“O Estado angolano é muito violento, comete atrocidades”, entrevista a Sara Kambinga
Era outubro, na ressaca das eleições presidenciais, quando me sentei em Luanda à conversa com a jornalista Sara Kambinga para saber o que pensam as jovens mulheres da situação do país. Foi mãe adolescente, mas lutou muito para que a maternidade não interrompesse os seus sonhos, e aos 30 anos é mãe de três filhos. Sempre morou na periferia, do Kilamba Kiaxi para o Kazenga. Como muitos angolanos das províncias os pais, já falecidos, vieram do Kwanza Sul para a capital a fugir da guerra e à procura de trabalho. Muito cedo ajudava a mãe na venda de frutas, zungando banana pelas artérias da cidade.Com o dinheiro das vendas, decidiu apostar na sua educação, e hoje consegue trabalhar naquilo que mais gosta. Apresenta o programa “Construindo Cidadania”, realizado pela Mosaiko, com transmissão aos sábados na Rádio Ecclesia. Foi elucidativo ouvir as suas opiniões, vivências e reflexões sobre as dificuldades, desafios e ansiedades de ser mulher e mãe em Angola.
Como foi a vivência dos seus pais?
Eles saíram do interior do país para a capital no princípio dos anos 1970, à procura de trabalho e de melhores oportunidades. Quando chegaram, instalaram-se no Município do Rangel (periferia de Luanda), depois mudaram-se para o Palanca, onde nasci e cresci. A minha mãe vivia de forma intermitente entre Luanda e o Kwanza Sul, fazia negócios e andava sempre a viajar de um lado para o outro. O meu pai era enfermeiro, não trabalhava para nenhuma unidade sanitária, trabalhava de forma individual ajudando a comunidade, era uma espécie de enfermeiro voluntário, que ajudava as pessoas naquelas situações mais urgentes de alguma intervenção, ele ajudava de graça.
Como era a vida no bairro?
Era normal. Tenho lembranças de andar de cuecas pelas ruelas do bairro, uma zona pobre, que chamamos eufemisticamente de “humilde”. O Palanca é um bairro pobre habitado por pessoas provenientes de vários pontos do país e de África, principalmente dos dois Congos. Por causa dos conflitos que viviam nos seus países, muitos tiveram de escolher viver em Angola.
O que acha do sistema de educação em Angola?
O nosso sistema de educação ainda é precário e extremamente viciado. A falta de verbas para o setor tornou a educação uma área com muita corrupção, desde a iniciação até à faculdade, nada ajuda. Os outros setores não ficam de fora, quero dizer, há subornos em todo o lado, até para se conseguir emprego é preciso pagar.
Apesar de todas essas adversidades que exclui quem não tem dinheiro, a Sara vem de um meio pobre, e conseguiu chegar onde chegou.
É difícil, mas é possível. É preciso ser persistente, perseguir o sonho e ser resiliente. Prova disso é que já há muito boa gente a estudar, a trabalhar muito, pessoas que conhecem a importância da formação, pessoas que têm de terminar o ensino médio ou mesmo a faculdade, de se dedicar, caso contrário ficarão pelo caminho. São estas pessoas, as que se dedicam com afinco, que realmente conseguirão responder às expectativas do mercado, embora exista ainda a barreira do escoamento de profissionais em algumas áreas.
Um exemplo prático na área de comunicação, onde temos um mercado fechado: nunca vi um concurso público para ingressar na TPA [Televisão Pública de Angola], ou na Rádio Nacional, instituições públicas voltadas para a comunicação. Temos as privadas que também respondem às próprias agendas e têm poder para selecionar quem lhes convém. São poucas as privadas que fazem algum tipo de casting ou concurso para admitir pessoas, logo, tem que ser sempre por amiguismo ou corrupção: procuras alguém, reúnes condições económicas, pagas a alguém com algum poder para conseguir empregar-te e pronto. Há também bons profissionais a trabalharem nas televisões públicas e privadas, profissionais empenhados, embora prestem serviços em órgãos comprometidos com o Partido Estado.
É ainda mais difícil para as mulheres do que para os homens? Apesar de haver cada vez mais raparigas com qualificações e competências.
