Found not taken, entrevista a Edson Chagas
Depois de muitos anos de fotojornalismo e longas estadias entre Angola, Portugal e Inglaterra, Edson Chagas parece ter encontrado o ângulo certo para trabalhar em fotografia: enquanto linguagem artística para pensar o mundo. Esta foi uma conversa de derivas pelo seu trabalho, o meio artístico e o interesse pelos vestígios dos lugares que nos pertencem.
Como reagiu a ser finalista deste tão prestigiante prémio na área da fotografia [Finalista do concurso Novo Banco Photo de 2015]?
É óptimo mas o tempo é curto para produzir um trabalho novo que será feito a partir de Luanda.
Fale um pouco da obra Found Not Taken. Reflecte sobre o consumismo a partir de objectos perdidos nas cidades…
A relação com o consumismo está presente no sentido de serem objectos produzidos, comprados e depois deitados fora. Mas também tem a ver com a própria relação que questionei por andar sempre a viajar: aos dois anos vou para Lisboa, com 6 voltei para Angola, aos 15 vou para Lisboa outra vez. Pensava muito em como é que pode uma cidade realmente pertencer-nos. A ideia surgiu no trajecto de casa para o trabalho, para a escola, no qual o encontro com esses objectos era muito recorrente. Daí surgiu uma interacção com os objectos, e a tentativa de fotografá-los de forma diferente.
Como começou este projecto?
Estudei em Londres, depois quando acabei o curso fui para Newport. Começou espontaneamente num Verão em Londres, quando vim de férias. Foi a partir da interacção pessoal com o meio onde estava. Objectos que encontrava, memórias de espaços: via uma parede e pensava para ali um objecto. Podia ser desde um copo de café até um armário. Trabalhei a relação de cor ou textura.
Qual a relação dos objectos com a cidade onde são encontrados?
São despojos que se encontram, que perderam a sua expectativa. Já não interessam, não se necessita, deita-se fora. Depois disso, como consegues processar. É a reciclagem mas não do material em si. Este trabalho tem a ver com estar na diáspora, em lugares onde me sinto, umas vezes mais, outras menos, relacionado com a cidade.
Estão em jogo o seu olhar como fotógrafo, o objecto fotografado e o vestígio da pessoa que passou…
E que depois vão criando memórias. Por exemplo, uma fotografia que tirei no Soho. Uma garrafa, depois encontro na parede uns resquícios, ligo-a a ambientes festivos. Há toda uma relação pessoal com o meio. No entanto, o objecto fotografado muitas vezes não tem relação com o contexto. Depois de passar muito tempo num determinado sítio, continua-se a sentir um vazio. Estava em Newport a estudar fotografia documental. Este trabalho ajudou-me a fazer o mapeamento de espaços que não iria visitar se não o estivesse a fazer.
Em Luanda recicla-se tudo, ao mesmo tempo há uma cultura da abundância. Como se passa de um extremo ao outro?
Tem a ver com a paz. Durante a guerra a maior parte das pessoas preservavam os objectos mesmo que já não funcionassem, hoje as pessoas têm mais poder de compra. O que também faz mudar os costumes de cada um. Passo menos tempo com os meus vizinhos e vice-versa, o mundo está mais busy.
Valorizava-se mais pela carência, as coisas eram mais preciosas porque caras e porque era difícil fazê-las chegar.
Antigamente não havia tantos carros e prédios. Entretanto houve uma abertura no mercado, produtos, importação, mais possibilidades, apesar da carência que ainda existe.
O consumo abala um pouco as relações humanas, na forma de sociabilizar? O que mudou mais?
Saí de Angola em 1992 e vim de férias em 2003, só voltei mesmo para viver em 2008. Foi como se estivesse a ir para um país novo. Houve de facto uma grande mudança. É parecido ao que Portugal viveu no pós 25 de Abril, as pessoas estavam muito fechadas e quando há a democracia surgem os corpos invisíveis, as coisas excêntricas. Como o cantor António Variações. Em Angola, celebra-se a paz que sempre se quis, há “festa” todos os dias, embora existam ainda alguns problemas.
Tem um modo de trabalhar como processo contínuo. Regressa a esses temas? Foi assim também com Oikonomos?
Estava a trabalhar num jornal económico, e acompanhei a crise mundial, a crise em Portugal e na Grécia. Os média têm uma forma chata de dar as notícias, de tal maneira que parece não haver solução. Numa expressão muito sincera apeteceu-me esconder, pôr algo na cabeça. Foi aí que pensei nos sacos. Comecei a colectar esses sacos, representativos de países que fazem trading com Angola, com um marketing muito peculiar. Num dos sacos relacionamos inicialmente com os EUA (ou em inglês USA), depois não tem nada a ver e está tudo escrito em português. Alguns têm mensagens em chinês. Outro diz world of hope e aparece o Ronaldo e o Messi e outras imagens no saco, como prédios no Dubai. Será isso realmente a esperança?
Aparece sempre um auto-retrato de cabeça tapada. Com isso também satiriza o estereótipo do africano?
Parece que África é uma marca e que cada um quer ser dono dessa marca. Hoje em dia é cada vez mais diverso.
Actualmente, essa percepção parece estar a mudar, com mais informação e aceite em relações menos interesseiras? Por exemplo, há um interesse generalizado nos artistas contemporâneos que promovem outra imagem que não a estereotipada…
Não acordo de manhã a pensar nisso.
“Já não estamos presos a nenhum cânone estético”, disse numa entrevista. Deixou de ser necessário combater esse preconceito?
