Reeducação de Mulheres, entrevista a Licínio Azevedo sobre o filme "Virgem Margarida"
Fotografias de João Costa
Em finais de 1975, prostitutas de norte a sul de Moçambique, foram levadas para centros de reeducação na convicção de que estas mulheres - com disciplina e trabalhos forçados vigiados por militares de pureza revolucionária -, corrigiriam a ‘má vida’ transformando-se na ‘mulher nova’ socialista. Mas um equívoco destabiliza esta história. No meio da rusga à boémia da rua Araújo em Maputo estava Margarida que, sem sequer ter sido iniciada na vida sexual, seria igualmente levada. Todas as mulheres se unem contra a opressão machista e põem a nu as injustiças desta estratégia revolucionária, conhecida por ‘Operação Produção’.
Licínio Azevedo, realizador brasileiro radicado há quase 40 anos em Moçambique, explica-nos a sua admiração por estas mulheres e as peripécias de Virgem Margarida, filme que traz a lume um episódio negro do período pós-independência, quando o governo da Frelimo quis reeducar milhares de ‘anti-sociais’, dissidentes intelectuais, jeovás, homossexuais, criminosos, mães solteiras e prostitutas, fazendo-os desaparecer misteriosamente para lugares recônditos de antigas bases da guerrilha, em pleno mato, onde muitos sucumbiram aos castigos e maus tratos. Em 1981, Samora Machel inicia a suspensão do processo reeducativo. Que aconteceu aos reeducados? Como Moçambique vive com esta memória?
Como surgiu a ideia de contar a história dos centros de reeducação de prostitutas?
As prostitutas foram as primeiras a dar vivas à revolução. Tenho acompanhado os 37 anos de Independência em Moçambique enquanto documentarista e sempre me interessou o tema da mulher. É o caso do meu filme A Última Prostituta, um documentário clássico de entrevistas, a partir de uma fotografia de Ricardo Rangel, com dois militares a escoltarem uma prostituta. Na altura chamou-me a atenção o depoimento sobre uma camponesa que tinha ido à cidade comprar o enxoval e, indocumentada, foi levada por engano para os campos. Construí o filme Virgem Margarida a partir dessa história contada por reeducandas: uma virgem num centro de reeducação entre 700 prostitutas.
Olhando retrospectivamente para aquela época, o que subjaz da ideia de homem e mulher novos? O que poderia ter de apelativo a limpeza de costumes, contra a indigência e degeneração?
Cheguei a acreditar que, através da revolução, era possível purificar o ser humano, criar uma nova sociedade. Agora quero compreender o lado humano destes processos, a contradição dos grandes ideais que, por vezes, se transformam em tragédias pois as pessoas que os dirigem são mais fracas do que os mesmos. No filme, um dos conflitos é o percurso entre as prostitutas e as guardas dos centros de educação, encarregues de reeducar as outras mulheres, que eram militares e camponesas da luta pela independência, com uma visão tão deturpada do país que nem sabiam o que era a prostituição. Os próprios soldados que faziam as capturas, acabados de chegar da guerrilha, não estavam habituados à cidade e equivocavam-se com uma saia curta ou um vestido mais ousado. Levavam mulheres para os campos só porque se vestiam de maneira diferente, usavam batom, ou não tinham documentos. No filme temos por exemplo a amante, a namoradinha com a mãe em casa, a dançarina mãe de família que deixou os filhos pequenos sozinhos e a virgem.
Vemos um país internamente desconhecido, com mulheres do sul, norte, urbanas, rurais que, nesse convívio, se vão transformando em “mulheres de uma só nação”. O filme reflecte sobre a libertação da mulher?
É sobre os antagonismos da sua libertação. Remete para a emancipação das mulheres africanas em situações distintas: alfabetizadas ou não, a mulher colonizada e a mulher revolucionária, que percebe a disciplina imposta pelo homem. A reeducação funciona em vários sentidos, todas se “purificam” num certo dualismo: as prostitutas purificam-se porque aprendem coisas como a importância da liberdade e do trabalho, as militares libertam-se das hierarquias superiores. A adolescente virgem torna-se uma espécie de santa: todas a querem proteger ou ser protegidas por ela, profunda conhecedora do mato, ao contrário das mulheres urbanas sem relação com o mundo rural. A reeducação de prostitutas, militares e camponesas foi afinal um processo de mútuo conhecimento, que as leva a unirem-se para se libertarem.