Hoje em dia há muito mais mulheres a acederem às escolas do que antes, não havia o espaço que a mulher tem hoje. Isso fez com que nos impuséssemos e chegassemos profissionalmente mais longe, apesar de, em larga escala, ser ainda os homens a liderar nas empresas e nos cargos públicos. O nível de desequilíbrio é enorme.
O chamado “teste do sofá” [assédio sexual] ainda existe em quase todas as áreas e em todas as profissões. Ainda se objetifica muito o corpo da mulher. Isto é um problema que queremos combater, pois sabe-se muito bem que a maior parte da população angolana é feminina. A luta é fazer com que a mulher ocupe cargos e mostre a sua competência profissional e que não se verifique isso apenas na capital, mas em todo país.
Reconhecemos que, por hoje, temos universidades em quase todo o país e que agora o problema tem sido o acesso, visto que muitas percorrem quilómetros para acederem à mesma. Outra questão é que muitas mulheres, quando ficam grávidas ou criam família, têm de parar de estudar, em alguns casos até de trabalhar para se focarem simplesmente na família, muitas vezes têm de abortar os seus próprios sonhos.
Até porque a maternidade recai mais na mulher…
O cuidado recai sempre para as mulheres. São elas que amamentam, que têm de dar os primeiros cuidados primários e quase sempre fazer a gestão da casa, infelizmente isso acaba deixando-as para trás. Se encontras uma mulher com dois filhos, um trabalho que lhe dificulte [a vida] e ainda ter de estudar, ela vai deixar de estudar, porque não tem como, ela tem de pôr os filhos em primeiro lugar.
E a alternativa é pedir a outras mulheres para tomarem conta, continuar a subalternizar a mulher.
Essa alternativa de pedir a outras mulheres é também quando se tem condições para pagar a outras mulheres. Há imensas mulheres que têm que trabalhar triplas horas e não têm como arranjar alguém para auxiliar. O dinheiro que ela ganha durante o dia não justifica outros pagamentos e custos, acabam sendo elas mesmas a fazer tudo. Por vezes, o marido nem compreende a ideia de que a família é responsabilidade dos dois. Não entende que há necessidade de contribuir com a limpeza, com as tarefas de casa. Infelizmente, acho que esse é um dos principais desafios que as mulheres enfrentam.
A mudança de mentalidades e de estrutura…
Essa estrutura patriarcal e machista está muito enraizada entre nós. Os homens podem estudar, podem fazer faculdade, mestrado e doutoramento, ter contactos com outras realidades, podem estar abertos a outras coisas, e não prescindem desse privilégio. A ideia de submissão permanece, a mulher como a única cuidadora do lar.
Podem até tecer um discurso feminista, mas só na teoria.
Sim, às vezes até os pró-feministas! É muito estratégico. Eles vêm com a ideia do pró-feminista, de pessoas que estão ali e compreendem as nossas lutas e não sei quê, mas, quando assumem o “papel” de marido, a história é outra.
Como é que uma feminista consegue fazer essa luta na sua vida privada?
É das coisas mais difíceis de fazer, a luta dentro e fora de casa. É preciso ter um certo cuidado, afinal, somos todos consequência do mesmo sistema. Nós abraçamos uma luta, mas compreendemos a nossa realidade, temos de contextualizar o nosso discurso também. Se formos muito agressivas e radicais acabamos tendo resultados contrários. A pessoa tem de perceber que está a defender uma coisa que não faz sentido para a maioria, para poder convencer a outra pessoa de que há necessidade de mudar, que as visões já não são as mesmas, porque ninguém precisa de ser como antigamente. Já não há matas para caçar e a mulher já não precisa de ficar atrás porque não tem nenhum leão. Então, é um processo infelizmente lento, há coisas que já não precisávamos de estar a discutir e que deviam ser da compreensão de todos.
Como, por exemplo?
A questão do cuidado. Não devia ter de provar ao homem que ele também tem de controlar um bebé que é dele, que ele também pode faltar ao serviço para levar a criança ao posto médico, que ele pode preparar a comida, pode cuidar da casa. Que, por exemplo, a ideia de higiene e de nos alimentarmos não é por sermos homens ou mulheres, mas porque somos humanos, e temos essa necessidade humana. Para mim, é uma luta árdua, porque tenho um marido doutrinário, cujos pilares da sua educação estão assentes nos dogmas culturais. Ele foi tendo consciência da ideia de ajuda mútua, que é necessário que os dois lutem para o desenvolvimento do lar aos poucos. Então é preciso mostrar que as coisas podem tomar um rumo diferente, mas é preciso haver diálogo.
