O Turista

1

O turista sai do avião, respira o ar morno e húmido e prepara-se para conhecer a terra que a agência de viagens promete paradisíaca. Repleta de vegetação luxuriante, pessoas acolhedoras e de sorriso pronto, praias cálidas e semi-desertas, gastronomia criativa e uma paz interior garantidamente alcançada em dias não pautados pelo trabalho. 

O turista transporta na mala um saco cheio de rebuçados para dar aos meninos pobres que gritam “doce, doce” à sua passagem. Não repara no facto de que, dez minutos depois, nem uns nem outros se lembram dos rostos que procederam à troca de mimos. 

— Bem vindo à terra do leve-leve! – repete pela milésima vez Nelson, com rosas de porcelana e bicos de papagaio nas mãos adolescentes. A saudação instiga o turista a entusiasmar-se com a lugar onde aterra. Logo surge outro rapaz a oferecer serviços:

— Sou o Jéjé, comprovado guia turístico, sei fazer colares e tudo o mais preciso. 

O turista ainda sorri, mas o rapaz é enxotado enquanto as malas são pesadamente atiradas para o transfer que o leva, juntamente com outros turistas, diretamente para o Ilhéu das Rolas. No caminho, goza de breves deleites sensoriais: a tal da vegetação luxuriante, corpos serpenteando nas estradas com fruta-pão, mandioca, banana ou peixes enormes de nomes desconhecidos à cabeça, mulheres de panos coloridos, feixes de luz nas folhas espessas, casinhas sobre palafitas em aldeias perdidas e encantadas, o adensar verde da paisagem ao aproximar-se o sul. Arrepia-se ligeiramente com as catanas que avista na estrada lembrando-se de imagens de revoltas de hutus e tutsis, e sabe-se lá que universos selvagens. 

Uma vez no embarcadouro de Ponta Baleia, o novo grupo segue no semirrígido em direção ao ilhéu. À medida que o barco se afasta, desconhecendo as maravilhas e mistérios ali guardados, a praia Jalé e a praia Piscina são, para o turista, apenas uns contornos difusos entre a floresta e o mar. Nesses vagos pontos que ele não virá a conhecer, escapa-lhe Waldemar, de catana em punho pela madrugada fora, a caminho da floresta para derrubar o ocá e construir uma canoa. Leva 4 dias para moldar a árvore e arrastá-la já navegável até à praia. Fica por testemunhar o empenho de Josué que vai para o mar alto pescar garoupa, peixe-andala, tubarão, a ser vendidos por tostões na praça. Fogem-lhe os quilómetros e quilómetros calcorreados por Aissata a carregar banana e fruta-pão e é provável que o seu telemóvel regresse carregado de fotografias com o Pico Cão em fundo, sem se aperceber da destruição da floresta para exploração de óleo de palma. Tampouco que o grupo hoteleiro expulsou os habitantes do Ilhéu ficando até com as chaves do farol. 

A visão de relance para a costa produz no turista um certo mal-estar e tontura. Seria a rapidez da chegada? O facto de ter atravessado parte da ilha sem nada afinal apreender? Nem ter tirado fotografias suficientes que confiram veracidade à sua memória? Porém, lembra-se que concretiza a vontade de toda uma vida: poder dizer, a si próprio e aos demais, que esteve em África, continente imenso de histórias mirabolantes, aventuras prodigiosas e mundos invisíveis. Terra doce e violenta, generosa a ponto de tudo oferecer, inclusive o lucro com a pobreza a quem nada carece. 

Antes sequer de se adaptar às cores da paisagem ou de trocar palavra com os companheiros de viagem, não se coíbe de fotografar tudo o que vê ou pensa ver. O imprevisível pode acontecer a qualquer momento, afinal está em África onde se dão coisas suspeitas. É preciso documentar. Apontando a câmara aos braços musculosos do barqueiro, como se de um objecto se tratasse, surpreende-se pelo súbito respeito que o homem lhe inspira o que o faz sentir a sua excitação e ingenuidade levemente ameaçadas.