Na união final, parece haver um grito feminista que contrapõe o moralismo que quer reeducá-las para serem boas esposas e mães, aprendizes dos ofícios femininos. Ou seja, os argumentos para a reeducação não contradizem em parte o objectivo de acabar com a exploração da mulher pelo homem?
O filme joga com essa dualidade. As camponesas acusam as prostitutas na sua incapacidade de serem boas esposas, “mulheres da má vida, vocês não sabem varrer o chão, não sabem cozinhar”, já elas vão buscar água para os seus maridos e reflectem a sociedade tradicional moçambicana.
A desconstrução torna-se mais clara quando as militares percebem a fragilidade daqueles a quem devem obediência cega, pois se até o dirigente da Frelimo não cumpria o que mandava fazer.
Sim, o verdadeiro grito revolucionário provem das militares quando dizem “filho da puta, passou para o lado do inimigo”. Revoltada, usa a linguagem das prostitutas, coloca-se contra os homens, pois o militar afinal é um símbolo masculino reaccionário. Já elas dão continuidade à revolução, depois de perceberem que estão a ser julgadas, de maneira indecente, pelo lado machista da revolução. A militar torna-se a verdadeira juíza da revolução.
De onde vem a sua reflexão sobre a prostituição?
Da minha infância. Vivia numa fazenda no Brasil e houve um episódio curioso. Os meus pais viajaram e fiquei com um tio. Eu tinha quatro anos e ele, bonitão tipo ator americano da época, tinha 18. Levou-me a uma zona de prostituição ao longo da estrada, meteu-se numa confusão, veio a polícia e fugiu, deixando-me ali. E de repente vi-me sozinho com aquelas senhoras que me cuidavam. Só me lembro de um sofá vermelho e moças de fatos bonitos e cabelos compridos a darem-me boa comida e bebida. Anos depois soube que aquelas mulheres eram prostitutas. Vi muitos filmes do Fellini, e sempre tive um grande respeito por estas mulheres. Quando se vêem numa situação de filhos para criar, com pouca escolaridade, classe social baixa, como é possível julgá-las?
A personagem Rosa é uma trabalhadora do sexo emancipada, não tem nenhum dependente, é forte, com princípios, faz valer a sua palavra. Como aparece?
Em cada personagem misturo várias que conheci, a Rosa surgiu-me a partir de uma entrevistada. Era rebelde e muito forte, bem mais marginal e menos lúcida. A Rosa do filme é anarquista, põe em causa a autoridade, mostra o ridículo da disciplina militar. Ao longo do processo é ela que adquire mais consciência de classe, transforma-se numa revolucionária esperta. Não sei o que poderia acontecer-lhe depois do filme, mas com certeza não voltaria à prostituição.
O que aconteceu a estas mulheres depois dos campos de reeducação?
Os campos duraram praticamente dois anos. Algumas voltaram para Maputo, outras ficaram por lá, casaram com homens da região, fizeram família. Hoje têm cerca de 60 anos. A ida foi bem organizada, já a volta uma grande confusão.
É quase inexistente o confronto com a história recente do país, como se houvesse uma sacralização do período pós-independência que não permite mexer nas suas ambiguidades. Este filme vai ser problemático em Moçambique?
As pessoas não estão habituadas a ter uma visão crítica do passado, o que é essencial para evoluir. Não me interessam as consequências ou o feedback do filme, quero apenas mostrar e quando vejo uma história bonita, escrevo-a. Em Virgem Margarida, o contexto político existe mas não é o mais importante. O próximo filme vai ser a partir de um livro meu, O comboio de sal e açúcar, também mostra atrocidades de um lado e de outro da guerra civil.
Qual era o seu envolvimento político em 1975?
Trabalhava na Guiné-Bissau, só cheguei a Moçambique em 1978 e nem sequer conhecia o processo dos campos de reeducação, só passados dois anos é que se começou a falar disso. Mas à priori até acharia benéfico, na minha visão idealista da época, porque também dizia um não redondo à exploração sexual do colono às mulheres moçambicanas. Só depois, confrontado com as condições reais dos campos, percebi que é preciso mais do que boas ideias.
Em outros filmes seus mostra esta atenção para acontecimentos paralelos a grandes processos históricos, enfoque maior para a realidade rural de Moçambique?