E depois a informação, a sobrecarga da logística… Temos de antecipar que nada falta ao filho, o médico, as vacinas, a escola. Coisas pequenas acumuladas que ocupam o nosso cérebro de tal forma que nos tira a disponibilidade para pensar e ser criativas.
Uma mulher e dona de casa tem de ser criativa, embora que às vezes nos falte tempo para tal. Há sempre a sensação do atraso, de pouco tempo para nós mesmas, mas temos de nos desdobrar para pôr o comboio nos carris, mas quando se tem um parceiro que ajuda as coisas ficam mais facilitadas. Cada dia é um novo tempo e uma nova luta.
Como relaciona as suas questões de trabalho com questões de género?
Quando entrei para a rádio senti que era aí exatamente onde poderia expor as minhas ideias, e criar debates em torno desta questão. Acho que o género não define as nossas competências, as pessoas ou são boas ou são más no que fazem, então, sempre soube lidar bem com isso. Tive a minha primeira experiência na Rádio Tocoísta, uma rádio religiosa. Sempre que havia atendimento público encorajava as mulheres a serem fortes e a se imporem nos lugares onde estão. E na Mosaiko também.
E tem muita influência também pela palavra?
Sim, a comunicação tem poder, enquanto lidava diretamente com os ouvintes fiz muita coisa, conseguia interagir mais com mulheres, dar mais voz às mulheres e passar a ideia de que podem participar, que têm potencial para participar e conseguir contribuir a partir de onde estiverem. A rádio dá-nos essa oportunidade de desconstruir determinados conceitos que já não ajudam no desenvolvimento da sociedade.
No início foi complicado discutir temáticas ligadas ao género, mas, à medida que fui me profissionalizando, ganhando espaço na instituição, fui também abordando mais temas que ajudaram as mulheres a se abrirem e a terem outras informações além das que recebiam em casa ou nos espaços que frequentavam.
Na realidade angolana, a mulher religiosa compreende que a questão do lar é uma questão de reserva espiritual, logo, cabe à mulher cuidar bem do seu marido. É um espaço onde ela dá mais de si e, com isso, não consegue dedicar-se a si mesma, não consegue fazer uma aposta individual e acaba por ficar para trás. Nós incentivamos as mulheres a se ajudarem a alcançar outros espaços, além de serem mães de família e esposas.
Acaba por ser mais uma prisão, não sei se é bem a ideia só de “cuidar”.
É esta caixa que existe, então temos de moldá-la ao nosso jeito.
O lar é um lugar protegido e as mulheres têm medo de arriscar. E o feminismo?
Sermos feminista ainda não é algo muito aceite, as pessoas têm um conceito errado sobre o feminismo. Para mim, particularmente, a ideia é mais ajudar a própria mulher a não se anular, a ir atrás dos seus sonhos e a conquistar a sua autonomia .
Mas o que evoluiu desde a criação da Ondjango Feminista, 2017, para cá?
Já demos passos, o tempo muda a forma das coisas. Sobretudo a ideia de que as feministas não são pessoas que querem ser ou ocupar os lugares dos homens, o facto de mais mulheres agora perceberem que existe uma luta diária contra todos os sistemas de opressão à mulher e que devemos ter mais sororidade entre nós. Mudou também a forma como algumas instituições olhavam para o movimento feminista. Até já tivemos eventos do Ondjango a passar na televisão pública, há poucos anos era quase impossível. Mudou a visão das pessoas, agora, pelo menos aceitam que existem feministas.
E que não são nenhumas bruxas.
Claro que não! O problema está na percepção do conceito de feminismo que as pessoas possuem. Acho que a consciência da necessidade da mudança está a começar, no princípio foi mais difícil. Há dois meses aconteceu o lançamento do 5ª Informe do Tuba, Ondjango, sobre violência obstétrica, este nível de ativismo, com base em estudos, tem dado maior consistência ao Ondjango e ajuda a cumprir bem o seu papel para a mudança de consciência.
As mulheres vão dar à luz e morrem assim…
Infelizmente morre-se muito nos partos em Angola, temos uma Saúde que precisa de ser repensada e melhorada. Projetos são muitos, mas a questão é a prática e a forma como as organizações abordam estas questões. Há descaso sobre a saúde sexual e reprodutiva da mulher.