Talvez não aceda verdadeiramente àquela ilha, talvez tudo o que carrega em si lá das Europas de nada lhe sirva neste momento.    

2

Acresce ao seu cansaço europeu, a viagem de avião e a fila a conta-gotas para carimbar o passaporte. Assim, o turista merece descanso, aquele descanso que se segue a dois anos de intenso trabalho, casa, centro comercial, visitas aos sogros, escola dos filhos, almoço com o casal amigo, bricolage, angústia das contas e endividamentos. E, sobretudo, o enfado de um casamento sem tesão. Sexo, de três em três meses - e de olho no relógio.

Para se libertar da pele de animal domesticado, precisa de identificar essas pequenas saturações que o vêm afastando de quem julgava poder ter sido.

Merece aquele ambiente de férias, uns dias de descanso com ponto final. Refastelado numa espreguiçadeira à beira da piscina do resort, o turista experiencia a tão agradável impressão de que, por um momento, a terra pára de girar. Sente o apelo do Equador, localização nem a norte nem a sul, a hibridez hemisférica e a bisa branda e húmida, propiciam uma vontade indómita de se perder em sensualidades de ilhas tropicais. Num clima apropriado à preguiça, “confortável até na gravana”, tal como avisava o folheto da agência de viagens, adormece com o livro ao colo, suspendendo a memória romantizada das roças de cacau de Miguel Sousa Tavares. 

3

Na cidade, à mesa do bar, as ondas do mar fundem-se com a kizomba e a tarraxinha das colunas. Dois angolanos e três portugueses falam assertivamente sobre os destinos do país. 

— Aquele vai ser o próximo autarca.

— Fulano tal vai receber uma comissão para acolher um resort. 

— É bom que o ministro feche os olhos a mais uns hectares de floresta abatida. 

Um dos angolanos é optimista com os negócios. Acredita que o país necessita de homens vigorosos, operativos, e põe objetivos em marcha de acordo com o seu plano bem montado. Presença imponente, não fala, discursa. Interrompê-lo para “dizer uma coisinha” é um esforço tremendo. Discursa como se tudo fosse confidencial e altamente empolgante, com o mesmo espírito conspirativo de quem está a criar obra ou a derrubar regimes, a tratar tu cá tu lá os poderosos, a desenhar a estratégia política e o progresso das nações, carne da mesma carne, sangue do mesmo sangue, atravessados pelo colonialismo e agora fraternos na reconstrução, unidos na glória do futuro. E celebra com champanhe, contagiando os demais:

— À auto-estima e à promessa de dinheiro, ao leve-leve, à senhora da Muxima, à 19ª província!, chin-chin!

Cabisbaixo, o jornalista ouve a conversa, involuntariamente encaixado naquela mesa de negócios. De cada vez que lhe está prestes a sair um “ai” da boca, leva um pontapé discreto debaixo da mesa da portuguesa que o trouxe. Não lhe resta senão ingerir mais um gole de whisky para não colocar questões obtusas. A prepotência daqueles homens, quais reis da Pérsia no xadrez de vida alheia, desagua diretamente no whisky emborcado em mudez conspirativa.

“Território de extrativismo onde o cheiro do dinheiro se incute na pele, na miragem dos que ganham sobre a miséria dos outros”, pensa o jornalista. Possivelmente seria a frase de arranque para a sua história.

Na verdade, a viagem a São Tomé destinava-se a produzir uma reportagem sobre questões culturais, especificamente um evento grandioso de arte. Fora incumbido de dar notícia da ilha, de ampliar aquele ponto minúsculo no mapa, alargar a família do parente pobre da lusofonia, de entreposto de escravos a entreposto cultural. Já a sua amiga, conterrânea a trabalhar em São Tomé como consultora de uma petrolífera, relaciona-se com altas instâncias e tem traquejo para refrear ânimos opinativos para não prejudicar o negócio. Convidara-o para um copo, para “conhecer o meio”, ou seja, uma certa elite e, de súbito, o jornalista via-se ali metido num caldeirão de poder, involuntaria e abudantemente inteirado das coordenadas em conjectura. 

