Quero aprender contigo, sobre o filme "A Visita e um Jardim Secreto" com a pintora Isabel Santaló

“Quero entender. Quero aprender contigo, quero aprender com a tua experiência. Quero saber como te sentiste, aquilo que te aconteceu…” Com estes pedidos quase infantis e sinceros, Irene M. Borrego aproxima-se da sua tia, a pintora Isabel Santaló (1923–2017), e é esse gesto de escuta, tão vulnerável quanto determinado, que estrutura A Visita e um Jardim Secreto (2022), um documentário que nos instala num espaço íntimo, inacabado e relacional. Mais do que um filme sobre a pintora espanhola, desfia livremente o mistério de uma mulher, sem o desfazer e um mistério que permanece é o dos quadros: nunca os vemos, nunca entramos no quarto onde, talvez, estejam guardados.

Isabel Santaló pertence à geração das mulheres artistas espanholas que ousaram desafiar a moral franquista. Em tempos de ditadura, recusar o casamento, estudar Belas Artes e viver para pintar eram gestos muito irreverentes. Nos anos 50 e 60, Isabel Santaló chegou a ter visibilidade no meio artístico, até internacionalmente, mas depois, desapareceu. Como tragada pela Terra, a sua obra tornou-se invisível, e o seu nome, desconhecido para o sistema institucional da arte.

A realizadora interroga a razão desse apagamento, questiona persistentemente, mas sem pressão. Há um pacto de silêncio e de discrição. Santaló não se deixa filmar como relíquia, nem aceita ser uma figura trágica ou vítima, recusa até tornar-se “personagem” da sua história. Ao longo do filme, vai-se revelando devagar: nas pausas, nos gestos meticulosos do quotidiano, no modo como dobra uma toalha ou serve um café, e no modo como recusa responder a perguntas que tocam a dor da exclusão, o seu percurso artístico ou a solidão do presente. “Uma mulher de trinta e tal anos pede-me para explicar isto agora?”, pergunta ela à sobrinha, com uma certa amargura, talvez ressentimento, mas sobretudo muita dignidade.

É essa recusa que transforma o filme numa “antibiografia”, nas palavras da própria Irene M. Borrego. Em vez de alinhar factos ou de encadear feitos, prefere o espaço do não dito, o jardim secreto onde a arte se guarda sem ser explicada, o silêncio onde a memória se suspende que é também uma resistência à espetacularização e devassidão das biografias. O que vemos é uma mulher de noventa anos, isolada com o seu gato, cuidada por outras mulheres.

Santaló está consciente de ter sido apagada, mas nunca se coloca numa posição de vítima. “Entendes o que significa a palavra serva?”, desafia a sobrinha. “É que tu tens medo. Esse é o problema.” Pelos diálogos entre tia e sobrinha vamos percebendo o gap geracional, nas lutas, na linguagem, no peso da experiência. Santaló recusa a ideia de ter sido mantida “em rédea curta” – essa expressão só faz sentido para alguém que nunca soube o que é realmente resistir.

O filme toca, com delicadeza, uma das questões centrais do feminismo na arte: Porque é que não há grandes mulheres artistas?  e «se existem, porque não têm o devido destaque?» pergunta Linda Nochlin (1931-2017) no seu ensaio de 1971 (VS edições). Nochlin percorre a História, regista as convenções sociais que sempre impediram as mulheres de terem destaque nas artes, e desmonta a ideia de genialidade artística como atributo masculino e denuncia os mecanismos de exclusão que apagaram tantas criadoras do cânone. Não teve a ver com o talento de artistas mulheres, mas com o preconceito de género que as secundarizou ou esqueceu. O silêncio de Isabel Santaló, as suas recusas, os seus gestos meticulosos, o seu quotidiano comedido são também uma denúncia ao injusto, aleatório e efémero e mundo da arte. Onde de facto não é o talento a pautar os preceitos de reconhecimentos, veja-se o caso de Santaló, como uma obra mesmo persistente e rigorosa, pode simplesmente desaparecer, como se nunca tivesse existido.

A história da arte – como nos demonstram Linda Nochlin, e também Filipa Lowndes Vicente no seu livro A arte sem história: mulheres e cultura artística (séculos XVI-XX), de 2012 – tem sido assim construída a partir de omissões sistemáticas. As mulheres foram deixadas de fora porque o sistema estava montado para as excluir. Se não estavam nas paredes dos museus, era porque supostamente não tinham qualidade. Mas isso era a consequência, não a causa.

