Sérgio Afonso, o rapaz da câmara fotográfica

Foi já em 1982 que Sergio Afonso aportou a Luanda, vindo de sete anos de viagens. Nascido em ano da independência no Huambo, partiria logo nesse verão quente para Portugal para conhecer a sua terra libertada, às costas de uma família, simpatizante do MPLA, que era expulsa de Angola pela Facção Chipenda e a FNLA. “Ano conturbado e difícil. Por pouco, não estaria a contar esta história”. O nosso jovem fotógrafo introduz logo o aspecto dramático que bebeu no berço. Nessas fugas aos tempos difíceis Sérgio refere a temporada em casa de uma amiga dos pais, conhecida de Benguela, na pacata vila portuguesa São Pedro de Moel onde fez a primeira classe, experiência que lhe deixou o gosto de viver junto ao mar. A família regressara a Angola em 1978, e instalou-se nos blocos construídos pelos cubanos, em pleno bairro Mártires de Kifangondo, junto ao aeroporto 4 de Fevereiro. Porém, o Kinanga City ou a Praia do Bispo (termos de antigamente) são os eleitos como bairros de formação, de grandes amigos como Bruno, Mano, Dinda, Duxa, Capeló, Kayundo, Kazuko, Paulo Cambaieta (hoje o reformado Paulo Silva da Seleção de futebol angolana). A infância era uma eterna descoberta de brincadeiras criativas, longe dos jogos de consola e ecrãs dos dias de hoje. Naquela época era mais rua, futebol, bica bidon. “Na verdade, o melhor era quando brincávamos de guerra de barro, construíamos as nossas bases no morro onde hoje se constrói a nova assembleia nacional. Foram tempos muito bons.”

Sérgio cresceu no meio da fotografia com o pai e os tios fotógrafos, mas não lhe agradava a ideia de passar os dias a fazer retratos de pessoas para documentos, “para mim era essa a definição de fotografia”. Quando recebeu a primeira câmara em 1992 começou a fotografar os colegas de escola e ainda hoje se orgulha dessas fotos. Era fase de ir aprendendo de forma auto-didacta. “Não sabia bem medir a luz e com as experiências fui ficando cada dia mais apaixonado pela arte de fotografar” que entretanto se tornara muito mais vasta do que julgava.

família de fotógrafos Pinto Afonso. arquivo de Sérgio Afonsofamília de fotógrafos Pinto Afonso. arquivo de Sérgio Afonso

Passou a carregar diariamente a câmara, e ângulos de ver a vida a acontecer ajudaram-no a reparar nas pessoas de outra maneira. “Gosto bastante de viajar e conviver com novas pessoas todos os dias. Se pudesse, passava a vida a descobrir e fotografar o mundo.”

O que o move é a descoberta. O que mais o entusiasma ao percorrer o país de máquina em riste é a beleza de Angola a todos os níveis, paisagem, pessoas, modos de existir, estar e fazer: “conhecer o meu país é na verdade a minha grande motivação.” E nisso interliga a arte e o fotojornalismo pois “tanto podemos usar factos reais para construir obras de arte como produzir algo para retratar factos reais. Eu uso a vida real para fazer arte.”

Abrindo-se para a experiência do mundo, foi para o Rio de Janeiro estudar cinema, porque depois de alguns anos a trabalhar em Angola na área da fotografia descobriu o vídeo ao qual chama de “upgrade da fotografia só que a 24 frames por segundo”. Ou seja, trata-se da continuação do trabalho noutros termos mas insistindo nos olhares e retratos. O Brasil abriu-lhe a possibilidade de criar com poucos meios, a escola, na esteira do Cinema Novo Brasileiro, ensinava a fazer filmes com poucos recursos, o lema era ‘uma ideia na cabeça e uma câmara da mão’.

arquivo de Sérgio Afonsoarquivo de Sérgio AfonsoA estadia de quatro anos no Rio de Janeiro deu-lhe essa força de fazer e pensar, pois “ali realmente as perspectivas de futuro me parecem muito boas, a cultura tem apoio dos governos federais, e um apoio bom por parte de entidade privadas”. Com um apartamento em Ipanema, Sérgio manteve um alegre quotidiano de aulas, passeios no calçadão, do surf ao skate, passando por um olhar atento às características de uma cidade tão marcante. De negativo sentiu “a grande discriminação entre ricos e pobres. entre brancos e negros. Sentes essa vibração infeliz quando entras em shoppings da zona Sul.”

Actualmente está a dar os primeiros passos no cinema mas “gostaria, com o tempo, de amadurecer mais na área e quem sabe realizar algumas curtas-metragens, penso que será importante para ganhar maturidade.” Não tem pressa pois, como diz a canção brasileira, “minha mãe me ensinou a pisar nesse chão devagarinho”. Apaixonado pelo real que pulsa à sua volta, escolhe o documentário para retratar a sociedade. Compensa o trabalho mais criativo e desprendido com alturas dedicadas à publicidade para pagar as despesas: “é a vida de um cineasta, não dá para viver só de cinema, quem sabe um dia.”

Pergunto-lhe se as gerações emergentes trazem novos olhares e instrumentos de trabalho à dinâmica sócio-cultural angolana. E responde que a produtora de que faz parte, a enérgica Geração 80, nasce numa ótima altura: “o mundo está em crise, o dinheiro cada dia mais difícil para alguns, e a tecnologia cada dia mais acessível a todos.” Não depender de investimentos milionários para poder trabalhar na área, ser possível filmar com uma máquina fotográfica, são vantagens dos nossos dias que descomplicam nestas burocracias e acessos.

Sérgio quer colaborar para trazer novas imagens do seu país, nascido na vontade de criar uma nova Angola. “Acabar com a frase muitas vezes pejorativa de “isso é Angola!” quando existe incapacidade de se produzir coisas boas no país.” Repara que a nível cultural na cidade de Luanda ainda falta quase tudo… teatros, cinemas, escolas de arte, de cinema,  centros culturais, etc… mas pensa que, com os novos projetos para a cidade de Luanda, as coisas possam vir a melhorar. “A guerra atrasou muito o nosso processo e agora temos que correr muito rápido para apanharmos o comboio do desenvolvimento.”

arquivo de Sérgio Afonsoarquivo de Sérgio Afonso

Nos tempos livros Sérgio Afonso aproveita para dedicar-se à família, aos passeios com a sua companheira Joana Afonso. E o gostinho pelo surf e o skate, agora já não no Arpoador carioca mas mais nas praias angolanas, é “uma boa maneira de fazer exercício sem ficar trancado num ginásio.” Mas sempre que pode viaja, pelo mundo e por Angola, combinando uma serenidade com uma insatisfação e agitação criativa que não o deixam ficar parado.

 

artigo publicado na revista Austral nº 91 (maio, junho 2012)

 

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por Marta Lança
Cara a cara | 15 Junho 2012 | Fotografia, Geração 80, Sérgio Afonso