Richard Kapuschinski, um jornalismo ao serviço do mundo

Richard Kapuschinski tornou-se uma lenda viva de um tipo de jornalismo literário, envolvido, subjectivo mas sem ceder à parcialidade. A sua disponibilidade e olhar de viajante atento permitiram ver muito além dos factos e, sobretudo, foi relevante a focalização em lugares negligenciados na arena da política internacional. O jornalista polaco deixou o testemunho de histórias e realidades para muitos só acessíveis através do seu registo. Sensibilidade que, a partir da década de 50, o impeliu a viajar pelo mundo (Ásia, Médio Oriente, América Latina, Europa e África). Como jornalista da Polish Press cobriu guerras, golpes de Estado e revoluções que marcavam o fim da era colonial. Faleceu em Varsóvia em 2007.

A combinação da subjectividade com o informativo, o compromisso da primeira pessoa que se posiciona nos episódios que conta - e vive - mas sem permitir que o ego se sobreponha a qualquer precisão na descrição do objecto, eram uma marca da escrita de Kapuscinski. Outros aspectos interessantes: a capacidade de ser acessível e o poder de síntese, sem se desviar da complexidade do tema nem das grandes linhas da estória, generosidade em dar a ver e a reflectir, destrinçar os factos sem perder o fio da narrativa, bem alicerçados num enquadramento geral.

Como no cinema, os seus planos abertos das grandes acções alternam com o plano fechado do rosto particular, da história minuciosa. A visão fragmentada e a geral são os alicerces da avidez de leitura. 

Escreveu sobre a América Latina, mais concretamente sobre a guerra entre Honduras e El Salvador, em 1969, após os tumultos entre os adeptos das duas selecções a propósito das eliminatórias para o Mundial; sobre o colapso da União Soviética e do sucedido aos povos periféricos das repúblicas sob ordens da metrópole no Império (1993); fez uma releitura do historiador Heródoto nas Minhas Viagens com Heródoto, mas a grande paixão e destino de muitos anos da sua vida seria África.

N’O Imperador (1978) relata as suas vivências como correspondente na Etiópia, sobre o governo e a queda de Haile Selassié. Em Mais um dias de vida – Angola 1975 descreve, no período entre o 25 de Abril e a Independência, os momentos conturbados vividos em Luanda, esvaziando-se de portugueses em pânico, provenientes de todas as partes do país, a par do início da guerra civil. Ousa apanhar um avião para uma capital de onde toda a gente desejava fugir, ouve intensamente o martelar de caixotes que enchiam as ruas da cidade que se ia transformando num autêntico caos, abandonada por todos os quadros (até os bombeiros e lixeiros partem, ficam à deriva os cães de raça abandonados pelos colonos).

Viajaria até Benguela sob risco de várias embuscadas, na disputa do poder pelas três frentes de libertação nacional: MPLA, FNLA e UNITA, descrevendo a Operação Carlota. Kapuscinski observa esses momentos tensos e tendo logo o discernimento de acontecimentos que inauguravam novos capítulos da história de Angola: como o país lidou com a sua recente independência, como se procedeu à difícil e abrupta descolonização portuguesa e como foi despoletada a longa guerra civil que só viria a terminar em 2002.

Ébano – febre africana (1998) é um bom introito para quem quer conhecer um pouco do continente africanos devido ao que nos oferece de elementos para descobrir as várias Áfricas como um puzzle complexo de interesses, lutas, ritmos de vida tão outros, gestos ancestrais e a “imensa dignidade” das pessoas que ele tanto insiste em frisar.

Neste livro a mistura de aventuras com antropologia e política, contribui para a inscrição da memória dos heróis anónimos, episódios pitorescos e lideranças grotescas que revelam muito dos limites de uma humanidade possível.

Corre África de lés a lés pondo-se, segundo ele, na pele dos africanos: da Eritreia à Nigéria, do Sahara à Tanzânia de 1963, de Zanzibar ao Congo, Sudão, Uganda, a independência do Gana em 1957 em tempos de discursos inflamados de Kwame Nkrumah, o agitado comboio de Dakar ao Mali (onde se mudava constantemente de posição para rezar dirigido a Meca), os novos escravocratas da Monróvia (Libéria), os american-liberians, as grandes matanças dos hutus e tutsis no Ruanda, a guerra entre a Etiópia e a Somália em 1976, viajando ao lado dos soldados etíopes pela região do deserto de Ogaden que era disputada por Addis Abeba e Mogadiscio. Não lhe escapa nenhuma revolução, guerra, golpe de Estado ou celebração de independência, analisando esclarecedor a situação política e histórica de cada país.

