos. Foram tempos complicados os do início, como em tantas histórias de imigração: “trabalho não tinha, o dinheiro não chegava, não conhecia músicos nem artistas. Ganhando a miséria de 30 euros por semana, vai trabalhar para as obras, o que o ajudava a tirar a residência.

Depois foi tocar num restaurante em Loures. “Para desenrascar fiz chapéus, de flores, de cobra, que vendia em qualquer lugar.” Depois de Loures, passou por Odivelas. E Natureza conclui, optimista depois desses tempos difíceis: “Hoje eu estou feliz.”

 

Saindo do ensaio

A banda de Chico Moreno, baianos, acaba um ensaio e interrompe a nossa conversa com Natureza. Preparam-se para tocar perto do palácio de Queluz, colorindo a linha de Sintra com os seus sons de axé, um bocado de forró, quizomba e música sertaneja. É uma fusão de estilos, como no Carnaval na Bahia, onde “rola tudo.”

Já cá estão há 15 anos. Vão ao Brasil de vez em quando, por uns meses, no Carnaval.

Chico Moreno não se coibe nas certezas: “mas a vida é que aqui. No entanto, para aguentar aqui tenho de viajar. Suíça, Londres são alguns dos lugares.” Consegue viver da música, mas de vez em quando tem de tocar sozinho em bar e restaurantes. Mas bom bom é o palco.

“No início era fácil, no terceiro programa já passava a ser uma estrela aqui. Virou banal. Hoje todo o mundo é músico. Há pessoas que viram músico no avião.”

Chico toca na margem sul, no Barreiro e num bar da Graça, o Chafarica.

 

“Bairro Alto fica uma coisa viciante, se acomodam.”

Um músico da sua banda toca no Teatro do Bairro. Todos se queixam que os bares do Bairro Alto pagam mal, um cachet de 45, 50 euros, média, tocando 4 horas sem passar.

“Bairro alto é mais curtir, não compensa muito para tocar. Posso ser o menor, mas cada um tem o seu valor. Prefiro tocar em restaurante do que em bar que pagam melhor”, conta Chico Moreno.

A Rua da Atalaia tem música ao vivo brasileira quase todos os dias, até às 2h da manhã. Cada bar com a sua tendência no tipo de músicas e de públicos. O Arroz Doce e Portas Largas, pejados de turistas, apostam mais nos “covers”. Espalhafato e Marganês têm um público mais local e lusófono, com Forró e Samba.

Com as restrições legais que a Câmara de Lisboa impôs aos horários e proibições do consumo na rua, há uma deslocação de público para outros pontos da cidade.  Os músicos sentem-se afectados com algumas mudanças, perda temporária de trabalho e redução do cachet.  

Assim, a banda de Chico Moreno vai procurando outros nichos de mercado. “A gente viaja para tocar nas festas.” E o que gostam de ouvir os portugueses? “Os portugueses gostam de ouvir o que vêem na internet.” Quais são agora os sucessos do youtube? Piradinha, Bará Bará Berê Berê, Lê Lê Lê, Parada Boa, enfim, música sertaneja.

Trabalhar em Londres é uma possibilidade para eles. Ali há todo um circuito de MPB, Forró e Pagode.  Chico Moreno grava com a editora Espacial. “Botam tudo na rua. Mas não dá para ter um disco de originais. Também faço muito eu. Trabalhei na rádio.”

 

Tocar na rua

Quando a banda de Chico Moreno vai embora do estúdio, Natureza refere como esse mundo é diferente do dele. “A minha situação é muito diferente, a música que eles tocam tem mais mercado, é o tipo pimba que os portugueses gostam.”

O tipo de música de Natureza também tem aceitação, por exemplo a Valsinha do Chico Buarque, ou qualquer canção do Djavan. Natureza confessa: “Não sou bom de negócio, nunca pensei em fazer a coisa pensando no que tenho de ganhar, faço porque gosto do que estou fazendo. Procuro fazer aquilo que tem a ver comigo.

Se você quer que eu cante a Garota de Ipanema e eu não sinto eu não vou cantar. Ou canto e vai sair vazio. Depende do momento.”

Ultimamente, Natureza toca com o baixista Nené nas ruas de Lisboa. Começam o dia na Brasileira, uma paragem Largo do Carmo, e descem até ao Rossio, à Ginginha. A cidade cheia de turistas ajuda a fazer dinheiro com a animação de rua, se trabalharem o dia todo conseguem uns 150 euros.

Mas ainda assim há constrangimentos: “Temos uma rotina de trabalho e uma repressão de trabalho. Os polícias perseguem e a freguesia diz que não nos vai dar licença de trabalho. Mas todo o mundo continua tocando.”

 

por Marta Lança
Palcos | 29 Junho 2015 | Brasil, imigrantes, Músicos brasileiros, natureza