Tem viagens e tem fugas, pela África do Sul com Ruy Duarte de Carvalho

1. Esta foi uma viagem à África do Sul em treze dias e seis mil quilómetros. Viagem redonda de Joanesburgo a Joanesburgo, do interior à costa pela outra costa, deixando de fora a província do Cabo Oriental, berço de lutadores anti-Apartheid, ainda assim presente nas histórias.

Ruy Duarte de Carvalho, escritor e cineasta angolano, que deixou recentemente este mundo para ir lá falar aos mais-velhos sobre as coisas que andou por cá muito tempo a tornar visíveis, foi o grande impulsionador da viagem e o guia deste relato. A comitiva era a seguinte: o Luhuna, que ia recolhendo numa câmara materiais de observação direta; o Miguel, certeiro nas impressões e navegações espaciais; e as Martas – avivando a conversa, gerindo a logística da viagem. Ninguém, à exceção do Ruy, sabia grande coisa sobre a África do Sul para lá das suas tensões recentes. 

Dentro de um carro ao longo de dias a fio, desde cedo até ao fim da tarde, mãos rotativas ao volante, pneus a rasgar as boas estradas sul-africanas, olhos maravilhados e exaustos de reter as paisagens – a cada solidão um monte ou deserto preferido –, e acabamos por aprender qualquer coisa da complexidade deste país africano que andou nas bocas do mundo por motivos do futebol e da persistente violência. 

No interior do carro há uma voz que se ouve mais do que as outras. O Ruy está contente e só se cala esporadicamente para fixar um pormenor da paisagem e depois dizer coisas como «a vida ou se escreve ou se vive», citando Pirandello, ele que fez tão bem ambas as coisas.

ruyruy

2. «E agora… vamos fazer mais como?» Foi este, no Dockanema de Maputo, o título do ciclo dedicado a Ruy Duarte de Carvalho, em setembro de 2009. A viagem pela África do Sul conjeturou-se de antemão em Portugal, mas num cozido à portuguesa na Baixa de Maputo apurou-se os pormenores. Uma viagem espraiando-se nas mudanças de relevo, animais, campos de pastagem, cores e brilhos que vão ocorrendo na paisagem: a sua adaptação morfológica ao clima e a metafísica que nos faz empatizar com ela. Uma viagem atenta à história das várias expansões e colonizações do país. Uma viagem que seria a origem, com base nos materiais recolhidos e nas conversas semeadas, de As Paisagens Efémeras, Atas de Santa Helena, um livro (e um possível filme) que ficaria inacabado. Ou não estivesse a viagem inscrita em tudo o que fez.

Integrada num projecto maior, a viagem pretendia problematizar o processo de ocidentalização do mundo e os seus efeitos, com enfoque no espaço atlântico. Que relações existiram entre europeus e populações locais? Que fenómenos desencadearam? Isto tudo pelo gosto de entrelaçar tempos. De ver naquilo que é já passado, apenas vestígio, matéria de conjetura histórica. De encontrar os traços do antecedente na imagem presente e nas projeções do futuro.

3. O Ruy traz leituras e considerações, enche o espaço de referências e pensamento, de paisagens efémeras e propícias, de figuras da história. Conta episódios da vida, e anedotas também. Fala no feminino quando conversa com as raparigas. «É uma narrativa sólida e quente que transforma a paisagem da África do Sul em nostalgia», há-de escrever um de nós. A África do Sul é um país bizarro, pensaremos. Transe crítico da história moderna de África.

Angola, onde sempre regressou apesar dos últimos dois anos a viver em Swakopmund, na Namíbia (para estar mais perto do deserto do Namibe, sua casa), é tema recorrente e ligação forte naquela cumplicidade dos territórios do coração. Enquanto como uma pizza na barragem Gariepdan, abro o seu último livro, A Terceira Metade, obra que infelizmente passou ao lado da crítica, e tropeço nisto: «enrolados para quem não pára – porque não pode, não quer ou não sabe, tal como nós estamos todos desde há muito ao corrente – são os caminhos das voltas que a vida dá, como são os que no sono levam sempre aos mesmos sonhos recorrentes.»

 

4.  Pernoitamos em Vinburg, uma cidadezinha de atmosfera Twin Peaks no interior do Free State onde os bóeres, brancos camponeses, geralmente enormes, vivem e são senhores. O bóer é uma produção da África Austral, havemos de saber no decurso da viagem.

a comitiva das 'paisagens efémeras'a comitiva das 'paisagens efémeras'

Na guest house, um bancário bêbado pergunta-nos, meio em inglês meio em africânder, crioulização da sua língua materna holandesa, se estamos a falar russo. Ao pequeno-almoço, a serviçal roliça diz que vai casar em março e que está muito feliz. «A minha mãe diz: vai sempre atrás do teu marido.» E ela foi, e agora serve salsichas com ovos e carne agridoce a endinheirados rurais.