Por todo o lado, os interesses privados são o motor da vida pública. Isso o jornalista sabe. A política não é a sua área e nunca lhe arranca mais do que um monumental bocejo, mas ver assim de perto o acontecer subterrâneo do jogo político, causa-lhe impacto. Esforça-se para não se esquecer que o delírio das elites não tem qualquer relação com os filhos da terra e suas vidas diretamente dependentes dos recursos da terra, numa subsistência ardilosa esquecida da ambição, sem orientação concreta de como sair das rotinas de pobreza senão pela dura via da emigração. Pessoas atravessadas por tempos e regimes violentos, agora enchendo a cara com vinho de palma. O seu riso bêbado é triste. Sesacreditados dos políticos, apesar de votarem neles para, no dia de eleições, celebrarem com aguardente a angústia histórica de que a mudança, ou seja, uma qualquer melhoria das suas existências não vai mesmo acontecer.

Na sua profissão está familiarizado com as categorias de compaixão “negro”, “faminto” ou “imigrante”, então o jornalista não se espanta com o cenário decadente e a energia nada descolonizada da ilha. No entanto, regressa um pouco combalido ao hotel, encabolado com as realidades impressionantemente incomunicáveis que povoam e colidem no mesmo mundo. A sua inquietação interior e réstia de ingenuidade talvez se tenham para sempre dissipado. À medida que se sente indignado, vai relembrando e retendo palavras caras que posicionam moralmente a sua história, tais como “impunidade” e “corrupção”, “democracia” e “neocolonialismo”. 

Aquele país, laboratório de experiências humanas e paisagísticas, começa a despertar-lhe interesse.

 

4

Enquanto isso, no resort, o turista aborrece-se com o papo para o ar, entre famílias empertigadas, comida monótona e piscina o tempo todo. A zona de animação proporciona o programa de observar casais entediados, mulheres flácidas fazendo selfies ou um grupo de colegas bancários a embebedarem-se ruidosamente. O ilhéu pouco tem da África com que sonhara (à exceção da paisagem impressionante, mas essa assemelha-se a um recanto do Brasil), dos habitantes, expulsos por um trocos para construirem casinhas e libertarem o ilhéu para os turistas, restam uns quantos jovens que vão e vêm em barquinhos de borracha vender artesanato aos turistas e peixe ao restaurante. Se consegue arrancar informações sobre a vida dos “locais”, como lhe disseram ser o trato, as mesmas são perfeitamente condicionadas pela relação comercial mediadora entre quem serve e é servido.

Decide então desobedecer parcialmente ao pacote turístico. Organiza-se para sair do ilhéu e passear na ilha-mãe, tem curiosidade pela tour das roças coloniais. Cedem-lhe um jovem guia, conhecedor da história do país, e um carro alugado. Já lhe constava que a memória física do antigo império colonial caminhava para vertiginosa deterioração mas, ao visitar as roças Agua Izé e a Agostinho Neto, ficou duplamente impressionado. Primeiro com a imponência das estruturas arquitetónicas que, com imaginação, deixam adivinhar um passado de grande produtividade agrícola, à base de chicote. Depois pelo seu estado devastado e pelos guardiães dos edifícios: crianças, persistentes agricultores, forros e descendentes ou representantes de “contratados”, que vieram arrastados no penoso caminho do contrata. Na falta de trabalho remunerado, reinam o desenrascanço e uma certa letargia, pode-se sempre contar com umas quantas lavras e árvores de fruto abastadas.

