Memória, cinema e reparação: entrevista a Dulce Fernandes sobre Contos do Esquecimento

Durante a escavação para um parque de estacionamento na cidade de Lagos, foram encontrados os restos mortais de 158 pessoas africanas, vítimas do tráfico esclavagista português. Enterradas entre o lixo, sem qualquer tipo de ritual, essas vidas apagadas vieram a público de forma quase silenciosa, e desapareceram, mais uma vez, no esquecimento coletivo. Contos do Esquecimento, filme realizado por Dulce Fernandes, nasceu desse choque: da descoberta de um lugar historicamente fundacional - o ponto de chegada das primeiras pessoas escravizadas trazidas de África para Portugal, em 1444 - e da constatação de como esse mesmo lugar foi ocupado por um parque de estacionamento, um minigolfe e por um silêncio institucional persistente.

Ao longo de quase uma década de investigação, escrita e montagem, Dulce Fernandes construiu um filme sobre a presença contínua do passado no presente. Mais do que uma obra sobre o que aconteceu, trata-se de um filme sobre como o que aconteceu continua a operar nas estruturas sociais e raciais do nosso quotidiano. Entre imagens contemporâneas, arquivos coloniais, palavras cuidadosamente escolhidas e um gesto de cinema profundamente ético, Contos do Esquecimento propõe-se como um espaço de interrogação, memória e possível reparação.

Nesta entrevista, Dulce Fernandes fala do seu processo, das descobertas nos arquivos, da simbologia de Lagos, da dificuldade coletiva em enfrentar a história do tráfico e da escravatura em Portugal, e da importância do cinema como ferramenta de denúncia, de reflexão e de justiça simbólica. 

[O filme passa em Lagos no dia 29 de novembro]

 

Em que momento percebeste a dimensão e o silêncio histórico por detrás desta escavação em Lagos? O que te levou a transformá-la num filme?

A escavação ocorreu em 2009 e durou cerca de cinco ou seis meses. Tive conhecimento em 2013, quando estive em Lagos e percebi que aquele acontecimento já tinha ficado para trás: a escavação estava concluída, o parque de estacionamento já se encontrava em funcionamento, e o minigolfe era finalizado. O processo do filme foi, por isso, muito longo. Só ficou concluído em 2023, quase uma década depois. Foi um percurso extenso de investigação, escrita, desenvolvimento e, também, de montagem. Voltando àquele momento inicial, à minha descoberta do lugar: não tive uma única revelação repentina sobre o que aquele local significava. Foi antes uma série de momentos sucessivos, de surpresa, de arrepio, de indignação, que me foram confrontando com a perplexidade e a violência do que ali acontecera e com o modo como o espaço foi tratado.

Aquele lugar é, do ponto de vista geográfico e material, o marco inicial do que viria a ser o tráfico transatlântico de pessoas africanas escravizadas. É ali, em 1444, que desembarcam as primeiras pessoas raptadas e trazidas à força de África. Temos fontes documentais, como a crónica de Zurara, que relatam esse momento, e também a datação dos esqueletos encontrados em Lagos confirma esse intervalo temporal.

Estas foram as primeiras pessoas trazidas em condições de escravatura, o início de um processo que se prolongaria por mais de 400 anos, com milhões de vidas destruídas, com a consolidação da economia de plantação e com a massificação do tráfico atlântico. Lagos, nesse sentido, é um local de importância histórica absolutamente única no mundo. Não existe outro lugar com esta mesma marca fundadora. É também um espaço de grande simbolismo. Foram ali encontrados os restos humanos de 158 pessoas - enterradas no meio do lixo. É um número impressionante, e acredita-se que haja mais restos humanos nos terrenos ainda não escavados. E, no entanto, toda essa carga histórica, arqueológica e simbólica não encontra qualquer correspondência com aquilo que foi feito no local. Primeiro um parque de estacionamento, depois um minigolfe. Mais tarde, um museu, mas que também não reflete, de forma adequada, a importância extraordinária daquele sítio.

O silêncio coletivo em torno deste lugar é gritante e há muitas questões que continuam a causar perplexidade. Foi nesse contexto que o filme ganhou forma mas foi um processo longo e difícil, marcado por inúmeros desafios: como lidar com a violência dessa história, com o apagamento, com a ausência de imagens, com fontes marcadas por um discurso opressor. E, acima de tudo, como encontrar o meu lugar para falar desta história.

O que é fundamental nesta memória da escravatura para os dias de hoje? 