Gosto do campo por estar mais relacionado com as tradições e porque percebo melhor os problemas das mulheres. A realidade urbana em geral é muito violenta, gostaria de contar histórias relacionadas com crime mas é difícil conseguir dinheiro para tal, precisamos de buscar coisas que toquem o coração dos financiadores.
Esta longa-metragem é a continuação do trabalho documental?
A minha formação é jornalismo, trabalhei na revista Versus, influenciado pelo novo jornalismo da escola americana. Na Guiné Bissau escrevia histórias da guerra numa perspectiva ficcionada. Quando vim trabalhar para o Instituto de Cinema de Moçambique foi fácil a passagem para o documentário. Há continuidade enquanto cineasta e escritor, pois os meus filmes estão ligados àquilo que escrevo, e a minha ficção vem do documentário. Tento criar uma linguagem particular para documentário com estrutura dramatúrgica de ficção. O Grande Bazar é uma ficção misturada com documentário, filmado no meio das pessoas. O Desobediência é um filme para televisão com dinheiro para realização de documentário. Inscrevi-o em festivais de documentário e negaram dizendo que era ficção. Depois ganhou o FIPA de ficção. Acabou por ser uma ficção por responsabilidade dos festivais.
Como foi dirigir uma grande produção com equipa técnica de múltiplos países e duzentas mulheres em cena?
Deve ter relação com a história da minha família com muitos militares, habituei-me a comandar as tropas. Gosto muito de dirigir, desde que haja um objectivo bem determinado, e uma ideia bem construída. Comparando com outros realizadores acho que não sou autoritário, ouço opiniões, deixo os actores improvisarem bastante, criando falas e cenas. É uma contribuição que espelha uma boa relação entre o realizador e os actores, ambos sabemos a ideia do filme e eles entendem como o estou a filmar. Não tenho receio de falar com 200 pessoas, quer dizer, sou tímido mas não posso mostrar. Havia dez nacionalidades diferentes envolvidas do começo ao fim do filme. Moçambique, África do Sul, Zimbabué, Angola, Brasil, Portugal, França, Itália, Alemanha, ex-Jugoslávia. Esta mistura de gente e estética podem criar o cinema de periferia, em oposição ao cinema americano em que é todo muito formatado.
Onde filmaram?
As filmagens foram feitas em vários locais diferentes do país, numa zona inóspita. Escolhi Sussundenga, na Província de Manica, no centro do país. O mesmo lugar do documentário A Ponte, reserva Chimanimani, onde fica o Monte Benga, o mais alto ponto de Moçambique. Descobri um rio maravilhoso, o Mussapa Pequeno, que escolhi pois precisava de um rio sem crocodilos onde duzentas mulheres nuas pudessem tomar banho. Fiquei maravilhado, nunca vi tantas mulheres bonitas tomando banho juntas. Filmámos fora da vila onde os homens não tinham acesso. Sempre gostei de trabalhar com mulheres, avisei logo que não queria fazer um filme sobre mulheres só com homens na equipa.
E as actrizes? Imagino que não tenha sido fácil para os maridos deixarem as suas mulheres irem para o mato gravar um filme sobre prostitutas…
Quase não havia actrizes profissionais. Explicámos-lhe tudo muito bem, pediu-se autorização. A Margarida Cardoso gravou a reunião com os maridos para o filme Licínio Azevedo – Crónicas de Moçambique.
O que pode trazer este filme para a produção audiovisual em Moçambique? Como foi o processo do filme?
Foi difícil e moroso. É uma produção bem conseguida mas um esforço enorme e grande luta da produção. É preciso ter nervos de aço para aguentar uma produção com dinheiro saindo aos pinguinhos durante anos, tudo a complicar-se e conseguir agilizar os compromissos. Isto acontece devido ao facto de Moçambique não ter fundos próprios para fazer cinema, de toda esta dependência do exterior. Quando pedimos sujeitamo-nos, não se pode fazer nada. Pondo na balança, o pobre paga mais caro. O nosso filme poderia ter sido feito com 500 mil dólares e gastámos um milhão apenas porque o dinheiro demorou, e por estar tudo atrasado paga-se mais caro. É uma falta de visão um país como Moçambique, que há uns anos tinha dinheiro para o cinema, negligenciá-lo hoje em dia.
publicado no jornal Público 10/9/2012