O turista comove-se com a decadência das ruínas roceiras e com a “resiliência” humana (palavras na sua cabeça, não na minha). De novo, apetece-lhe fotografar tudo à sua volta, vivendo, por momentos, a crença de ser o único homem a ter acesso a um segredo da história bem guardado. Com a mesma rapidez com que inicia o disparo de fotografias, faz perguntas soltas sobre as roças. A sua precipitação revela mais interesse nas perguntas do que nas respostas do acompanhante.

O guia Mariano tenta explicar algumas curiosidades sobre os forros, os angolares que recusam trabalhar nas plantações, os contratados das outras colónias, as revoltas, a Guerra da Trindade ou o Massacre de Batepá, depende de quem conta. Mariano aponta as convulsões e alegrias da independência, de como à arquitetura económica do colonialismo sucedera a exploração ineficiente da terra, os cabo-verdianos que perderam as lavras, a nacionalização das roças, a divisão das terras, a queda da produção e a grave crise económica, a virada do regime socialista, o multipartidarismo, a liberalização do Banco Mundial, a ajuda internacional até à expectativa furada do turismo.

O turista impressiona-se com a sabedoria do guia, e ainda tenta vislumbrar todos esses cenários políticos e culturais do passado, mas a sua visão prende-se antes ao descascar da tinta da parede, às varandas de madeira com roupas a secar, às pernas grossas e firmes das mulheres, ao apelo “branco, branco” da criançada a cada cara nova. 

Regista no seu caderninho: Casa do administrador, hospital, casa grande, a sanzala a perder de vista. E esta gente a cirandar, moram aqui neste destempero, a dançar e a fazer grogue, a colher cacau, alheios ao mundo. Bandos de crianças estendem constantemente a mão, a pedir doce ou caderno e eu já não tenho mais rebuçados.

Etiquetaria devidamente o seu álbum digital, com comentários esclarecedores como viajante organizado que era.

Passados uns minutos, a fome ganha à curiosidade do turista. Já viu e soube mais do que suficiente sobre aquela “desgraça”, dispensa a visita às outras roças. Deseja afastar-se da miséria, regressar de imediato para as suas férias no resort: retemperar os ares, beber uns copos e pensar na vida, mas uma vida em pleno, com contemplação, prazer e tudo aquilo que um cidadão como ele tinha direito. “Se não é para todos, temos pena”, pensou. 

5

No hotel, o jornalista tenta apanhar wifi para pesquisar dados sobre país que enquadrassem na reportagem das manifestações culturais. Navega um bocado e chama-lhe particularmente a atenção um episódio da História de São Tomé:

Durante o século XVI, São Tomé tornou-se um grande produtor de açúcar que necessitava cada vez mais da mão-de-obra escrava. Com o incremento da população escrava aumentou também o número de escravos que fugiram para a inacessível floresta densa no interior montanhoso da ilha. Inicialmente os escravos auto-libertados no interior de São Tomé eram conhecidos por macambos. Desde o século XIX, os seus descendentes são conhecidos por angolares, que ainda hoje constituem um grupo cultural e linguisticamente distinto em São Tomé.

Em 1595, São Tomé foi abalado por uma revolta dos escravos, liderados por Amador, que mobilizou cerca de 5.000 escravos contra as tropas do governador. Depois de três semanas a revolta terminou com a derrota dos revoltosos.

Pensativo por momentos, desloca o olhar do ecrã para o manto negro do mar em frente ao hotel de 4 estrelas. Não passava de mais um jornalista com aspirações a escritor, mas ainda tinha esperança de ser de facto escritor. Assim, ao invés da reportagem põe-se a construir um conto na cabeça.

Começa por imaginar que todos os oprimidos das plantações, de cana-de-açúcar às de café, e mais tarde as de cacau, os oprimidos e serviçais de todos os tempos, mandados ou já nascidos nas ilhas, se tinham escondido no interior da floresta. Ali, para lá do Caminho do Fugido, haviam criado uma comunidade com regras de parentesco, organização económica, língua, guerra e honradez muito próprias. Como nos palenques e quilombos, ali eram recebidos escravos fugidos, perseguidos por antigos senhores e por animais selvagens e escravos libertados por grupos quilombolas que os resgatavam diretamente nas roças de trabalho forçado.