Não me sinto preso. Mas algumas pessoas criticaram-me por ter usado máscaras, talvez por remeter para uma simbologia muito própria. Eu trabalho com algo que me crie dúvidas ou um certo estado emocional. Algo vivido nos dias de hoje. Se forem máscaras africanas assim será.
As suas obras têm sido bem recebidas nos circuitos internacionais da arte?
Mais do que o feedback, interessa-me falar do mundo que afecta a todos. A economia funciona globalmente. Angola importa muito, não possui muitas indústrias. A ver se minimiza a dependência do petróleo. Num mundo conectado, não estamos fora dos outros contextos.
Torna-se preocupante por não se ter investido noutros sectores?
Sim, era preciso diversificar. Qual é o fim? Exportar petróleo para importar? Vivo num país que tem muita força e economias muito complexas. Há uns tempos, nem sequer 30 por cento das pessoas usavam o banco. Parece-me que o princípio continua a ser o de acordar cedo, trabalhar e ver se, desse dinheiro todo que anda a girar, algum te entra no bolso.
O que acha mais irritante e mais fascinante no meio da arte?
No geral, chateia-me a demasiada politização da arte, ou melhor, o uso da arte para interesses políticos. O que mais me fascina é começar de novo e aprender mais uma vez…. há sempre um vazio a preencher.
E não sofre com a pressão?
Os artistas enfrentam sempre desafios. O meu trabalho não é para descobrir a pólvora, mas para interagir. É uma constante disponibilidade para ficar nu. Perceber os meus preconceitos, como funciono. Somos muito defensivos, quando estou a criar deparo-me com questões que pensava estarem resolvidas. É uma questão de aprendizagem, de encarar as coisas sem um porto seguro.
O que pensa de um certo entusiasmo de que há uma criação efervescente e grande pulsação artística em África?
Acho que sempre existiu
Mas agora tem mais visibilidade nos grandes centros de legitimação da arte. Funciona por tendências?
Quer dizer África? Sim, nesse sentido o mundo já girou atrás do novo mambo, agora África. Qual será a próxima big thing? Marte!
A geopolítica e questões económicas dos países pesam muito nas artes?
Sim, às vezes os artistas são menos considerados pelo seu trabalho do que pelo contexto, de onde vêm.
Trabalhou muito como fotojornalista.Tem saudades da adrenalina da actualidade?
Sim, mas a fotografia artística fazia ao mesmo tempo parte de mim. Hoje em dia sinto que o fotojornalismo foi importante como processo de aprendizagem. E de perceber o que realmente quero.
Em relação às questões técnicas, aprendeu muito com essa experiência?
Sim, está-se sempre sobre pressão. Há problemas de luz ou assim, tem esse lado também. Mas a fotografia é muito mais do que aquilo que podemos imaginar. Por exemplo, no World Press Photo, há fotos muito interessantes, mas fica-se só pela questão “é sobre isto” ou então a avaliar a técnica. O objecto fotografado quase que passa despercebido. O fotojornalismo começou a desinteressar-me. A liberdade de interagir com a fotografia sem seguir um padrão específico interessa-me mais.
Prevê trabalhar com outras linguagens?
Sim, a primeira experiência foi na Bienal de Veneza, que era uma instalação.
Como começou a trabalhar em fotografia?
Queria fazer filmes e vídeo, algo criativo, trabalhar em média. Mas, depois, no curso profissional de áudiovisuais que fiz no centro comunitário de Arcena, Alverca, o professor que deveria ensinar vídeo só percebia de fotografia. Interessou-me logo. Comecei a encenar fotografias com amigos. Depois fui para a EPI/Etic, durante três anos, estudar fotografia nas suas diversas vertentes. Entre todas interessei-me pelo fotojornalismo, pela ideia de poder conhecer outros sítios. Mas nessa altura sempre estive dividido entre o fotojornalismo e a fotografia criativa.
O jornalismo leva-nos a contactar com mundos incrivelmente diversos…
Sim, tanto podia estar no gueto como no governo. Andava a par de muita coisa, e em grandes discussões com pessoas. Mas fotografar sempre no mesmo formato é muito restrito. O bichinho estava sempre cá dentro, agora sinto-me mais à vontade com o que faço.
Em Angola há mais interesse pelas artes?
Os jovens interessam-se mais por arte, as pessoas vão a exposições e os olhos brilham. A Trienal de Luanda, a Bienal de Veneza geraram um certo movimento…[Chagas ganhou o Leão de Ouro de Melhor Representação Nacional com “Luanda, Cidade Enciclopédica” na Bienal de Veneza de 2013] Angola vai participar de novo na Bienal de Veneza, com cinco artistas. Estamos numa fase ainda de moderação em vários vectores, mas ainda não estamos a viver a ressaca.
E o ensino artístico?
Foram criadas já umas escolas de arte. Mas estamos sempre num limbo, as pessoas não comem arte. Angola tem esse paradoxo: um país que está a ascender, a crescer brutalmente, mas as prioridades ainda têm de ser o ensino, a alimentação. Só o facto de já haver mais apoio e interesse é incrível, só espero que não seja uma moda.
Refere-se a haver uma política cultural mais estruturada?
Que o Ministério da Cultura tenha estratégia e políticas culturais fortes para que não seja só folclore. Angola já não está em guerra. E a cultura é necessária para o progresso de qualquer povo. Não pode ser só pôr a tónica na “nossa cultura, a nossa identidade nacional”, mas algo que nos faça pensar para além disso.
Entrevista publicada originalmente no Rede Angola, 2015.