Este tema é extremamente relevante hoje, porque o legado desta história é o racismo estrutural do nosso presente. Por isso é tão importante compreendermos o que aconteceu, como é que tudo começou, e de que forma chegámos até aqui.

Vivemos ainda no after life da escravatura. O passado do tráfico continua a operar nas estruturas de poder e diferenciação racial que nos regem hoje. Por isso, falar de 1444, de Lagos, daquele sítio concreto, é também falar do nosso presente. E da urgência de o transformar.

Por que razão continuamos a ter tanta dificuldade em enfrentar este capítulo da nossa história?

Para mim, é claro que esta dificuldade está profundamente ligada à ausência de memória histórica relativamente ao tráfico transatlântico de pessoas escravizadas e ao papel central que Portugal desempenhou nesse processo. Portugal teve um papel fundamental: foi o país que iniciou e massificou o tráfico de pessoas escravizadas através do Atlântico, numa escala nunca antes vista. A economia da plantação começou por ser ensaiada na Madeira, com a cultura da cana-de-açúcar, e depois foi desenvolvida e expandida no Brasil. Estima-se que Portugal tenha traficado cerca de seis milhões de pessoas, arrancadas à força de África e transportadas em navios com bandeira portuguesa, e mais tarde também brasileira.

Portanto, a centralidade de Portugal na história do tráfico e da escravatura é inegável — e, por isso mesmo, é difícil de encarar. Há um enorme entrave em assumir esta história, porque ela colide com a narrativa dominante do “lusotropicalismo”: a ideia do colonizador benevolente, pioneiro da abolição, da paz racial no império, tudo isso entrelaçado com o mito dos Descobrimentos, dos grandes navegadores e de uma identidade nacional construída em torno da glória e do heroísmo.

Este confronto entre mito e realidade cria uma tensão difícil de resolver. E até hoje, não se tem conseguido fazer essa travessia de forma profunda. Acredito que a principal razão está no facto de vivermos dentro de um sistema racial profundamente enraizado, hiperestrutural, difícil de desmontar, que mantém uma determinada estratificação de poder e privilégio, o que torna o seu desmantelamento desconfortável para quem beneficia dele.

Falar do tráfico de pessoas escravizadas implica, inevitavelmente, falar do racismo atual. As duas coisas estão intimamente ligadas. A escala, a duração e as consequências históricas do tráfico são profundas e violentas, e continuam a ser silenciadas ou omitidas da narrativa oficial e da memória coletiva.

O que ainda impede uma verdadeira assunção disto?

Sinceramente, não sei qual é a resposta definitiva para explicar porque é que ainda não conseguimos ultrapassar esta fase da negação. Talvez nem estejamos ainda na negação, talvez estejamos antes numa fase “pré-negação”, ou numa fantasia coletiva, alimentada pelo lusotropicalismo. Talvez essas duas realidades - a fantasia e a negação - coexistam como duas faces da mesma moeda.

Superar esta etapa implica confrontar sentimentos difíceis: culpa, vergonha, responsabilidade. E essas são emoções que custam muito a assumir, sobretudo a nível coletivo. Mas só depois desse reconhecimento é que se poderá avançar para uma verdadeira fase de reparação.

Penso que um caminho possível seria deixar de tratar estas questões apenas como um problema moral ou pessoal, e começar a vê-las como questões políticas. O racismo surgiu num determinado contexto histórico com um propósito muito claro: o da exploração económica e da manutenção do poder. Se conseguirmos olhar para esse sistema como algo que já não serve os nossos valores nem a nossa humanidade, talvez consigamos rejeitá-lo de forma mais clara e consciente. Mas, claro, tudo isto é uma construção contínua, com avanços e recuos. E, até agora, temos assistido a demasiados recuos. Ainda assim, é nesse caminho, mesmo com incertezas, que temos de continuar a tentar avançar.

Esta história raramente aparece nos currículos, nos espaços públicos ou nos museus. Nas apresentações do filme e debates vês sinais de interesse e mudança?

Sem dúvida que notei sinais de muito interesse. Mas também tenho consciência de que o público que vem ver o filme é, em grande parte, um público já sensibilizado e interessado nestas questões. Por isso, tenho um grande interesse em que o filme circule de forma mais alargada, especialmente em contextos escolares e didáticos. Acredito que os professores, em particular os de História, sentem frequentemente falta de ferramentas e recursos que os ajudem a abordar temas como o racismo e a escravatura de forma informada e sensível. A questão dos currículos e do ensino da história é absolutamente central. Se isso não mudar, continuaremos a perpetuar a mesma narrativa dominante, invisibilizando ou distorcendo estas histórias. Essa parece-me ser a principal transformação necessária.