Afinal, pensou ele, foi a violência que suscitou os tais encontros culturais que a história e o turismo propagam.

Veio-lhe à cabeça a música de Jorge Ben Jorge, Zumbi, Eu quero ver… lá onde estão os homens… 

os senhores sentados vendo a colheita do algodão branco a ser colhida por mãos negras, escravos angariados no Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Minas, Quiloa, Rebolo para o Brasil. Porém, na história do jornalista, Zumbi de Palmares, senhor das guerras e das demandas, fazia uma aparição em São Tomé onde engendrara uma aliança com o rei Amador e, com as suas gentes, sinalizaram no acampamento guerreiro na floresta o lugar perfeito para os espíritos conspirarem revolta, renovada, combativa. 

Seria um conto sobre a revolta de todas as revoltas. Uma vingança que calava o “doce doce” de um menino a cada branco que passa. E exigia futuro sem depender dos fundos que hão-de vir. E, em cada encanto com o leve-leve e a amabilidade das pessoas, o vento faria sentir a sua sonsice. Em cada elogio à amabilidade e ao paraíso, os espíritos gritariam contra a precariedade das vidas, enfeitiçando os sonâmbulos com perfume de Micócó.

O jornalista viajava então pelas zonas amplas da imaginação, reunindo protagonistas de revoltas contra as grilhetas, exploração da mão de obra, evangelizações à força. Mistura imagens do Django Libertado com António Conselheiro, entusiasma-o a liberdade da escrita e do seu conto utópico mais do que distópico, a força de uma resistência secreta na floresta primária envolta em lianas, fetos e musgos que mal deixam vislumbrar os pinheiros e afrocarpus onde ninguém se atreve a ir, à exceção de uns esporádicos curandeiros que nem reparam naqueles entes, espectros dos antepassados escravos. Destabilizadoras promessas olhando a realidade tão longe de ser livre. E com a ética de não se meterem em assuntos sagrados a não ser para o seu ofício, os curandeiros também não dariam notícia de tal comunidade aos governantes do país.

Poucos sabiam, portanto, da existência desses homens e mulheres, macambos, angolares, guerreiros de remotas origens africanas, que ali desenvolviam, há gerações e gerações, as sementes da sua vingança. Sem desconhecer o devir atual do mundo, dispunham de aparelhos de comunicação e, de quando em quando, mandavam à cidade uns quantos infiltrados para acompanhar o que se passava. Mas a matéria que os unia, a poderosa raiva ancestral, não se compadecia com uma existência medíocre de funcionários públicos, de vendedores no mercado ou mesmo de governantes. Eles preferiam distância dessa gente que se matava a trabalhar para alimentar o seu inimigo número um: a exploração. Absorviam as purificadoras e rizomáticas virtudes botânicas da floresta, a sagacidade do tempo, o aguçar do som e a luz disputada por todos os seres vivos. Era um processo de empoderamento em curso até que chegasse o dia da desforra dos revoltosos unidos.

Suspendendo a narração, o jornalista bebia mais um whisky do minibar deixando o conto inacabado. Seria útil deslocar-se ao Parque Obô, como um colega do ambiente sugeriu, para dar concretude às suas palpitações literárias. Mas a organização do evento no qual vinha integrado, interessada mais em networking do que propriamente no património rural, agendara para o dia seguinte um passeio ao Ilhéu das Rolas. Olhou para o programa. Constava um almoço com os senhores do patrocínio. Imprimiu o texto que tinha para ir acrescentando pormenores. Desce e encontra a amiga na receção. Quer contar-lhe um pouco sobre a comunidade insurgente que acabara de escrever, mas ela vem afogueada anunciando que os tais empresários com quem tinham conversado na véspera fugiam de avião à pressa sem explicação. Havia rumores de uma espécie de golpe de Estado, ou algo de amedrontar.