A guest house é um mausoléu das guerras anglo-bóeres, ainda que gloriosa para os bóeres tenha sido só a primeira, porque a de 1903 levou à anexação das suas repúblicas do Transvaal e do Orange Free State à colónia britânica do Cabo, ao que parece com a ajuda de armas europeias da Revolução Industrial. Os bóeres não gostavam da autocracia britânica que degenerava as tradições holandesas, e nem sequer os protegia dos ataques dos xhosa. Até então, já haviam fundado a república de Natália, após a batalha de Blood River de 1838, em que derrotaram Dingane, um dos chefes zulus, mas viriam depois a perdê-la para os ingleses, assim como algumas plantações de cana-de-açúcar.

Interessa saber que já havia uma sociedade colonial, e o país estava ocupado por brancos. Os bóeres declaram a República da África do Sul, com Pretória como capital, em 1854. E em 1910 é fundada a União Sul-Africana, que só se extinguiria em 1994 com fim de hediondo Apartheid.

5. É mais ou menos nesta altura que a história de Shaka Zulu vira piada. Afinal, ficamos a saber que o durão era gay, segundo o livro de um jornalista que trazemos na mala do carro. Shaka foi homem de grandes feitos. Antes de ser assassinado (1828) ergueu, com muita estratégia militar e dureza combativa, um império da etnia zulu que ensombrou os desígnios coloniais britânicos. Por sua vez, a expansão do estado zulu e o desarranjo social provocado pelo tráfico de escravos a partir do sul de Moçambique, além de secas e fomes entre o final do século XVIII e o princípio do século XIX, estiveram na origem de movimentações massivas de populações que convulsionaram a África Austral.

big holebig holebig holebig hole

Motivo da grande quezília entre britânicos e holandeses foram as minas de diamantes encontradas naquele território. Na pequena localidade de Kimberley, visitamos o turístico Big Hole, uma rocha diamantífera cavada para extrair o famoso kimberlito, composto por minerais de alta pressão formados a trezentos quilómetros abaixo da superfície terrestre. Ali montaram uma espécie de reprodução da vida mineira com barzinhos e lojas, e enchem-nos de explicações sobre diamantes (os quilates, as cores, a sua raridade) descobertos em 1867 por crianças em brincadeiras. O homem por detrás da mina é Cecil John Rhodes, co-fundador da poderosa companhia De Beers. Abandonou a fazenda de algodão em 1871 para gerir as minas de Kimberley, e chegou a membro do Parlamento com políticas que serviram tanto o império britânico como os interesses dos mineiros.

KimberleyKimberleyKimberleyKimberley

6. De expansões e opressões. «Foi um tempo, esse, em que aventureiros, desesperados, diplomatas expeditos e arrivistas fundaram repúblicas e impérios um pouco por todos os descampados do mundo, incluindo para os lados das califórnias e das patagónias… para os brancos, munidos das suas leis e fazendo tábua rasa de todo o direito que não emanasse deles, o mundo estava devoluto.»

Vamo-nos inteirando das disputas e ocupações, sangue e mais sangue, tudo isto não há muito tempo atrás. «Demorou muito até chegar aqui, a este último canto do continente, e mesmo da terra toda, a que se foram alargando várias correntes migratórias, gente a vir de fora para ocupar e controlar esses territórios segundo os seus interesses, quer dizer os recursos que aqui lhes cativavam, e perturbar assim, ou a submeter ou a dizimar os que já cá se encontravam.» Vem na Terceira Metade, mas podia ser o Ruy a falar connosco, que escreve como fala e fala como escreve, com reticências e assertividade, sem que tal pareça contraditório.

 

7. Com uma costa imensa, a África do Sul tornou-se apetitosa para a expansão ocidental, mas a sua ocupação é tardia: deserto, falta de condições para comércio e práticas esclavagistas.

«Quando foi finalmente objeto dessa vaga ocidentalizante, ofereceu o espetáculo de um vasto território de fronteira a ser em simultâneo acometido pela expansão dos brancos e pela dos bantos», estes que não gostam que os lembremos que também foram invasores.

Os bantos desceram desde a África Oriental, iniciando a sua interminável expansão, por sua vez desencadeada pela explosão demográfica que a banana trazida pelos malaios que colonizaram Madagáscar provocou. Ironias e conjurações da história. Ocupações contemporâneas que remetem para os problemas atuais: a terra é de todos, foram chegando cada um com os seus motivos e têm de aprender a conviver, às vezes numa paz podre, às vezes numa guerra infinita.