Claro que também os espaços públicos e os museus precisam de se transformar. Alguns museus em Portugal já começaram esse processo, convidando ativistas e artistas a revisitar e reinterpretar as suas coleções, muitas vezes compostas por peças trazidas em contextos de exploração, escravização ou roubo. Há um movimento no sentido de criar novos olhares sobre estes objetos e as suas histórias. Mas o caminho ainda é longo. Existem muitas coleções municipais, privadas que precisam de ser olhadas criticamente. Não sou especialista na área dos museus e das coleções, mas, por exemplo, visitei o museu da Casa de Bragança, em Vila Viçosa, dedicado ao rei Dom Carlos, onde há uma vasta coleção de peças africanas. Muitas dessas peças foram trazidas, não se sabe exatamente em que condições, das expedições feitas pelo rei em territórios africanos, provavelmente em contexto colonial.

Portanto, para além dos grandes museus de referência, há muitas outras coleções que carecem de investigação e contextualização histórica séria. Nos espaços públicos, esta questão é igualmente urgente. Veja-se o caso de Lisboa, onde ainda não conseguimos concretizar o Memorial às vítimas da escravatura. O projeto da Djass Memorial às Pessoas Escravizadas a Djass, aprovado desde 2017 - com um local e a proposta Plantação, do artista Kiluanji Kia Henda definidos - tem sido constantemente adiado por falta de vontade política. Tal como o caso do minigolfe em Lagos, esta dificuldade em avançar com o memorial em Lisboa é reveladora do desconforto e da dificuldade em lidar com esta parte da nossa história. Em Lagos, há agora também uma tentativa de criação de um memorial.


O artigo da Inês Beleza Barreiros “Contos do Esquecimento (ou das listas da nossa vergonha)” refere que o filme recusa “a vertigem da visualidade do império” e evita imagens violentas. Como encontraste o equilíbrio entre mostrar a violência histórica e evitar a reprodução dessa mesma violência através das imagens?

Essa foi, sem dúvida, uma das questões centrais em todo o processo do filme, não apenas no que diz respeito às imagens, mas também às palavras, aos sons e aos conteúdos em geral. A história que abordamos é marcada por uma violência absolutamente terrível. E os arquivos, tanto as fontes escritas como os objetos e imagens que existem, estão impregnados dessa mesma violência, que continua a ser atual e operativa. Essa violência não terminou. Ainda hoje está presente e ativa. Por isso, torna-se extremamente difícil mostrar algo sem que essa carga violenta se manifeste de novo. Mostrar pode ser, em si mesmo, um ato de violência.

A minha principal preocupação com este filme foi não causar sofrimento adicional ou desnecessário, além de, naturalmente, chamar a atenção para esta história. Houve sempre uma intenção de memória, mas o foco esteve, acima de tudo, em não perpetuar mais dor.

Tratar da história da escravatura, do tráfico e do racismo é sempre delicado, precisamente porque estas violências não são apenas do passado. O racismo ainda está entre nós. Continua operativo. Esta história, quando é contada, fere-nos e atinge-nos todos os dias, independentemente do lugar que ocupamos dentro do sistema de racismo estrutural. As pessoas racializadas são afetadas de forma mais violenta. No meu caso, enquanto pessoa branca, sou afetada de forma menos direta, mas nem por isso deixo de estar dentro desse sistema e da sua lógica.

Penso que consegui encontrar, através da linguagem cinematográfica, formas de evitar a reprodução da violência contida nas fontes e nas imagens. O tempo da montagem foi essencial: o filme é muito lento, os planos são longos, e os textos mais violentos são apresentados com tempo para serem lidos e digeridos. A seguir a esses textos, há sempre espaço para a contemplação, permitindo que o espectador possa refletir sobre o que viu e ouviu. A própria paisagem sonora do filme ajuda a transportar-nos para uma temporalidade não linear, em que diferentes camadas de tempo se sobrepõem. E também nos remete para presenças invisíveis que continuam a habitar os lugares do nosso quotidiano.

Houve ainda uma intenção clara de apropriação do arquivo, especialmente das fontes escritas. Como refere Saidiya Hartman, o arquivo, para as pessoas escravizadas, é sempre um encontro com a violência: elas aparecem nos registos apenas quando são compradas, embarcadas ou desembarcadas. Nunca são elas que deixam a sua escrita ou a sua versão da história. É sempre o opressor, o escravizador, quem escreve.