A ausência das mulheres foi naturalizada pelas instituições: programas de ensino, exposições, crítica. A Visita e um Jardim Secreto inscreve-se nessa genealogia crítica, mostrando-nos que “elas” existiam, mas que o tempo – e as instituições – trataram de esquecê-las num sistema que não tolerava a independência feminina. No filme imaginamos o que seria a vida em Espanha na ditadura, o que seria tentar ser mulher livre nesse contexto. 

A figura de Isabel Santaló torna-se, então, uma das muitas artistas que foram apagadas não por falta de valor, mas por falta de lugar. 

O gesto de reparação e recuperação da sobrinha é muito interessante pela recusa, como já referido, de nos dar tudo, acabando por revelar também essa ferida do esquecimento e a crueldade de um presente, quando já ninguém parece saber “quem foi” esta artista, e é só mais uma idosa isolada em casa com o gato e os seus rituais de velhice.

O filme é construído a partir de vozes quase laterais: a da realizadora, das cuidadoras e do pintor Antonio López, único colega artista que ainda se lembra de Isabel em atividade e que “valida” a qualidade da sua obra e a sua própria existência pública.

Mas são a mulheres cuidadoras, silenciosas, pacientes, que têm aguentam o mau feitio e os silêncios – que mantêm viva a sua memória afetiva. “Sabes quem eu sou? Fui importante.” Santaló vai lembrando a cuidadora do seu passado, não  lamento, mas como afirmação.

Este gesto de recordar, sem recorrer a arquivos nem a especialistas, aproxima o filme de práticas curatoriais feministas, como o que se vai fazendo com a publicação de diários e correspondências esquecidas de artistas. É uma arqueologia íntima, em que os escombros do passado não são restaurados, mas respeitados. 

Assim, o filme não é apenas sobre uma artista esquecida, mas também sobre velhice e solidão nas cidades. Sobre os corpos femininos que envelhecem, isolados, e que, mesmo esquecidos, continuam a afirmar a sua presença. É também sobre o modo como as famílias conservadoras silenciaram mulheres como Isabel – e como a arte feminina, tantas vezes, teve de sobreviver em segredo.

Por isso, a ausência de contextualização histórica no filme não é uma falha, mas uma escolha. O que vemos e ouvimos vem dela própria, ou de quem dela cuida. Não há narração, nem mapas, nem voz-off. nem cronologias. Há apenas o tempo presente e a brutalidade do tempo que acaba por apagar tudo.

O filme nunca responde ao que aconteceu ao espólio de Isabel Santaló. Talvez se tenha perdido. Talvez esteja fechado no tal quarto onde a câmara não entra. Talvez ninguém o tenha querido. Mas a ausência física da obra é também parte do discurso do filme: a arte que não se vê, mas que existiu, pela urgência de quem a fez, não pautada por modas ou refém de expectativas e por reconhecimento. Uma arte que agora já não tem nada a provar.  Apesar de tudo, Isabel continuou a pintar até muito tarde. Com rigor, com exigência, com tempo. A sua pintura, hoje quase desconhecida, baseava-se num processo minucioso, profundamente interior. A sua criação passava pela procura «era ir atrás do desconhecido», «de algo que pressente».

A visita da sobrinha desdobra-se numa longa escuta, devolvendo-nos, com pudor e firmeza, a complexidade da criação feminina e da exclusão estrutural de mulheres na história, sem sucumbir aos moralismos. Não podemos esperar que A Visita e um Jardim Secreto repare uma injustiça histórica desta e de tantas mulheres artistas, nem reabilita Isabel Santaló para o cânone, resgatando o que não se deixou resgatar. É um filme que respeita a escolha do silêncio, a opacidade de quem já não precisa de explicar-se. Mas talvez componha uma arte com uma história – como defende Filipa Lowndes Vicente – feita de gestos pequenos, de memórias frágeis, e de vozes que não se calam, mesmo quando escolhem o silêncio. E de transmissão, de outras mulheres antes de nós que nos fortaleceram, que abriram caminho para nós. Como Maya Angelou lembrou para não nos esquecermos da força que temos em conjunto. Ao lutar pela nossa própria voz, estamos a abrir caminho para todas as outras mulheres.

Assim os conselhos para uma jovem artista: aceitar os erros, ambicionar, não temer o fracasso e a falta de dinheiro, ir-se abrindo, aceitar, acreditar no próprio trabalho e, com raiva, valentia, encontrar a sua própria arte / voz. «Tens de sentir raiva, por enquanto ainda não tens. Tens uma raiva de mau génio, de mal-educada, ainda não vejo a raiva, a verdadeira raiva. Porque a raiva verdadeira é humilde. Ser valente expõe-te a morrer de asco. É isto que eu pretendo: chegar à arte sem que seja a de ontem, a de amanhã ou o que quer que seja».

