De "bastarda" a discípula, entrevista a Sofia Pinto Coelho sobre o filme "Daniel e Daniela"

Como surgiu a vontade de fazer este filme?

Tinha acabado uma reportagem (“Renegados”, SIC, 2016) sobre a dificuldade de muitos afrodescendentes obterem a nacionalidade portuguesa, apesar de terem nascido ou crescido em Portugal. Fiquei impressionada com o facto de praticamente não terem voz (muito mudou, deste então). Foi então que me lembrei de Daniel Nunes, um bibliófilo que poderia ajudar-me a pensar sobre colonialismo, racismo e identidade africana, através de duas perspetivas únicas: o facto de ser mestiço e ter vivido quarenta anos durante o colonialismo e outros quarenta após as independências africanas, sendo, por isso uma testemunha privilegiada.

Como se aproximou das suas personagens?

Aproximar-me de Daniel e Daniela foi fácil pois são pessoas “dadas”. Mas, em última análise, o mais importante foi terem confiado em mim.

Porque é que a singularidade da grande biblioteca de Daniel Nunes não tem mais peso no filme?

Já a tinha retratado (“Era uma vez em África”, SIC, 2015) e dar-lhe primazia seria um outro documentário. O que me interessou para este filme foi a dinâmica da dupla pai-filha.

A designação racial ligada ao estatuto é constantemente trazida à cena por Daniel Nunes, que corresponde a uma certa mentalidade da sua geração cabo-verdiana. Frisou este aspeto no filme como modo de crítica ao racismo interiorizado que o sistema colonial provocou? 

Daniel Nunes é muito claro quando diz que “não há nenhum colonialismo que seja bom, porque é sempre ocupação” e também sabe que o racismo está interiorizado. Por isso é que confronta permanentemente os seus interlocutores: “Quanto menos inteligente é o branco, mais burro lhe parece o preto. Um branco que seja inteligente e culto, não parte do princípio de que os pretos são burros. Eu sou preto, mas não sou burro!”

Leitão Ramos escreveu: “uma viagem, o reencontro com amigos e familiares, memórias, considerações sobre a complexa e secular relação portuguesa com os povos africanos. A escravatura, o racismo, o colonialismo, os entraves ao desenvolvimento económico da África subsariana, as grandes questões gerais, digamos assim, cruzam-se, depois, com detalhes do dia a dia e que tanto podem dizer respeito às tradições guineenses do fanado como à memória traumática das grandes fomes que assolaram Cabo Verde durante a II Guerra Mundial. Tudo em tom brando, dando tempo ao tempo, e sem a preocupação estrita de engrenar uma narrativa que seja cronológica e explicativa.” Concorda com o “tom brando”? Como quis que se desenrolassem estas várias peças? 

Concordo que o documentário tem um tom brando. De facto, para trabalhos de guerrilha e denúncia, uso a reportagem. Neste caso, apreciei andar ao sabor dos acontecimentos. “Juntar as peças” é que foi mais complexo, mas contei com o apoio de um montador experiente (Carlos Madaleno).

A viagem por Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau tem como pressuposto mostrar à filha a relação do pai com aqueles lugares que o formaram e onde trabalhou. É também pretexto para a História vir ao de cima pelas conversas e as imagens de arquivo. Os tempos e histórias violentas que os lugares carregam dialogam com as imagens e comentários de Daniel. Como agilizou essas escolhas?

Os mergulhos históricos são sempre o ponto de vista de Daniel e foram colocados ora como se fossem pensamentos dele, ora como explicações à filha. Essa dinâmica, poderá tornar-se um pouco desconexa, mas curiosamente é assim que o próprio Daniel se expressa. Seja como for, interessou-me este homem singular, que, como qualquer um, tem defeitos e virtudes. Agarrei-me assim ao que DC Marshall, um dos líderes do Black Panther Party, escreveu na sua autobiografia Just another Nigger: “Those of us with experience in the struggle have a historical responsability to pass them on. Mistakes are the nursery of new ideias, so we must share them too; if we continue to hide and distort our errors, those coming after us will be condemned to repeat them. We cannot afford the luxury of leaving it up to historians to reveal what we did after fifty or one hundred years have passed. Present conditions demand we tell our stories now”.

(Aqueles de nós com experiência na luta têm a responsabilidade histórica de transmiti-la. Os erros são o berço para novas ideias, por isso devemos partilhá-los também; se continuarmos a esconder e distorcer os nossos erros, aqueles que vierem depois de nós estão condenados a repeti-los. Não podemos dar-nos ao luxo de deixar que os historiadores revelem o que fizemos depois de terem passado cinquenta ou cem anos. As condições atuais exigem que contemos as nossas histórias agora.)

