Só existe comunidade quando os problemas básicos forem resolvidos. Ariana Furtado
Ariana Furtado nasceu em Cabo Verde, cresceu em Portugal e tem dedicado a sua vida à educação com um forte compromisso antirracista. Professora do 1.º Ciclo e coordenadora da Escola Básica do Castelo, em Lisboa, Ariana é uma voz ativa na luta por uma escola mais inclusiva, consciente e representativa. Licenciada pela Escola Superior de Educação de Setúbal e pela Universidade Rennes II (França), passou também pelo ensino de adultos, promovendo a alfabetização como ferramenta de emancipação. É coautora dos projetos premiados “Com a mala na mão contra a discriminação” e “Ge(ne)rando polémica… ou antes pelo contrário”, ambos reconhecidos pelo Prémio Municipal dos Direitos Humanos na Criança e no Jovem. Tradutora de literatura infantojuvenil africana, Ariana contribui para ampliar narrativas e dar visibilidade a vozes negras desde a infância. O seu trabalho alia pedagogia, ativismo e coragem para transformar a escola num espaço de equidade.
Ariana Furtado
Como é o seu percurso e circulação pela cidade e que transportes usa?
O meu percurso pela cidade está muito associado ao corre-corre de uma mãe de uma criança de onze anos, com vida e atividade desportiva intensas. É bom mas exige rapidez nas deslocações e horários que fazemos questão de cumprir. Infelizmente os transportes públicos, sobretudo do centro da cidade, não nos ajudam. Moramos na Graça e não há carreira de bairro que seria essencial para a mobilidade das pessoas idosas e dos estudantes. O trânsito é absolutamente indescritível com os tuks tuks a pararem permanente e abruptamente para mostrarem as “maravilhas” de Lisboa. Trabalho no Castelo e é um pânico diário sair de autocarro ou de carro particular daquele bairro. A deslocação a pé também é um desafio com carros mal estacionados, condutores agressivos…
Que problemas maior identifica em Lisboa?
A desigualdade social crescente. Uma cidade que não é para todos, habitada e vivida cada vez mais por quem tem poder económico.
A partir do exemplo específico da Graça e do Castelo, como se vê a cidade atual?
O Castelo tem características diferentes da Graça. É um bairro com uma população envelhecida. A rua da minha escola cada vez tem menos pessoas a morar e mais alojamento local. Estamos a deixar de ter vizinhos. É reconhecido à Escola o papel fundamental de manter vida de bairro no Castelo com a circulação das crianças e dos pais.
A Graça é um bairro cheio de vida e de gente, mas com uma profunda desorganização a instalar-se. O comércio local começa a desaparecer. As pessoas vêm perdendo as suas casas e são afastadas do bairro onde nasceram e cresceram. Isso cria revolta. E as revoltas são terrenos férteis para a extrema direita.
Considera Lisboa uma cidade intercultural?
Vivo a cidade de Lisboa de forma intercultural. Estabeleço relações com pessoas de diferentes culturas e maneiras de estar e pensar, mas não acredito que todas as pessoas olhem para a cidade como tal. Até acredito que, tendencialmente, Lisboa está a perder a sua interculturalidade, as pessoas mais facilmente moram lado a lado, mas desconhecem-se verdadeiramente. Para mim a interculturalidade significa interação, uns com os outros, falarmos e estarmos uns com os outros.
Lisboa é também uma cidade segregada? Que forma toma essa segregação?
Parte de quem a constrói, limpa, cuida e “cozinha” não vive nela. Dela pouco usufrui. Entra de manhã cedo e sai ao fim dia.
Como vê a situação da maioria da população africana e afrodescendente na Grande Lisboa?
Vejo num crescimento desigual. A educação pode servir como um retrato perfeito do que digo. Há uns anos fui a um debate na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas sobre a afrodescendência e não havia um único estudante universitário negro português, todos eram oriundos de países africanos de língua oficial portuguesa. A desigualdade ainda permanece no acesso à educação, à saúde, à habitação, aos empregos…
Os movimentos e pessoas negras estão a ter mais voz no espaço público sobre Lisboa? O que tem mudado?
Vejo e oiço uma geração, a minha, mais interventiva, decidida a não deixar desaparecer o que, no passado, moveu os movimentos de libertação. Tem mudado este profundo resgate, através da busca do conhecimento, dos nossos antepassados e das suas lutas.
Que espaços escolheria como memorialização da colonialidade e da presença africana na grande Lisboa?
O primeiro lugar será a Alta de Lisboa, herdeira em parte do antigo bairro das Galinheiras, o espaço onde muitos africanos recém-chegados fixaram residência nos anos 1980. Ali também fui professora de muitos alunos de ascendência africana. Diria que grande parte da cultura afro-lisboeta começou ali no Bairro das Galinheiras. Em segundo lugar, o bairro de Belém, com todas as marcas colonialistas nos monumentos que lá foram erigidos. E ainda o Bairro das Ex-Colónias, ou o Bairro dos Anjos, onde ainda persiste toda uma toponímia ligada a este passado colonial.
Se tivesse de escolher um lugar para simbolizar essa memorialização, qual seria?
O lugar que escolhia para memorializar é a estação fluvial do Cais do Sodré, uma espécie de fronteira entre a cidade e os outros, os “outros” das periferias. As periferias que foram sempre crescendo e continuaram a receber muitos imigrantes, muitos afrodescendentes que não conseguiram, por diversas razões, viver no centro da cidade onde trabalhavam. É um espaço de partidas e chegadas, encontros e desencontros, entrada e saída da cidade. Por ter sido também a minha primeira ligação com a cidade, sendo eu da margem sul do Tejo. É o lugar que grande parte das comunidades que vivem esta cidade acaba por escolher como meio de entrada na cidade. Acredito verdadeiramente que a cidade de Lisboa é habitada maioritariamente por lisboetas que moram na margem sul do Tejo.
Como podem as crianças sentir-se mais incluídas e representadas numa ideia de cidade - comunidade?
Lisboa não é uma cidade amiga das crianças. Com muitos problemas ao nível dos transportes, parques infantis, acessibilidades à cultura. Só existe comunidade quando os problemas básicos forem resolvidos. A infância é desigual. Há crianças que entram na escola às 8 e saem às 19, porque as famílias trabalham tanto, tanto. Enquanto veem colegas a sair às 15h30 para irem ao piano, ao futebol, à natação, à explicação. Ao parque do bairro onde vivem.
Como não pensar nestas questões primeiro? É claro que as crianças, antes de pensarem, sentem estas desigualdades. Cabe-nos a nós adultos essa responsabilidade de agir para garantir uma vida feliz a todas as crianças.