- O medo está por todo o lado”, disse o jornalista.

- O medo não vai ter tudo”, responde a amiga, espirituosa.

Deixam cair a incógnita da resposta, caminham pela marginal de São Tomé, ao longo da baía de Ana Chaves onde a espuma das pequenas ondas se torna florescente no denso escuro. Conheciam-se de Lisboa dos tempos da faculdade mas aquela situação, ou seja, a sua relação cúmplice até aos dentes com gente endinheirada e influente, constrange-o. Já a amiga tem dificuldade em transmitir as suas avaliações sobre assuntos da terra a algum português recém chegado. Seria tudo demasiado superficial nas apreciações e nos juízos de valor de quem não fica tempo suficiente na ilha para perceber certas subtilezas. Então, escudando-se a grandes pensamentos, prefere concordar ou acrescentar informações àquelas banalidades da visão turística, que vai alternando entre o tom idílico ou reprovador.

6

De novo na piscina com o seu livro, o turista repara que há mais gente a ler o Equador, o que provoca uma certa frustração pois ele gosta de ser diferente dos demais. Ainda se encontra em estado de recuperação da pobreza e dos sorrisos das crianças nas roças, endiabradas, a quererem fazer-lhe sentir-se culpado pelo bitoque e caipirinha que mandou vir. E ainda lhe ofereceram orgulhosamente um cacau, coitadinhos, olha que bela riqueza geradora de tanto conflito na História e do universal vício do açúcar

Acredita já ter acumuladas centenas de fotos de crianças, sorrisos rasgados, olhos inocentes, barrigas nuas, t-shirts rotas, caderninhos da caridade, brinquedos construídos pelos próprios. Dentro de dias iria mostrar as fotografias como um troféu aos amigos. Sentia o potencial desses registos enternecedores. Funcionam sempre. As crianças são o mais fácil e desprovido rosto para esse nome gasto, pobreza.

Porém, sentia-se ligeiramente desiludido com as suas férias, então quis dar uma volta pelo ilhéu.

— Além da linha do Equador e das praias, que há para fazer por aqui? - perguntou na receção.

— Pode fazer mergulho.

— Hmmmm… Não haverá nenhum ponto alto para tirar fotografias?

— A grande atração do ilhéu, a linha do Equador, é alta. Bom ,também há um farol lá em cima, mas sem acesso a turistas.

Depois de um “obrigado” contrariado, o turista pôs-se a andar. No seu passo ia pisando as folhas maduras e as cascas de coco secas da encosta até ao farol, cismando que era um turista diferente e ia a sítios onde os turistas não põem os pés. E devia ler livros que os outros turistas não liam. Essas pequenas desobediências eram a sua grande adrenalina.

“Que raio de ideia ler o Equador do Sousa Tavares em São Tomé… ”

Seguia por um ziguezague a pique, distraído a pensar que as botas de montanha que estreava eram mesmo de qualidade. 

Deu de caras com o farol. Um silêncio tomava conta do ar com a visão do faril.

O turista convenceu-se que ia entrar na casa do farol e subir as escadinhas em caracol para ganhar a amplitude de vista que as suas fotografias pediam. Ele merecia essa panorâmica. Ficou por uns momentos a rondar a entrada até que se fizeram ouvir os passos do faroleiro.

— Boa tarde, não se importa que suba só por uns minutos para tirar umas fotografias?

O faroleiro, homem de poucas palavras - como todas as pessoas dos fins-de-mundo - acedeu, e abriu-lhe a casa. Não gostava de visitas, mas comoveu-se ligeiramente com o ridículo do turista franzino, todo equipado com máquinas, chapéu e botas de aventura.

— O senhor mora aqui sozinho?