 

Excerto de um diálogo entre a tia e a sobrinha:

Isabel Santaló (IS): Dentro das poucas possibilidades que eu tinha, ia atrás do desconhecido. Não é o suficiente quanto te digo que a minha postura era ir atrás do desconhecido?

Irene M. Borrego (IB): Não entendo o que me queres dizer.

IS: Ah, porque é algo que tens de fazer, tens de compreender… Há quem escolha um caminho e que o segue sem parar… e há quem diga… Bem, primeiro tens de te formar bem, não é? Porque é preciso estar-se muito bem formado e depois vais atrás do desconhecido. Esse é o caminho de um verdadeiro artista.

IB: Mas eu não sei como fazer isso. Não entendo! O que é um verdadeiro artista?

IS: O que é um verdadeiro artista? O que é um verdadeiro… Esse… Aquele que simplesmente expressa… a força de não ter segurança naquilo que faz… que vai atrás de algo que pressente… e que quer encontrar não sabe bem onde, mas que não está dependente nem de modas nem de nada. Essa é a postura de um verdadeiro artista.

IB: E tu nunca entras no quarto? Nunca entras naquele quarto? Nunca entras no quarto?

IS: E para que é que vou entrar?

IB: Para veres os teus quadros.

IS: Estão lá tapados. A mim não me interessa ver os meus quadros, interessa-me fazer, ir em frente.

IB: Porque não vem ninguém visitar-te? Porque é que ninguém te visita?

IS: Porque tive uma vida muito solitária, porque me sujeitaram.

IB: Não percebo.

IS: Ah, por Deus!

IB: E porquê…? E por que razão não tens todos os teus quadros?

IS: Já chega!

IB: Quero entender.

IS: Queres entender? Entende o que é a vida em Espanha, o que é ser mulher… e aquilo que eu tive de viver. Muito consegui eu!

IB: (…) Quero aprender contigo, quero aprender com a tua experiência. Quero saber como te sentiste, aquilo que te aconteceu…

IS: Então olha… odeio a nossa família. Parece-te normal que me olhem com desprezo só porque pinto? Qual foi o meu pecado? Estudar Belas Artes? Isso é um pecado? Parecia que tinha ido trabalhar para um bordel, para me tratarem assim. Essa foi a minha vida… Terias aguentado se fosse contigo? Irene, tu ainda és muito jovem. Tu ainda não viveste.

IB: Porque nunca te casaste?

IS: Porque não queria viver como uma serva.

IB: Podes explicar melhor?

IS: Uma mulher de 30 e tal anos pede-me para explicar isto agora?

IB: Sim, quer dizer. Eles mantiveram-te sob uma rédea curta…?

IS: Apenas alguém mantido em rédea curta faz essa pergunta. Entendes o que significa a palavra serva, não? (…) É que tu tens medo. É esse o problema.

IB: O que é necessário para alcançar a arte?

IS: Isso não te consigo dizer. Não há regras. Estás órfã. É algo que tens de ser tu a encontrar.

IB: Como?

IS: Trabalhando, pensando… aceitando que te enganas, sonhando que vais lá chegar. Por vezes cerrando os dentes e aceitando tudo o que te apareça. E não temer o fracasso e a falta de dinheiro. E tens de te ir abrindo, abrindo… abrindo, abrindo, abrindo. Isso é tudo! Tens de estar aberta a tudo. Aberta a fazer erros e a aceitar isso, a pensar que o que fazes é bom e está num bom caminho, mas ao mesmo tempo aceitar que podes estar enganada. Isso é algo que tens de ser tu a fazer. Tens que sentir raiva, por enquanto ainda não a tens. Tens uma raiva de mau génio, de mal-educada, é o que vejo. Mas ainda não vejo a raiva, a verdadeira Raiva. Porque a Raiva verdadeira é humilde. Ser valente… Ser valente expõe-te a morrer de asco. É isto que eu pretendo: chegar à Arte sem que seja a de ontem, a de amanhã ou o que seja. Apenas Arte! Entendes agora?

IB: Acho que sim.

IS: Irene, porque dizem que temos alma? Porque pensam que se temos alma, que não morremos? Porquê?

IB: Não sei.

IS: É isso o que tens de procurar.

 

A VISITA E UM JARDIM SECRETO
La Visita y Un Jardím secreto
65 min. | DCP 2k | Castelhano | Coprodução Espanha & Portugal | 2022

Cedro Plátano. 

por Marta Lança
Afroscreen | 18 Julho 2025 | Irene M. Borrego, Isabel Santaló, mulheres artistas, pintora