Este ano tivemos o primeiro OGE [Orçamento Geral de Estado] sensível ao género, mas ainda assim não foi suficiente para melhorar o sistema de saúde, principalmente em maternidades e centros materno-infantis. Programas e projetos são muitos, sempre pecam na prática.
Mas a negligência em relação às mulheres no parto e na gravidez é inserida em algo maior, no descaso sobre a saúde pública, não é uma coisa isolada.
Mas a mulher é mártir disso tudo. Por exemplo, quando em Portugal se deu o caso da senhora que faleceu, a ministra Marta Temido pediu demissão, na mesma semana aqui uma jovem morreu à porta do hospital e até agora nunca se sabe o que aconteceu, ninguém diz nada, nem uma nota do Ministério [da Saúde] ou da Presidência e fica assim. Uma mulher grávida que vai dar à luz nunca sabe se vai voltar ou não.
A Sara também sofreu uma história forte de negligência obstétrica, não foi?
Sim, a minha irmã morreu no parto, estou traumatizada até agora. Aconteceu há seis anos, mas, para mim, é como se tivesse acontecido ontem, fico com raiva. Ela era minha madrinha de batismo e morreu na mesma época em que fui batizada, e esses casos nos hospitais infelizmente até hoje acontecem. Aquela semana foi uma semana muito intensa para nós.
Eu ajudava em algumas coisas que ela precisava para comprar, ela estava bem, era o segundo filho, embora existisse uma diferença de doze anos para o segundo parto, mas estava tudo bem. Ela estava com os pés inflamados, estava com oito meses, foi ao hospital para ser avaliada. A equipa médica só precisava receitar alguma coisa. Ou colocá-la em descanso, mas os enfermeiros internaram-na sem informarem a família. Às 17h, deram-nos a conhecer que ela precisava de sangue, pois havia dado à luz, mas, entretanto, estava com hemorragia. “Deu à luz, como assim se ela tinha oito meses apenas?” Doámos sangue. Às 18h disseram-nos que ela estava a receber sangue e durante a noite perguntámos como é que ela estava. Às 5 horas ela já se encontrava na lista das pessoas falecidas e o bebé também acabou por falecer.
Como é possível uma mulher grávida partir assim, sem justificação plausível? E ninguém diz nada, ninguém faz nada, como se a vida não valesse nada. Pode-se morrer agora e ninguém fará nada. Mesmo que faças denúncia, no mínimo tens de ter dinheiro ou influência. Foi a morte mais absurda da minha vida. É tão difícil uma pessoa encaixar a morte de alguém próximo, ela estava tão bem. Em Angola, viver é mesmo um milagre.
Quais são, para si, as questões mais urgentes na violência contra a mulher?
A violência obstétrica é muito urgente, o índice de mortalidade materno-infantil durante e pós-parto é muito elevado. As mulheres morrem assim todos os dias, “tipo nada.”
Teve medo durante os seus partos?
Sim, nas três vezes. Vou só contar episódios curtos e específicos. Na primeira vez que fui dar à luz no hospital, cheguei às seis horas e dei à luz às onze. Enfim, sofri algum tipo de violência psicológica, mas era nova e era a minha primeira experiência. O pior foi que, durante o período que lá passei, a energia tinha ido, não acreditas que cinco ou seis mulheres que estavam no bloco operatório, duas acabaram por morrer. Não conseguiram restabelecer a energia a tempo, e morreram. Isso é uma coisa que está na minha cabeça até hoje.
Há muita carência de recursos, não é?
Sim, praticamente tens de levar tudo: luvas, álcool, algodão. Não há mesmo condições. No segundo parto foi a questão do abandono. As pessoas ficam sozinhas nas salas de parto, as enfermeiras abandonam as salas constantemente. Há casos em que, quando aparecem, a mãe já está com o bébé nos braços. Não perguntam se precisas de alguma coisa, não te estendem a mão. Não podes levar o marido, as salas são minúsculas e tudo aberto, por vezes são mais de dez gestantes numa única sala.
Pode-se, por exemplo, partilhar uma cama solteira com mais de dois ou três bebés e as mães ficarem sentadas, porque não há camas suficientes nos hospitais. Não há vontade política nem agenda, o governo não fala sobre isso. O orçamento não é sensível ao género, ainda que tenha alguns indicadores, pode até haver um programa específico para assistência a mulheres grávidas, mas na prática não funciona. Por outro lado, há pessoas que têm de andar quilómetros para encontrarem uma unidade sanitária.