O faroleiro já esperava essa pergunta. Habituara-se ao pasmo das pessoas com a sua resistência à solidão. O turista sentira necessidade de perguntar qualquer coisa ao homem, fingindo-se interessado, enquanto faz as suas panorâmicas.

— Sim, há 19 anos. E gosto. - avançou logo pois sabia que essa era a resposta à pergunta seguinte. — Tenho um rádio, vou-me informando, os meus filhos vivem na capital. Tenho tudo o que preciso: paz e sossego.

O silêncio em que aquela pessoa vivia, incomodava um pouco o turista. Era-lhe impossível perceber o valor de uma espécie de silêncio que possibilita pensar em tudo o que há para pensar quando não há nada para pensar.

— Valente! - E desceu as escadinhas, acenando um seco “adeus” ao faroleiro, decidido a voltar para as águas plácidas e confortáveis da piscina.

7

No regresso para o bungalow, o turista cruza-se com o grupo que acaba de aportar num barco fretado só para eles. Têm ar de quem não estava necessariamente a fazer férias mas de quem usa a realidade que observam para: documentar, criar e exibir. Dirigem-se ao restaurante onde os espera lagosta e conversas sobre as particularidades dos países lusófonos. São santomenses, portugueses e angolanos, gente seleta sem deixar de ser espalhafatosa.

— Parece que são mais do sector de turismo cultural.-  confidenciou-lhe o chefe de sala.

O turista vai à casa de banho do restaurante e apercebe-se de umas folhas com uns escritos a computador dentro de uma pastinha junto à porta. Ainda dá uma vista de olhos a ver se é de alguém acabado de sair da casa de banho. Está quase a entregá-las ao chefe de sala mas fica curioso e, pelo sim pelo não, guarda as folhas. Vislumbra ao fundo um rapaz de óculos que remexe na mochila à procura de qualquer coisa, deve ser ele o dono das folhas mas não lhe perguntar porque vai lê-las, mais tarde, na apetitosa cama de lençóis diariamente mudados pelas simpáticas empregadas que ganham um décimo do salário mínimo do seu país.

Nessa noite, talvez por causa do peixe-andala ou porque a mulher não atende as suas chamadas, tem um estranho sonho. Uns escravos fujões naufragam no ilhéu, jogam capoeira, dançam bulauê, exibem escarificações e caras raivosas. Tudo se mistura nas parcas referências culturais do turista. Alguns deles usam até fato, gravata e óculos de marca cara, devem ser empresários e políticos. Aterrorizam os turistas com raiva e sátira. No meio do motim, um deles chama o empregado do resort e ordena efusivamente que encha a piscina com champanhe. O empregado cumpre a demanda, sem qualquer estranheza. Despejadas, uma a uma, as centenas de garrafas de espumante para dentro da piscina, as pessoas são para lá atiradas boiando nas bolinhas espirituosas do champanhe. Os revoltosos deixam o resort e entram pelo ilhéu a dentro, sobem ao farol para um estridente grito de vitória.

No dia seguinte, o turista acorda estremunhado. O pacote da agência concedia apenas uma semana na isla bonita. O regresso ao aeroporto não deixa nada de assinalável na cabeça do turista. Nem o Waldemar, de catana em punho de madrugada, a caminho da floresta para derrubar o ocá e construir uma canoa. Tampouco o cansaço de Josué no mar alto a pescar garoupa, peixe-andala, tubarão, a ser vendidos por tostões na praça. Muito menos os quilómetros e quilómetros calcorreados por Aissata a carregar banana e fruta-pão. Mas claro que o telemóvel do turista guarda sefies com o Pico Cão em fundo sem reparar na destruição da floresta para exploração de óleo de palma.  

in Roça Língua, Coletânea de Contos, editorial Novembro, 2014.

Fotografias de Marta Lança.

por Marta Lança
Mukanda | 1 Setembro 2022 | Amador, angolares, ilhéu das rolas, jornalista, resort, roças, São Tomé e Príncipe, turista