Apesar desta corrida desenfreada pela actualidade africana, a política não ganha espaço à descrição da riqueza e diversidade de povos e culturas que concorrem no continente, reveladas em pormenores de superstições e criatividades que sustentam a sobrevivência, sem condescendências ou voyeurismos ocidentais. Por vezes assola o paternalismo na forma como se coloca e interage com os seus personagens e os descreve. E certos registos assertivos, quase categóricos. Por exemplo ao falar das diferenças do conceito de tempo em África. As pessoas mandam no tempo e não é o tempo a ditar as regras, um autocarro sairá à hora que estiver cheio e não a uma hora marcada - testar a resistência, contrária ao nosso modo de agir e pensar, é um exemplo de entendimento de outra realidade. Mas tornar isso uma lógica própria demonstra quão delicadas são as perspectivas culturalistas. É mais o seu tom crítico que ajuda à compreensão dos fenómenos, acentuando o interesse por aquele mundo ao dar-lhe densidade. 

Nestas incursões por África também nos ensina a viajar melhor, a perspectivar as realidades visitadas a partir de dentro, contra o cinismo dos que projectam no trabalho jornalístico uma série de preconceitos e relações de poder com peso histórico. Kapuschinski opta por testemunhar os acontecimentos relevantes que permitem desenhar o passado, perceber o presente e pressentir o futuro.

Apesar de ter suportado peripécias debaixo de fogo, apanhado malária e tuberculose, vivido nos bairros mais pobres, convivido com todo o tipo de gente (é importante conhecer as pessoas sobre as quais se escreve), recusado as mordomias e as protecções institucionais, pois detestava “as pessoas que vêm para África e vivem na ‘Pequena Europa’ ou na ‘Pequena América’ (isto é, em hotéis de luxo) e depois voltam às suas terras gabando-se de terem vivido em África, que na realidade nunca chegaram a conhecer” (Ébano, p.127), Kapuscinsky nunca faz da sua figura um herói temerário que enfrenta os perigos do dragão África. O que lhe parece interessar é o que há de estimulante na imponderabilidade dos encontros com os verdadeiros protagonistas da História. “Viajei extensivamente, evitando rotas oficiais, palácios, personalidades importantes e grandiosos políticos. Em vez disso optei por apanhar boleia de camiões que passavam na estrada, vaguear com os nómadas pelo deserto, ser convidado do povo da savana tropical” (p. 9).

Ébano poderia assemelhar-se a um conjunto de relatos inimagináveis, ainda que sobejem de verosimilhança, para quem não conheça a vida africana. Ainda que Kapuscinsky tenha sobretudo descrito uma época da África recém descolonizada e regressado a muitos países para acompanhar as suas mutações, muitos dos aspectos retratados continuam vigentes. Encontrar uma sombra onde se refugiar do sol, água para beber e milho para comer ainda são objectivos diários de milhões de africanos, ainda existem enquanto comunidades gregárias, os conflitos perpetuam-se, os poderes vitalícios também, mas vive-se simultaneamente a realidade das sobrepovoadas metrópoles africanas de economia próspera e tecnologia global. Há quem espere uma justiça social que demorará a chegar. O Eldorado moderno, bem o sabemos, é para uns poucos ainda que a sua promessa seja para muitos.

É urgente entender de África mais do que o conceito abstracto produzido por imaginários e imperialismos. Entender, no mundo em que vivemos, as relações de força que aqui se jogam, nenhum outro continente tem sido tão usado e mal interpretado, joguete de vontades, imperativos e cobiças, do colonialismo ao actual monstro neo-liberal, passando pela guerra fria. A advertência sobre a impossibilidade de descrever África como um todo continua a ser importante de repetir-se. “África é um verdadeiro oceano, um planeta independente, um cosmos variado e rico. É apenas por uma questão de simplicidade e de comodidade que falamos de África. De facto, essa África não existe sequer, a não ser como conceito geográfico.” (p. 9)

Nada há de mais redutor do que pegar em meia duzia de clichés que tantas vezes povoam o imaginário ocidental sobre este continente e fazer valer uma noção de extrema fragilidade, omitindo tudo o resto. Há efeitos perversos da perpetuação da única imagem de África nos media, a das guerras, corrupção e miséria: gera falta de interesse e de investimento, limita o emprego e o acesso à educação e saúde. Diminui a auto-estima e auto-confiança necessárias para adoptar as melhores estratégias. Aspira-se a copiar modelos de sociedade, de televisão, de economias de mercado, de estados providência, de estilos de vida, de consumismo, e isso significará sempre uma actualização do neo-colonialismo, uma deriva de identidade, a vulnerabilidade aos interesses estrangeiros.

Este jornalista-escritor infiltrou-se em contextos africanos paradoxais e difíceis, reféns do seus próprios recursos e eternamente na iminência de estruturação, mas cheios de potencial e futuro. Kapuschinski abeirou-se de vidas das quais de alguma forma se sentia cúmplice. Avança com uma hipótesse de proximidade entre as suas origens e a dos africanos: “Sofreram com o colonialismo? Nós, os polacos, também. Durante 130 anos fomos colónia de três potências diferentes.” (p. 53)

Kapuschinsky recebeu o Prémio Príncipe de Asturias de Comunicação e Humanidades em 2003, é o autor polaco mais traduzido no estrangeiro e foi eleito em 1999 no seu país como o melhor jornalista do século passado. Não foi por pouco. 

 

Originalmente publicado no Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, 2007

por Marta Lança
Cara a cara | 2 Dezembro 2010 | Richard Kapuschinski