Por isso, esse arquivo está inevitavelmente contaminado por essa violência histórica, e ainda assim atual. Mas senti que tinha o direito de me apropriar dele, de ir buscar ali o que servia ao propósito do filme: contar esta história de forma livre, ampliada e contemplativa. Tinha centenas de textos extraordinários, e procurei escolher excertos que servissem cada momento e o todo do filme. Em alguns casos, foi necessário adaptar a linguagem das fontes, por exemplo, modernizando o português antigo que se tornava incompreensível, sempre com o máximo rigor e sem distorcer o sentido original. Era importante manter a fidelidade às fontes. O filme contou com consultoria histórica. Embora não seja um objeto académico de história, para mim era essencial que mantivesse um grau elevado de rigor e responsabilidade na forma como lidava com as fontes e com a memória.


O filme confronta diretamente a cidade de Lagos com o seu passado, no contraste entre o memorial à escravatura (a haver) e um minigolfe construído no mesmo espaço, O que simboliza isso?

A meu ver, o que foi feito ali - o parque de estacionamento, mas sobretudo o minigolfe - é uma metáfora muito clara da negação de Portugal em relação ao seu papel no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, bem como da negação do racismo no nosso presente. Por isso, foi difícil, no início, perceber como é que poderia construir uma narrativa, como fazer um filme a partir daquela realidade. Porque o próprio local já era, em si, uma metáfora acabada. Representa o colapso de todas as camadas históricas e simbólicas que ali coexistem, uma espécie de apagamento sistemático. É precisamente essa sobreposição de silêncios que torna aquele lugar tão significativo.

A cidade de Lagos carrega uma responsabilidade pesada. Talvez até injusta para o poder local, que certamente sofre pressão de vários lados. Mas é essa a realidade. Lagos tem, neste momento, um processo em curso para a criação de um memorial à escravatura. A ideia original era construir esse memorial ali mesmo, naquele local, juntamente com um centro interpretativo. Isto ainda antes de eu começar a trabalhar no filme, em articulação com o Comité Português da Rota do Escravo, um projeto da UNESCO. No entanto, todas essas iniciativas foram abandonadas, alteradas ou adiadas, conforme a perspetiva. Acabou por ser construído um museu, não no local original, mas mais abaixo, junto ao Cais.

Esse museu tem, em si, vários problemas, principalmente em termos de conteúdo. A forma como interpreta, processa e comunica o legado das descobertas arqueológicas em Lagos levanta muitas questões. Não há qualquer menção ao racismo — o que revela uma enorme dificuldade, em Lagos, de abordar essa temática. Esse silêncio está presente em toda a comunicação institucional e nas reflexões que têm sido feitas sobre os achados arqueológicos.

Isto constitui um dos principais obstáculos a um verdadeiro processo de reflexão e transformação daquele lugar. Por um lado, há um museu que omite; por outro, o único elemento que assinalava o espaço era uma placa onde se mencionavam aspetos morfológicos e históricos como as ribeiras e a leprosaria ali existentes. A referência aos indivíduos de “traços negróides” (expressão hoje considerada profundamente ofensiva, herança de um vocabulário racista do século XVIII) era feita de forma mínima e superficial, sem qualquer correspondência com a importância do que tinha ali sido encontrado. Essa placa foi entretanto retirada. A informação que me chegou era de que seria substituída, mas na última vez que estive em Lagos, no verão deste ano, ainda não havia nada.

Portanto, até onde sei, atualmente não existe qualquer sinalização no local que sinalise o que ali aconteceu ou foi descoberto. Há um processo de memorial em curso, promovido pela Câmara Municipal, mas não se sabe quem está envolvido. Fala-se num concurso de ideias, mas, entre os muitos especialistas, académicos, ativistas, investigadores e artistas que há anos pensam estas questões, não conheço ninguém que esteja a participar. Parece-me um processo opaco, e acho que a Câmara só teria a ganhar se tornasse tudo mais transparente e participativo.

Sobre o minigolfe: para mim, é uma questão absolutamente fundamental. Acho profundamente ofensivo que exista um equipamento de lazer comercial sobre um espaço de tamanha carga histórica. O minigolfe está ali ao abrigo de um contrato de arrendamento com uma empresa privada, celebrado em 2012, com duração de 15 anos, renovável por mais 5. Portanto, esse contrato termina em 2027. Espero que a Câmara esclareça as suas intenções relativamente a essa renovação. Parece-me que a solução mais simples e respeitosa seria não renovar. Não há qualquer prejuízo financeiro, bastaria deixar o contrato chegar ao fim e aproveitar esse tempo para repensar seriamente o que fazer ali.

