Explica lá outra vez o que é que ser português?, ópera de Dino D'Santiago
fotografias de Bruno Simão
É notável que, no mesmo fim de semana, dois dos mais consagrados palcos da cidade tenham apresentado espetáculos (completamente esgotados) de artistas ligados a Cabo Verde: Marlene Monteiro Freitas, nascida em São Vicente, com o espetáculo “Nôt” e Dino D’Santiago, pais naturais da ilha de Santiago, com a ópera “Adilson”. Ambos, particularmente admiráveis, vão ao coração dos grandes problemas do nosso tempo - imigrantes, guerra e narração.
Importa corrigir a informação que alguns jornais têm repetido: não foi Dino D’Santiago o primeiro a criar uma ópera crioula. Já em 2008 estreava no CCB a magnífica Ópera Crioulo, do coreógrafo António Tavares e música de Vasco Martins, ambos cabo-verdianos, com a participação de Sara Tavares.
Foi um bom augúrio começar o ano a ouvir Dino D’Santiago em Sines. Vestido de branco, emanava do palco junto ao mar a sua boa energia à terra onde o pai morou quando chegou a Portugal. Para uma plateia vibrante de cabo-verdianos lembrou os muitos ilhéus que vieram trabalhar para o porto de Sines. Sines é uma décima primeira ilha de Cabo Verde, tal como a Cova da Moura, Quarteira e tantos lugares no mundo onde gentis crioulas preservam e transformam as culturas.
Assisti ao ensaio geral da ópera Adilson cuja estética e encenação são visualmente poderosas, o que reforça a narrativa. Do ponto de vista técnico, destaco a coesão entre música (com orquestra), voz e cena, o que não é fácil nestas grandes produções. Mas foi o mote do espetáculo o que mais me cativou, um assunto que traduz a grande vergonha do sistema português: colocar pessoas em posição de desvantagem por marcadores raciais. E não haver maturidade no reconhecimento das reparações necessárias face a um presente injusto para os filhos bastardos do império.
Adilson é a história de um crioulo sem chão. Amigo de infância de Dino, o bailarino Adilson Correia Duarte, conhecido como Bonny e no bairro como Dafos, chegou a Quarteira com onze meses mas continua estrangeiro no país onde aprendeu a andar e de onde só saiu uma vez. Adilson nunca provou a pitanga de Angola, nunca pisou Cabo Verde, e é dos três lugares ao mesmo tempo sem vínculo formal a nenhum deles. Angola, Cabo Verde, Quarteira são, assim, uma tripla pertença sem reconhecimento.Como tantos outros filhos de imigrantes, vive neste paradoxo: «Nunca lá fui, sempre estive aqui onde sou estrangeiro».
A peça percorre esse limbo, herança direta da lei proposta por Almeida Santos, em 1981, que passou a dar mais peso ao princípio do jus sanguinis (direito de sangue) do que ao jus soli (direito de solo), fechando portas à nacionalidade portuguesa a muitas pessoas, sobretudo mestiças e negras que vierem das ex-colónias, e aos seus filhos nascidos e criados cá. A mudança desta lei da nacionalidade só acontece em 2020, fruto de uma longa luta do movimento anti-racista. Até então todos os que não foram reconhecidos como portugueses experimentaram a exclusão social e burocrática, tratados como estrangeiros no país onde sempre viveram e sem acesso a direitos básicos (bolsas de estudo, programas sociais, saúde, viagens, oportunidades de trabalho). Esta exclusão, por sua vez, alimentou a discriminação racial e institucional, porque a nacionalidade funcionava como barreira adicional num contexto já marcado por racismo estrutural. Muitos conseguiram nacionalidade já adultos, após processos demorados, entre caducidade de residência, mudanças institucionais (SEF - AIMA) e inúmeros imprevistos.
Quando se ouve em cena o mantra burocrático “passaporte, certidão de nascimento, processo cancelado”, percebemos como a vida pode ser triturada por papéis, entre erros do sistema, confusão de papelada, saga entre Embaixadas, polícias de fronteira, agentes da AIMA, discursos oficiais que vendem integração ao mesmo tempo que a recusam, agências que prometem ajuda mas que exploram a fragilidade, mudança de regulamentos. Basta um erro no preenchimento para voltar tudo à casa zero, num jogo que esgota a paciência e subtrai créditos de vitalidade. Os Adilsons da vida vivem de esperar.
A peça desvela a violência suave e impiedosa da burocracia: quando um problema se resolve, outro nasce. E satiriza reiteradamente: “Estamos aqui para dificultar” ou “a nossa utilidade é dar procedimento ao trabalho inútil”.