Apesar de tudo as mulheres da sua idade e mais novas têm mais consciência e mais ferramentas para se defender?
Não tanto, porque a questão de género ainda não é um tema muito aberto, tanto para a escola como para a família. Melhorou o facto de termos mais mulheres no sistema de ensino, na política e noutras áreas e cada vez mais vamos ganhando espaço. Hoje em dia a tecnologia também facilitou as coisas, as adolescentes já têm smartphones, já podem pesquisar, ter informações por estas vias. Melhorou pelo facto de termos mais informações. A comunicação melhorou muito, e se calhar é das principais ferramentas que nós temos, porque agora faz-se muito ativismo nas redes sociais, que até certo ponto tem surtido algum efeito. As redes sociais têm sido o maior portal de pressão.
É uma luta mais globalizada e cada contexto tem as coisas urgentes, não é? Se umas estão a discutir as questões da linguagem, outras estão a discutir as mortes.
Vão surgindo cada vez mais mulheres organizadas em grupos, criando projetos coletivos para despertar as pessoas. Há muita mulher ligada ao ativismo e ao empoderamento, e mesmo algumas associações trabalham nestas questões, como o Mosaiko (onde trabalho), o Coletivo Ondjango, o Unidas Somos Mais Fortes, onde a questão de género também é muito patente.
E no mundo rural também está a mudar alguma coisa?
Em termos de movimentos, não sei dizer muito bem. Estive com as mulheres da plataforma Mulher em Ação, falámos exatamente sobre a questão da mulher rural. Há um peso excessivo sobre as mulheres, desde responsabilidades laborais à responsabilidades da família. Há grupos, cooperativas, que vão sendo criados em algumas zonas. Por exemplo, a ADRA tem isso na sua agenda como principal ferramenta de trabalho, agora é necessário que o nosso governo crie políticas eficazes.
Como vê a situação em Angola, e a sua vida nos próximos tempos?
É um estado de muita precariedade, que requer mudanças, e isso vê-se na forma como o povo lida com o governo, principalmente nos últimos anos e nas últimas eleições [em 2022]. Quanto à minha vida, há muitos desafios, e sei que estou no caminho certo.
Consegue dizer isso publicamente?
Normalmente tenho revelado as minhas abordagens em público e em privado.
Já é uma grande abertura dizer isso.
A liberdade de expressão está consagrada na Constituição, no seu artigo 40.º, desde que não se ofenda e não falte ao respeito a ninguém. Por exemplo, os resultados do último pleito eleitoral não foram satisfatórios para mim e manifestei-o publicamente.
Sentiu um ataque ao exercício de cidadania? Mas há mais consciência política?
Temos a questão da censura cada vez mais forte, acredito que é uma coisa que vai piorar, porque o governo não tem muitas aberturas. Vai fechando cada vez mais o ciclo, não há abertura total para as pessoas dizerem o que pensam e sentem. E eu dizia que tinha muita expectativa, porque a mudança do governo poderia significar alguma coisa. A realidade mostra que as coisas continuarão na mesma, ou que ainda podem piorar, então acho que temos de começar a pensar que não se pode continuar a sofrer. A mudança não pode só vir das estruturas do governo, deve partir de nós. Com essas eleições percebi que existe nos angolanos uma consciência coletiva, afinal partilhamos os mesmos problemas e as mesmas dores e esta mesma consciência deve persistir para que se possa fazer a diferença e a mudança.
O Estado é muito violento, comete atrocidades, falo por exemplo das mortes de zungueiras (vendedoras de rua, comércio informal) que ocorrem constantemente nas ruas da cidade e de activistas presos arbitrariamente. As pessoas têm medo do sistema, a luta é árdua.
Mas houve uma grande expetativa.
Sim, no princípio deu sinais de abertura e criou-se muitas expectativas. Tinha na agenda o combate à corrupção e que terminaria com uma série de cancros que enfermavam o país. Agora vê-se que as coisas tendem a piorar.
É o mesmo estilo de governação?