Claro que há limitações financeiras e outras, mas soluções podem sempre ser encontradas. Antes das escavações, aquele era um olival semi-selvagem, e essa paisagem poderia ser reconstituída. Mesmo sem grandes recursos, é possível dignificar o local de forma simbólica e significativa. Nem tudo precisa de ser monumental ou caro, o essencial é que se reconheça a importância histórica daquele espaço e se trate o local com a dignidade que merece.

O filme cruza arquivos coloniais com imagens do presente, quebrando a separação entre passado e presente. O que descobriste durante essa investigação nos arquivos que mais te surpreendeu?

Na verdade, o filme tem poucos momentos em que os arquivos estão presentes — e isso foi intencional. Esses momentos são muito específicos e pontuais, porque o filme não pretende ser uma obra sobre o passado. Ele é, antes de tudo, um filme sobre o presente. Sobre como o que aconteceu continua a manifestar-se, a reverberar e a atravessar o nosso quotidiano e as nossas vidas hoje. Por isso, para mim, era essencial que o filme não fosse construído a partir de imagens históricas, fotografias ou documentos de arquivo. Quis fazer um filme que nos colocasse no presente, que nos confrontasse com essa continuidade histórica e com as suas marcas no agora.

No entanto, claro que houve uma investigação aprofundada, tanto para os arquivos que acabaram por ser incluídos, como para todo o trabalho de contextualização e construção da narrativa histórica, centrada em Lagos e no tráfico transatlântico.

Foi uma investigação que, para mim, era nova. Não sou historiadora nem trabalho habitualmente com arquivos. E o que descobri, contrariando uma narrativa muito comum, foi que há, na verdade, muita documentação. Há a ideia generalizada de que grande parte da informação se perdeu com o terramoto de 1755, que pouco foi preservado, que tudo o que existia já foi estudado e catalogado. Mas aquilo que percebi é que, apesar de lacunas inevitáveis, existe uma abundância de fontes e documentos que ainda estão por trabalhar, por interpretar, por transformar em conhecimento histórico acessível, por integrar os currículos escolares e ser transmitido ao público.

E é precisamente por isso que, em Portugal, atravessamos 12 anos de escolaridade sem saber o nome de um único navio negreiro, de uma única pessoa escravizada, de uma única revolta de pessoas escravizadas. Não conhecemos sequer os números fundamentais do tráfico.

Para mim, foi especialmente surpreendente confrontar-me com a estimativa — hoje bastante consensual e bem documentada, de que Portugal traficou cerca de seis milhões de pessoas africanas. Pessoas arrancadas à força, transportadas em navios portugueses (e, mais tarde, brasileiros), ao longo de séculos. É um número absolutamente aterrador. E, no entanto, este dado não faz parte do nosso conhecimento comum, não integra a narrativa escolar nem o imaginário histórico nacional. E isso é profundamente chocante.

Esse número não é uma especulação: é o resultado de um vasto trabalho de investigação, nomeadamente através da base de dados Transatlantic Slave Trade Database, coordenada por centros académicos nos Estados Unidos, mas com contributos de historiadores e investigadores da Europa, África e Américas. Um trabalho rigoroso e colaborativo, baseado em documentos preservados em arquivos de todo o espaço atlântico.

Portanto, talvez a descoberta mais surpreendente da minha investigação tenha sido essa: perceber que existe conhecimento, existem dados, existe documentação, mas não existe transmissão nem integração desse conhecimento na nossa memória coletiva, no nosso ensino, na nossa cultura histórica. E isso diz muito sobre o silêncio e o apagamento que ainda persistem.

O cinema pode ser uma forma de reparação?

Sim, acredito que o cinema pode, sim, ser uma forma de reparação. Aliás, qualquer intervenção consciente no mundo pode ter esse potencial. No caso deste filme em particular, há uma intenção clara de trabalhar a memória como gesto reparador - um resgate, uma reconstrução, uma reaproximação.

Há no filme uma preocupação em lembrar os mortos que não tiveram direito a um ritual de enterramento, em assinalar os lugares onde foram descartados, em recuperar os números concretos do tráfico transatlântico, e em mostrar como os espaços que hoje habitamos continuam a ser atravessados por esse passado. Trazer tudo isso para o presente, para a contemplação do agora, é para mim, enquanto cineasta, um gesto de reparação.