Na Guiné Bissau, a filha Daniela torna-se mais protagonista, com aquela parte da sua família e lugar de pertença. É importante entrarmos na vida da mãe e das mulheres guineenses que a rodeiam. Parece uma mulher forte e decidida, que teve de tomar uma decisão difícil a bem da filha. Imagino que tenha sido uma viagem muito emocional para todos, como vê o factor emotivo neste filme?

Hesitei em filmar o encontro mãe-filha, logo à chegada, após quatro anos sem se verem (a Daniela saiu da Guiné-Bissau com nove anos e nunca mais lá tinha regressado) porque seria demasiado invasivo; por isso, só as filmámos no dia seguinte, quando a mãe a levou à sua escola de cozinha. No entanto, todos os encontros decorreram com muita naturalidade – sem comoções – como se se tivessem visto no dia anterior (claro que as videochamadas ajudam…). Creio, de qualquer modo, que ambas mantiveram os seus sentimentos dignamente resguardados. A parte mais emocional acabou por se revelar, com mais intensidade, na altura da despedida final dentro do carro.

O filme transmite uma dinâmica muito genuína e bonita entre pai e filha. Perante a atitude categórica e um pouco paternalista de Daniel, temos o contraponto de uma certa impaciência e negação da Daniela. Acha que o filme contribuiu para fortalecer essa relação, é um espelho da mesma, ainda que intermediado?

Eles são, na realidade, o que se vê no documentário. Um pai exigente e, tantas vezes, “chato” e uma filha pré-adolescente, numa fase ainda autocentrada, que se espicaçam permanentemente para ver qual deles é mais esperto e estão unidos por um amor incondicional. Quatro anos volvidos desde as filmagens, estão ainda mais cúmplices. 

Fiquei com vontade de saber mais sobre como Daniela se relaciona com a herança do pai, a biblioteca no contexto da família…

É uma resposta difícil porque será um busílis. Se Daniel Nunes, antes de morrer, não se decidir a entregar ou vender a sua biblioteca, caberá aos seus três filhos guardar o tesouro. Irão vendê-lo? Por inteiro ou às partes? Trata-se de um património único, que merecia atenção, como salientou o historiador Diogo Ramada Curto (in “Contacto”, “A ignota biblioteca de Manguel, a jogada de Medina e a cultura portuguesa à deriva”, 16.9.2022) a propósito da Câmara Municipal de Lisboa ter facultado um palacete para albergar a biblioteca do escritor argentino Alberto Manguel. “Conheço a biblioteca de Daniel Nunes, desde há quarenta anos. Sei como ela foi constituída e atribuo-lhe um valor que poderia estabelecer pontes entre Lisboa e outros países de expressão portuguesa. Não comparo esta biblioteca com nenhuma outra. Sobretudo não a poderei comparar com uma biblioteca como a de Alberto Manguel que, apesar de desconhecida e segunda consta sem raridades, mereceu o labor já de três bibliotecários, que catalogam uma fraquíssima colecção de livros”.

É interessante o facto de Daniela vir de um contexto de “filha bastarda”, elemento muito presente em toda a história colonial e da guerra colonial, de homens, sobretudo portugueses, que deixaram filhos em África, para ser uma espécie de discípula do pai mais velho. Como vê esta questão?

Quando a Daniela nasceu na Guiné-Bissau, fruto de uma relação extraconjugal, Daniel, não teve coragem de contar; mas o facto acabou por se saber. O que é notável nesta família é que todos - incluindo a própria mulher - acabaram por acolher a criança, cumprindo um lema, que tinha passado de geração em geração: “sangue do meu sangue, não se mata, nem se renega”. E foi assim que, quando enviuvou, Daniel trouxe a filha para Portugal, de modo a proporcionar-lhe uma melhor educação académica. Daniela ganhou não só um pai dedicado, como ainda dois meio-irmãos mais velhos, ambos na casa dos cinquenta anos. Quantos fariam o mesmo? Quanto viraram costas a filhos que deixaram em África, fruto de relações (fossem amorosas ou violentas) com raparigas africanas, sem um remorso ou hesitação?

Documentário  82 min  2022

Guião / Script
Sofia Pinto Coelho
Vozes / Cast
Sofia Pinto Coelho
Actores / Cast
Daniel Nunes, Daniela Nunes
Argumento e Diálogos / Dialogues and Screenplay
Sofia Pinto Coelho
Fotografia / Photography
Pedro Castanheira
Música / Music
N/A
Montagem / Editing
Sofia Pinto Coelho
Produtor (pessoa singular) / Producer
Pandora da Cunha Telles e Pablo Iraola
Coprodução / Coproduction
SIC

 

por Marta Lança
Afroscreen | 1 Outubro 2022 | África, biblioteca, Cabo Verde, Daniel e Daniela, Daniel Nunes, Guiné Bissau, paternidade, São Tomé e Príncipe, Sofia Pinto Coelho, viagem