Em Portugal é cada um por si, nem sempre deus por todos, canta o cota Bonga. E em Portugal é possível existir um afrodescendente residente há mais de 40 anos sem nunca obter a tão desejada cidadania portuguesa, acessível a ricos por dinheiro e aquisição de casa.
Estamos no Terminal Partidas de um aeroporto. Interessante escolher-se um aeroporto como cenário. É um não-lugar, mas também um espaço de amor, de muita ansiedade e medo. O palco é feito de fronteiras invisíveis, de guichets que decidem destinos, de polícias de fronteira que sabem dos esquemas, das agências que exploram o desespero, dos falsos documentos que custam fortunas. O dinheiro circula no tráfico, nas fraudes, nas entradas clandestinas.
Assistimos a diálogo de angolanos, em calão mangolé carregado de candengues, avilos e cumbú. Ao longo da peça, desconstrói-se o rótulo de “outro”, nas encruzilhadas geográficas e emocionais e identidades entrelaçadas. É impossível não sentirmos indignação com a indignidade, xenofobia e racismo que imigrantes e filhos de africanos e brasileiros têm de enfrentar num país desde sempre emigrantes, que agora manda os mais vulneráveis «para a sua terra». Cá nascidos ou não, o insulto é pura ignorância porque somos todos de todo o lado, somos feitos daquilo que trazemos, das curvas do bairro. Os nossos corpos são pátria, diz uma das personagens desfazendo a ideia mesquinha de identidade ligada a lugares concretos. Aliás, a frase «Eu não sou português, sou Portugal» valeu a Dino D’Santiago vários comentários de ‘haters’ e ‘bots’ de extrema direita.
A violência quotidiana é exposta em poesia e ironia: «Vais de comboio ou de céu?», «Dá-me uma morna para esquecer esta dor», «Sonhei que eras amigo de um polícia» e até a t-shirts falam «Funaná é o novo Funk». O texto é todo em rima, como um canto de resistência em fogo lento na revolta. O espetáculo rompe, assim, com o mito da integração: a realidade é feita de esperas, recusas e silêncios e mães que morrem no desgosto antes de verem resolvidos os processos burocráticos. Nesta história pessoal inscreve-se a de muitos crioulos sem chão, que carregam Portugal às costas, sempre em dívida de nada, sem nunca pertencerem plenamente.
Na peça faz-se muitas pergunta-se: O que é que me espera do outro lado do mar?, A luta chama, será que eu vou? De que lado estou? E, no tom meio ameaçador, Mas afinal quer ou não quer ser português?
Lembrei-me da banda Miss Universo, que parecem responder a esta pergunta com outra mais interessante «Explica lá outra vez o que é que ser português?»
O Estado teima em traçar limites que não se escolheu, e aos quals não se sabe responder.
As interrogações vão sendo cantadas pelaos intérpretes, como transeuntes num lugar entre partidas e chegadas. Dino abre a porta a quem não pode partir, dá corpo a vozes que Portugal insiste em empurrar para fora, e expõe um país à espera. De justiça, de coragem política, de habitação digna, de ensino para todos, de acabar com a segregação de bairros onde o Estado se ausente, à espera de um futuro de igualdade.
A peça quase termina com punho erguido das duas intérpretes que fazem de Dino e de Adilson, Soraia Morais e Koffy, cuja voz luminosa, clara e intensa da primeira, contrapõe-se à voz mais grave e texturada da segunda, ambas muito limpas e serenas. O punho erguido é esse gesto de luta, símbolo e convocatória. Adilson é atravessado por um tom político e poético que nos obriga a rever a história recente dos que vivem nas margens legais. Expõe as feridas das leis racistas e a violência administrativa, mostra como o corpo migrante, em toda a sua vulnerabilidade e potência, é também a medida do país, na resistência de quem insiste em existir, mesmo quando o sistema o nega.
Esta ópera em cinco atos foi encomendada pela BoCA — Bienal of Contemporary Arts, com libreto de Rui Catalão (a partir de entrevistas à comunidade migrante) e direção musical de Martim Sousa Tavares. Musicalmente, Adilson é rica e plural: Dino escolheu que todas as claves, do início ao final da ópera, venham dos países que também falam português. Há um grande fusão sonora instrumentos da lusofonia misturados, ritmos tradicionais — morna, funaná — intercalados com orquestra clássica, com momentos de beat contemporâneo e eletrónico. E o mais belo é uma referência à Palestina, como não se pode não fazer, com Mais, palestiniana de Nazaré, a cantar em árabe e a tocar flauta. Um momento lindo.
A presença do rapper e cantor de soul luso-são-tomense NBC, das cantoras Michele Mara, Cati, Rebeca Reinaldo (conhecidas do Voice Portugal), e de Rúben Gomes compõem a força da peça. Coincide com o lançamento da autobiografia emocional de Dino de Santiago, intitulada Cicatrizes.