Mas há também, neste caso, uma dimensão ainda mais específica: o filme lida com a memória de 158 pessoas cujos restos mortais foram encontrados naquele local. E nesse sentido, a reparação é também pessoal, concreta, dirigida a essas vidas que foram apagadas. Foi nesse contexto que surgiu o grande debate interno sobre as imagens das caixas onde os ossos estão guardados. A decisão de incluí-las no filme não foi fácil nem automática.

Refletimos muito: será que mostrar essas imagens seria ofensivo? Seria uma nova forma de objetificação? Estaríamos a desrespeitar a memória daquelas pessoas? Seria violento para pessoas que se possam considerar descendentes delas?

Esse debate foi feito dentro da equipa, mas também com várias pessoas externas - académicos, ativistas, artistas, amigos, familiares - pessoas com perspetivas e experiências diferentes. E a conclusão a que chegámos foi esta: só poderíamos incluir essas imagens se o fizéssemos de forma digna, justa, e que, de facto, trouxesse consigo uma dimensão de reparação simbólica.

Na montagem do filme, tentámos criar um momento fílmico que funcionasse quase como um ritual fúnebre — aquele que estas pessoas nunca tiveram. Os planos são longos, o som é apenas o ambiente, quase um silêncio total. O espectador é convidado a olhar para essas caixas de forma contemplativa, num momento de recolhimento. Quisemos criar, ali, um tempo de silêncio, tal como se faz em homenagem aos que morreram.

Mais adiante no filme, há ainda uma sequência com o poema de Birago Diop, Os mortos não estão mortos. É uma evocação da presença contínua dos que partiram: estão na praia, na floresta, na cabana, estão connosco. Essa sequência também pretende funcionar como uma oração, como uma forma de presença e de lembrança, e, nesse sentido, de reparação. Claro que nem todas as pessoas vivem o filme da mesma maneira. Nem sempre resulta. Algumas pessoas conectam-se com essa dimensão ritual; outras não. E isso faz parte da experiência do cinema. Mas essa foi, de forma consciente, a intenção com que o filme foi feito. Sim, acredito profundamente que o cinema, neste caso, pode ser uma forma de reparação simbólica, ética, sensível.

CONTOS DO ESQUECIMENTO

documentário | 63’ | 2023

 

SINOPSE

Numa manhã quente de verão em 1444, na aldeia piscatória de Lagos, no sul de Portugal, foi desembarcado um grupo de pessoas africanas. No campo junto ao porto, foram entregues como escravos aos nobres e comerciantes locais. Durante os 400 anos seguintes, mais de seis milhões de africanos seriam traficados em navios portugueses para a Europa e para o outro lado do Atlântico.

Numa tarde chuvosa de inverno de 2009, em Lagos, arqueólogos que escavavam o local onde estava a ser construído um parque de estacionamento subterrâneo, começaram a encontrar esqueletos humanos. Trabalhando no local durante os cinco meses seguintes, enquanto o parque de estacionamento estava a ser construído à sua volta, os arqueólogos descobriram os esqueletos de 158 homens, mulheres e crianças africanos escravizados. Os seus corpos tinham sido depositados numa lixeira do século XV.
Entrelaçando estas duas histórias, Contos do Esquecimento cruza histórias de violência e brutalidade do passado com imagens e sons do presente. Evocando o que aconteceu nestes locais e revelando memórias do passado, Contos do Esquecimento é um filme-território onde não temos outra escolha senão olhar para como o presente continua a ser moldado pela história que carregamos dentro de nós.

Ficha técnica

Argumento e Realização: Dulce Fernandes
Direção de Fotografia: Paulo Menezes
Som: Armanda Carvalho
Montagem: Mário Espada
Música Original: Xullaji
Vozes: Dulce Fernandes, Lucy Shaw Evangelista, Denise Viana
Mistura de Som: Tiago Matos
Correção de Cor: Mafalda Aleixo
Produtores: Ansgar Schaefer, Pandora da Cunha Telles
Coprodutor: Pablo Iraola
Produção Executiva: Elsa Sertório, Dulce Fernandes

Produção: Ukbar Filmes, Kintop

Distribuição: Madame Filmes

por Marta Lança
Cara a cara | 25 Novembro 2025 | arqueologia, Contos do Esquecimento, Dulce Fernandes, escravatura, Lagos, memorial às pessoas escravizadas