As várias populações que compõem o país não prosperam todas ao mesmo tempo, e isso provoca muitas dependências e explorações. Ruy explica nas notas de viagem:

«Uns grupos, e certos indivíduos dentro da cada grupo, mesmo se só à escala da família, começam a prosperar primeiro, muito antes dos outros e sempre e ainda senão à custa de outros, a nível da dinâmica interna e da relação externa…. e os outros, para virem a prosperar também, há-de ser de uma maneira ou de outra só a reboque desses, ainda e sempre…. e tem uns que parece surpreenderem-se, e se insurgem e denunciam… mas então não é isso que é próprio do sistema que todos afinal aceitam e em que se integram e é nele que se exprimem a partir do lugar que ocupam na luta tentando ganhar pontos, conquistas, dentro do sistema?»

No carro enumera tantas etnias e ramificações dos povos – sangue no sangue no sangue – que já vamos todos baralhados. Pode-se falar de alguns povos indígenas, mas nunca autóctones. Os hotentotes, que são vermelhos e tinham avós pastores que, com a instalação dos holandeses na baía da montanha que deu origem à Cidade do Cabo para servir de apoio às rotas comerciais da Índia, tiveram de mudar de vida. Já os antigos sãs, bosquímanos, franzinos e exógenos, então caçadores e recoletores, não gostaram nada da instalação dos bóeres que lhes acabaram com a caça ao trazerem o gado para a pastorícia.

crianças hotentotes crianças hotentotes

 

7. Apesar da África do Sul ser esse melting-pot de «raças» muito fenotipicamente marcadas, e onde podemos resgatar os vestígios de ocupação humana de idades recuadas, está em curso a produção de um mestiço universal, genética e culturalmente.

«O pleno mestiço do devir universal, afeiçoado pelo modelo branco expandido e imposto à escala do mundo».

O que sobreviver a isto manter-se-á apenas sob a forma de cristalizações e folclores, porque a  diferença será extinta, digerida e consumida. Nisso há «desagrado, agravo, pela diferença que vai ser, já está a  ser cultivada e que, além de cristalizada, ou por isso mesmo, é kitsch. Não é?!»

Mais um cigarro e a viagem prossegue.

8. Direção: sul. Depois das paisagens áridas do semi-deserto Carru, onde os pensamentos aquecem, aproximamo-nos do mar. O movimento do interior para a costa é de encontro e de desaguamento. Port Elisabeth tem baleias e golfinhos ao largo e zonas de comércio que parecem a Disneylândia. Segue-se um grande troço de costa com vegetação mediterrânica até entrarmos na província do Cabo da Boa Esperança. Diretos ao extremo mais a sul de África, onde se misturam os oceanos Índico e Atlântico. Perguntamos where is Cabo das Agulhas?, mas ninguém entende, até que percebem que queremos dizer Agalhas, o lugar onde as bússolas se desnorteavam. A anglicização dos conceitos e da língua faz parte do que nos traz aqui.

cabo das agulhascabo das agulhascabo das agulhascabo das agulhas

Terra de revelações, de pedir desejos e afogar mágoas, «uma visão extrema e abismal de inapreensíveis oceanos», é o poeta Ruy que escreve.

No dia seguinte a um jantar num restaurante de portugueses fugidos das ex-colónias portuguesas, dispersos por toda a África do Sul, seguimos caminho. A Cidade do Cabo surge emoldurada pela montanhas. É num backpacker da Long Street que se dá a longa conversa acerca do movimento neo-animista que o Ruy propôs criar, com a nossa ajuda.

A partir daqui ficamos com matéria de reflexão e ação para a vida. Eis algumas pistas soltas: o Império contém a sua própria crítica. É preciso criar ilhas de resistência e outros paradigmas que denunciem, critiquem e ofereçam alternativas ao paradigma humanista e ao progresso. É preciso dar voz a narrativas silenciadas ou ignoradas por outras dominantes. Temos de procurar teses, utopias, literatura e imagens para dizer várias vezes a mesma coisa até esta coisa se tornar simples. Tudo se joga na diferença da economia do equilíbrio ou economia do crescimento, obrigada a crescer sempre, sob pena de colapsar, como está a acontecer agora.

Comemos carne de caça num dos bons restaurantes da zona e um velho faz-nos hesitar: terá saído da guerra anglo-bóer ou do Senhor do Anéis? É um elfo com enormes cabelos e barbas brancas num corpo pequeno e magro e dança como borboleta em frente ao trio de mestiços que toca jazz. O Cabo continua uma cidade de boa música e gente bizarra.

Cidade do Cabo Cidade do Cabo Cidade do Cabo Cidade do Cabo Cidade do Cabo Cidade do Cabo

 

9. Regresso pela costa. Subimos a costa com uma pontinha do Calaári que ligará à Namíbia. Os vales imensos de castanho e verde, enormes fendas na profusão da natureza e a sua violência própria. O Ruy identifica a phynbos, a vegetação característica deste lado atlântico (comum à Patagónia e  ao lago Vitória).