Não há absolutamente nada de novo. Estamos cada vez menos esperançosas. E depois de não conseguirmos alternar neste pleito, não sei se a oposição poderá vir a ter a mesma força que teve neste, mas vamos acreditar que sim. Foi para mim, uma decepção, na minha perspectiva, esse era o timing. Esperamos que a UNITA se reinvente e não caia novamente na maquilhagem política do Partido Estado.
Apesar da longa cultura de autoritarismo.
Infelizmente os média facilitam todo esse processo, nem imaginas. Há um controlo total dos órgãos estatais, que distorcem as informações e este autoritarismo persiste até hoje. Ocorre-me até hoje a possibilidade de emigrar, de ir tentar a vida noutro território, fugir um pouco desta realidade, que eu sei que não se compara com as dos outros. Angola, como se diz, não é país para cardíacos.
Se pessoas como Sara vão embora, vai-se esvaziando a massa crítica do país.
Esvazia sim, mas somos muitos por aqui. O país não motiva, os muitos que saíram de outros países formados, para buscarem oportunidades cá em Angola, poucos tiveram sucessos. O país não atrai, esbulha os seus, por isso aumentou o número de pessoas que emigram para o exterior. Por aqui, é quase tudo compadrio.
Mas ser uma peça fundamental pode motivá-la. Quantos filhos tem?
São três, dois rapazes e uma menina. E olha que não é fácil manter a educação dos três. Primeiro porque não é fácil inserir os filhos no sistema educativo público, segundo, no setor privado as propinas são muito caras. Há escolas privadas que as propinas rondam os 250 mil kuanzas [euros?] ou mais, e o salário mínimo nem cobre a cesta básica.
Faz um programa na Mosaiko, que se chama “Construindo Cidadania”. Conte um pouco.
É um programa que aborda diversas questões sociais, políticas, económicas ou culturais na vertente de direitos humanos, a sociedade a partir das leis que regem o país e o mundo. O programa procura compreender através dos convidados como são implementadas as políticas públicas, bem como analisar a forma como a camada juvenil se impõe na sociedade através das várias ações que desenvolvem nos vários domínios do saber. É um mundo que me completa!
Os angolanos estão psicologicamente em baixo?
Em termos comparativos e com dados específicos, não sei dizer. Mas temos muitos problemas mentais em consequência da carência. A luta diária, a pobreza extrema às vezes deixa-nos esgotados e várias vezes frustrados, falta de afeto principalmente para com as mulheres, a sobrecarga acaba connosco. Então, se virmos nesta perspectiva sim, psicologicamente estamos em baixo. Falta-nos a doação do amor e o ato de se compadecer com as dores do próximo.
Em que é que se traduz essa insatisfação?
Não é fácil a rotina do angolano, ele sai de manhã e volta no final do dia, todos os dias. Isto eleva o nível de stress e faz com que respondamos mal às crianças e gritemos com elas, primeiro pelo stress laboral depois devido às dificuldades financeiras, ao péssimo transporte para chegar a casa.. Mas conseguimos ultrapassar e recomeçar o novo dia.
Não é uma coisa ontológica que as pessoas sejam agressivas é a sociedade que as faz assim. Como se tivessem de ser sempre fortes.
Toda sociedade é fruto das suas políticas. São estas políticas que são reproduzidas no dia-a-dia. Os comportamentos que reproduzimos hoje estão politicamente ligados à forma como se concebeu o Estado, por via de turbulências e sem nenhum projeto eficaz. Logo, ontologicamente falando, nós somos frutos das várias vicissitudes sociais e desestruturação familiar que assolou o país, por intermédio da guerra civil, e a falta de coesão social e de projecto de nação, após o término da guerra.
Como foi a sua infância?
Tive uma infância difícil, não muito boa para uma criança, devido às correrias e responsabilidades do dia-a-dia. A minha mãe era vendedora e, na maioria das vezes, eu andava com ela pelas artérias da cidade vendendo os produtos. Quando ia para as outras províncias, deixava-me aos cuidados das minhas irmãs mais velhas. A minha mãe vendeu muitas coisas nesta vida, mas o negócio que mais vendeu foi banana de mesa. Com o auxílio da minha tia Victória traziam-nas em camiões desde Benguela, Uíge, e outras províncias, e era repartida com as colegas e depois vendida a retalho nos mercados.
No mercado mesmo ou andava na “zunga” (vender na rua)?
