Paulo Flores, menino destino
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Feliz a iniciativa de Gabriel Baguet Jr., para quem a música de Paulo Flores “é um hino constante de emoção”, de celebrar a sua arte, entre amigos e admiradores e através do livro Paulo Flores: o Talento da Utopia. Como refere Jerónimo Belo no prefácio, o seu olhar “de jornalista e intelectual empenhado” tem vindo a conjugar “a defesa da memória cultural angolana com a aceitação dos temas e desafios urgentes que a mundialização das nossas vida comporta.” Já se tinha aventurado a escrever sobre dois grandes nomes, de Cabo Verde e Angola, foi o caso do ensaio «Um Olhar a uma Voz» (1990), dedicado a Cesária Évora, e a fotobiografia Óscar Ribas, a Memória com a Escrita (2008). Igualmente, no seu trabalho diário na RDP-África tem divulgado as boas ideias e iniciativas de artistas e pensadores que circulam por este mundo lusófono. A característica afectuosa de Baguet na sua relação com a cultura confere proximidade a tantas histórias que merecem ser contadas. É de louvar sobretudo o facto destas homenagens ocorrerem em vida, a tempo dos visados, para o bem e para o mal, se manifestarem. É uma forma de valorização e documentação de um processo inacabado de vida e obra, uma identidade em construção.
“Um verdadeiro cantor é aquele que traz na sua voz toda a extensão do seu sentimento, em Paulo Flores é instintivo, orgânico”, diz o fotógrafo baiano Sérgio Guerra, que produziu um dvd sobre o Paulo Flores, numa entrevista ao Baguet. Sabemos que é isso que nos arrebata ao ouvir Paulo Flores, a emoção que ele transmite e se prende à nossa história pessoal, transversal a todos, angolanos, caboverdianos, moçambicanos, guineenses, santomenses e portugueses. A sua música sente-se e é um sentir colectivo que ganha forma nessa voz, uma força de possibilidade, de sonhar uma Angola outra e ao mesmo tempo procurar perceber aquela que existe: suas falhas, bizarrias, resistências. Os poemas tão concretos na vida que retratam, mostrando o maior respeito pelas crianças, o povo e os mais-velhos, não deixam de satirizar as malambas da vida e o complexo ser angolano. A sua força poética é indiscernível da articulação das palavras com o ritmo, uma simbiose muito sua, que nos desafia para, como reforça o autor do livro, “em qualquer lugar do mundo reinventar a vida”.
Em Paulo Flores: o Talento da Utopia começamos por ver um rapaz nascido no maravilhoso ano de 1972, aos pulos na marginal de Luanda ou a pousar no seu Datsun cor-de-camarão sem ar condicionado, das tardes de domingo, a brincar no parque da ilha aquando das férias em Luanda. Noutras fotos um Paulo em miniatura em brincadeiras de moleque com a prima nas ruas de Lisboa, sob o olhar cúmplice da mãe. Fotos com o pai Cabé, companheiro de vida e inspirador dos projectos musicais. Da infância passamos de repente para um Paulo Flores que, aos 16 anos, surpreendia meio mundo como “menino prodígio que revoluciona a nova canção angolana”. Então aí está Paulo Flores ao lado de Bonga em décor anos 80, numa Lisboa nocturna frequentada por tantos outros músicos lusófonos onde foi crescendo numa busca pessoal e em diálogo constante com a sua Angola sempre revisitada. No livro temos acesso às várias capas da sua discografia, desde o disco inaugural Kapuete Kamundanda (de 1988), gravado nos estúdios da Rádio Nacional de Angola, com Eduardo Paim e Simons, a convite do poeta Carlos Ferreira (Cassé) até ao mais recente, experimental e brilhante, Ex-combatentes. Pelo meio ficam Coração Farrapo e Cherry, 1991, Brincadeira Tem Hora, 1993, Inocente, 1995, Perto do Fim, 1998, Recompasso, 2001, Xé Povo, 2003, The Best, 2003 e Ao Vivo, 2004 E, nesta viagem musical, de já vinte-anos-e-lá-vai-fumaça, nunca deixou de “procurar caminhos, sonoridades e novas abordagens musicais. Porque lhe interessa compreender a música também enquanto fenómeno social e a matriz dos sons, trabalhando para trazê-los aos nossos tempos de forma criativa. Por exemplo nas suas pesquisas para o mais recente projecto, Raiz da Alma, descobriu o ritmo da bossanova que se tocava nos Camarões na década de 40, investigou sobre a base rítmica do kuduro: vem do semba e da kazukuta?
É consensual dizer que Paulo Flores popularizou e recriou o semba, que se confunde com a sua própria voz tendo, com outros, reiniciado a música angolana, que passou a ser tocada nas festas e a ser motivo de orgulho, conquistando cada vez mais espaço. Como afirmou categórico Moreira Filho, da Banda Maravilha; “Paulo Flores não é apenas um músico talentoso, é uma pessoa de alma nobre, comprometido com a música e os músicos”. Esse compromisso passa por manter a inquietação e a humildade de aprender, não cristalizar numa fórmula de sucesso, ter sempre presente a sua esfera de intervenção.
Paulo Flores o talento da utopia é publicado pela dinalivros, com design de Neusa Trovoada, ilustrações de Helena Palma e quadro de Dília Fraguito, encontramos letras de alguns temas, fotografias de vários concertos, cartazes, iconografias várias, diversos artigos de imprensa e entrevistas, destacam-se os depoimentos de amigos, e admiradores, das várias latitudes de afecto, como Miguel Anacoreta Correia, os guineenses Manecas Costa e Waldir Araújo, Tito Paris, Eldmir Faria (Gú), o brasileiro Jaques Morelenbaum, o poeta Carlos Ferreira, o crítico de jazz Jerónimo Belo, a gestora cultural Paula Nascimento, a jornalista Luísa Rogério, o músico moçambicano Otis e outros fãs da nova geração, como a Laura Vidal da Conexão Lusofona. Todos têm uma relação pessoal com a sua música (foi a ouvir Paulo Flores que dancei com a garina, etc) e com a pessoa fraterna que é o Paulo. Reconhecem-lhe o talento, a sua capacidade de observação de cronista dos tempos modernos, nas “letras com uma forte memória territorial” como refere a socióloga Filomena Nascimento. São histórias de várias gerações, olhares nostálgicos, uns mais convictos que outros do rumo que Angola leva, que se unem nesta voz que está para lá das circunstâncias do que nos une e separa.
No talento da utopia que é criar, percorremos este pedaço de vida que – espante-se – tão jovem possui grande maturidade musical e nela se pressente a posteridade, como lhe confidencia o guitarrista Manecas Costa em tom familiar: “ainda és jovem, mas já exibes um vasto e rico conjunto de obras que estou seguro farão parte do património cultural e artístico da terra Angola que tanto amas”. Chamo aqui a voz sábia de Ruy Duarte de Carvalho que explica que “um percurso biográfico se faz de tempos, de lugares, modos, percepções, ocorrências, experiências, resultados, aquisições, perplexidades, digestões e ressacas”. Temos ainda, portanto, vários livros para escrever sobre Paulo Flores.