Springbok é zona de flores, mas falhámos por pouco o florir primaveril dos prados. O amarelo-torrado cobre a pedra. Cheira a esteva. Ficamos num albergue perto das montanhas. É propriedade do pai de uma velhota de olhos azul-british que nos recebe, cabelo apanhado a descobrir as rugas, com um caniche e muitos retratos. Os rapazes sobem o monte para filmar o pôr-do-sol.  

KnyshaKnysha

Mas nunca se filme o sol de frente que a câmara pode estoirar, tal como os olhos podem cegar. O Ruy fica no lugar do braai (grelhador) a fumar cigarros com o seu ar vigilante de lobo do mar. Eu leio o Disgrace, do Coetzee, no cimo de uma rocha. O jardineiro com cara de khoisan avisa para termos cuidado com as cobras, que é hora de dormirem e não gostarão de ser incomodadas.

Um bater de asas, um réptil que passa, uma brisa.

Pergunto sobre o que lhe ficou da viagem à África do Sul. Pela acumulação de veld, nome que se dá aos grandes espaços rurais, escreve Marta, «tratei de fazer o que tinha de fazer: dar lugar em tempo real ao tique crónico de dar sentido e continuar a garantir a vida suportável». Foi muito tempo à conversa com o mais-velho, com quem tanto aprendemos, que pergunta «Que viagens poderão dizer-se réussies? Aquelas em que tudo “corre bem”, ou as outras, recheadas de imprevisto e de aventura?». Marta evoca ainda a interioridade da viagem, «sairmos de nós mesmos, em viagem descentramo-nos com mais intensidade, tornando tudo matéria que relacionamos com a nossa experiência e preconceito.» 

KarooKarooKarooKaroo

 

10. A viagem transcorre no mapa e o país permanece no chão. Uma última noite nas margens do rio Orange, em Upington (nome do primeiro-ministro da então colónia inglesa do Cabo), mais uma das muitas cidades de abastecimento agrícola que parecem a mais profunda América que eu nunca visitei.

Regressamos pela imensa estrada até Joanesburgo, passando pelos quarenta quilómetros do grande township Soweto. A extração do ouro para os bolsos do Estado e empresas continua imparável. Confirmamos a facilidade com que se faz turismo na África do Sul, sobretudo em vésperas do Mundial de futebol: boas estradas, serviços, comida, tranquilidade, reservada a insegurança para as grandes cidades, simpatias, poucos percalço, o bolso não sai muito desforrado. We can´t wait, let’s go 2010!, gritam eufóricos os cartazes, com o cuidado de colocar rostos de várias colorações no país multirracial de tão sensível questão. Não fosse a cartografia tão demarcada dos townships onde continua um forte Apartheid de negros pobres, com focos de indignação para receio dos ricos, num país onde são assassinadas cinquenta pessoas por dia, e o presidente Zuma a ordenar à polícia «atirar para matar», o país de Primeiro Mundo está preparado para receber os turistas e os futebolistas.

 

11.  Acabou a viagem. O escritor parece abatido, na sua permanente incomodidade física da alma. Não sai do quarto zulu da última guest house. Cada um de nós, cada caranguejo irá para o seu buraco no dia seguinte: Maputo, Namíbia, Portugal e Brasil. Um jovem zimbabuense recolhe as beatas dos cigarros que fumamos juntos entre risos. Numa viagem destas acabamos por ser todos indispensáveis, e isso resume bem uma ideia de harmonia, efémera, como tudo o que é interessante neste mundo, como as paisagens.

No jardim continuo a ler o Coetzee. Conta precisamente como as pessoas da África tribal emigraram para as cidades em busca de trabalho, estabelecendo-se num meio urbano novo e assombroso, ao qual ele chamaria de forma irónica «uma dádiva europeia a África». O mundo em que nascemos é o nosso mundo, tudo o que há agora é, para esta geração, inquestionável. Conhecer a história de um lugar com a profundidade para ver o seu passado em palimpsesto por baixo do seu presente é importante, apesar de quase absurdo. Porque «a história só tem vida se lhe derem um poiso na nossa consciência».

Esta viagem foi esse lugar.

 

 

 

fotografias de Luhuna Carvalho, Miguel Carmo, Marta Mestre e Marta Lança

artigo publicado inicialmente no Ipsilon, Público, agosto 2010.

 

Luhuna e RuyLuhuna e RuyLuhuna e RuyLuhuna e Ruy

 

por Marta Lança
Ruy Duarte de Carvalho | 8 Novembro 2010 | Africa do Sul, apartheid, bantu, boer, estrada, Ruy Duarte de Carvalho, viagem