Eram mesmo mercados informais e também se zungava. Por aqui a palavra mercado resume-se a tudo, mas na altura não havia ainda os mercados que temos hoje, refiro-me a infra-estruturas, as que havia contava-se pelos dedos. A ideia do mercado é mais um espaço de “descanso”. Tens um momento de manhã a circular pelos bairros, depois páras num sítio, colocas o negócio, vendes aí um período e depois segues de novo, porque a ideia é ir sempre ao encontro dos clientes para poder vender mais, esse é o benefício da zunga.
Imagino que seja uma vida muito cansativa e exigente.
Sim, são muitas horas por dia. Sou a caçula de cinco irmãos, conhecia de olhos fechados como funcionava a sua rotina. A minha mãe levantava-se às cinco da manhã para voltar ao final do dia. Entretanto, foi com o irmão do meu pai, a quem chamo de pai até hoje, como orienta a cultura Banto, que comecei a me forjar como pessoa lúcida. O papá grande, como era chamado, tinha uma pequena explicação, a chamada escola de reforço no nosso quintal. Nos primeiros anos em que podia estar na escola, estava lá porque não havia condições para me matricular na escola pública ou numa privada. Isso fez com que ingressasse na escola muito tarde, com 12 anos. Entrei a frequentar já a terceira classe e tive de estudar muito e sempre fui boa aluna.
Porque se dedicou aos estudos?
Para quem vem de uma família pobre, a dedicação é uma ferramenta essencial. A importância da escola e dos estudos já era patente, lembro-me que estudava dois períodos, de manhã e de tarde. Resumindo, dividia o meu tempo entre a escola pública e a explicação do Papá Grande. Na escola pública, ao frequentar a terceira classe, já era mais esperta, tanto que o professor ficava tão admirado com o meu desempenho e prontificou-se a conhecer a minha família. Tudo isso porque eu já tinha feito o trabalho de casa, a explicação já me tinha moldado.
Acredita que a educação é a ferramenta para a ascensão social?
Sempre tive consciência da necessidade de estudar, para melhorar a minha condição de vida e não perpetuar a pobreza extrema em que vivíamos. Depois de frequentar o ensino secundário, tentei algumas vezes fazer a faculdade na área da comunicação social, mas acabei por entrar no curso de Psicologia que sempre tive como segunda opção. A minha rotina foi sempre estudar e trabalhar. Atualmente sou finalista do curso de Psicologia, que tinha suspendido por causa da pandemia. A minha rotina é cansativa, tenho ainda que me deslocar do Mosaiko até ao Instituto Superior de Ciências de Saúde, afeto à Universidade Agostinho Neto, e o percurso é muito longo.
Quais são os seus momentos de descontração e de lazer?
São pouco, mas tenho sabido aproveitá-los quando posso. Costumo a sair com os filhos, ainda que poucas vezes. Eles já têm uma certa autonomia. O caçula tem sete anos, a mais velha catorze e o outro está com onze. Saímos às vezes em família e damos voltas pela cidade, nos pontos turísticos para desafogar o cansaço dos dias.
No meio da panela de pressão da luta de sobrevivência, onde encontra a beleza, para além dos filhos?
Gosto muito de música, adoro ver concertos. Acho que faria música se tivesse mais disponibilidade e talento. Se fosse possível ou se tivesse tempo frequentaria um curso para aprender a cantar e tocar um instrumento. Também gosto de andar de bicicleta, de ler um livro. São coisas que me ajudam muito e me dão boa disposição. Também gosto de produzir os meus programas, apresentar propostas de trabalho, descobrir notícias e criar debates.
Tem-se cuidado?
A Psicologia fez-me ver a vida de uma outra forma. Tenho tido muito cuidado comigo mesmo e tento fazer boa gestão da minha vida emocional. Tento não misturar a carga horária de trabalho, o cansaço e stress com os assuntos de casa. Não ficar muito stressada quando posso ficar mais descontraída, mais acessível para as crianças e para outras pessoas. Não é uma gestão fácil, mas é possível. Poucos de nós têm tempo para brincar com as crianças, a mulher começa a fazer trabalhos da casa e quase não tem tempo para pensar em muitas coisas. Quem tem disponibilidade mental depois de trabalhar dez horas por dia? E esse stress se reproduz também nas escolas, porque por vezes, tanto o professor como o aluno nem têm comida em casa. Afinal os salários ainda são de miséria.