Luanda está a mexer! Hip hop underground em Angola
O hip hop trouxe consciência social e temáticas que andavam esquecidas no meio artístico angolano. Os rappers underground diagnosticam as contradições da sociedade angolana na vontade poético-política de crescer num país onde a liberdade e a justiça sejam possíveis. É uma cultura popular onde a juventude se revê e se questiona os destinos da nação. Ouvimos alguns mc’s que dão nome ao movimento.
A acção decorre na Luanda da década 2000, após uma guerra civil iniciada antes de uma independência que não dispensou as armas, com um poeta à frente da República. Imaginem rapazes numa Luanda do socialismo na infância, da guerra e deriva na adolescência e da descoberta artística no presente. Crescidos na cidade dinâmica que exige todas as energias e oferece algumas frustrações, degenerando em sonhos rasteiros.
Os novos artistas angolanos têm coisas para dizer sobre o que se está a passar e, sobretudo, sobre o que demora a acontecer. “Há muito que os observo, esses, os do rap que se movem e se orgulham do seu rap underground que mais do que criticar, reflecte e procura questionar” escreveu Ondjaki nas cartas a Ana Paula Tavares no JL.
Mc Kapa, Kheita Mayanda, Phay Grande, Leonardo Wawuti, Flagelo Urbano, Condutor e Ikonoklasta são alguns nomes desta corrente de resistência feita de “soldados da paz” e “trincheiras de ideias” que traduz as preocupações da nova geração que habita no centro e na periferia de uma cidade globalizada, e lembra, nas palavras de Mc Kapa estampadas em centenas de t-shirts que desfilam por Luanda, que “o país não tem dono, Angola é de todos nós”.
A crítica destes rappers destina-se, antes de mais, a alertar as consciências, sobretudo dos jovens, tantos que eles são. É o hip hop underground, convictamente demarcado do hip hop comercial, agressivo, consumista e misógino, exaltador de valores alheios à realidade angolana numa quase tradução das letras de rappers americanos. Entenda-se underground como uma filosofia, a postura do artista em relação ao mercado e ao seu público, o hip hop que “o grande público desconhece, de artistas cuja primeira preocupação é comunicar as suas ideias” diz Kheita Mayanda.
Mc Kapa, o rapper formador de consciências
“O hip hop tem a composição de uma substância no estado líquido e ganha o formato do recipiente onde é colocado.” A metáfora é de Mc Kapa ou Mc Katrogipolongopongo, que acredita na música como um instrumento de luta e insiste na identidade do rap angolano que deve clicar “a sua fotografia da voz”, “com as questões de cá e a matriz da música angolana”. Já que o sangue dos N’gola Ritmos corre nas suas veias, vai buscar inspirações africanas, como Manu Dibango, Salif Keita, Youssou Ndour, Filipe Mukenga, Paulo Flores, Bonga, Fela Kuti e algum reggae. Descansa os mais velhos numa das letras: “Fica calmo tio, não sou nenhum vazio, a arte é como um rio”.
Nasceu no Maculusso, Luanda 1981, pai do Kwanza Sul e mãe de Malange que o educou com valores espirituais em desajuste de Luanda, onde “se vive um drama muito material”, conta. “Luanda tornou-se um laboratório de sobrevivência. Na procura de melhores condições, o modo de vida é muito agressivo. As pessoas saem de casa para caçar dinheiro, unicamente para levar pão de volta o que é uma luta incrível.” A simplicidade e humildade de Mc Kapa bebem da sabedoria socrática, que lhe lembra para fazer mais e mais perguntas, firme contra a cultura da aparência da cidade onde vive. Ele é “pausado” e valoriza a tradição africana da oralidade como veículo de fazer ver, reflectir e crescer. Estuda filosofia e descobriu “no rap a oportunidade de praticar um exercício intelectual de informação e formação de consciência. É um instrumento de partilha da minha formação com outras pessoas. Faço exercício da minha cidadania através da música.” E entende-a como ninguém, a palavra-cidade e os seus contrastes.
A pequena tiragem do primeiro álbum Trincheira de Ideias (ou Petróleo Bruto para os piratas) foi suficiente para que as suas letras se espalhassem nos candongueiros de Luanda e nas províncias. Era coisa nova, assuntos e abordagens que não se ouvia com sotaque angolano, uma coragem que vinha agitar as águas. Em 1992, o primeiro contacto artístico com o hip hop fora através do break dance, que fazia furor nas arcadas de Luanda. “Comecei com um grupo que se chamava Negro Positivo, já tínhamos preocupação social, dizer não ao crime e à violência. Conhecia o rap da onda americana até chegarem as influências de expressão portuguesa do Brasil com o Gabriel o Pensador. Daí foi uma paixão até hoje.” Em 2003, “Cherokee”, de 27 anos, foi morto por cantar “A téknica, as kausas e as konsekuências”, um dos seus temas, tornando-se um símbolo de resistência em Angola. E sobretudo Mc Kapa ganha valor simbólico com o seu Katroismo. Em 2006 o álbum Nutrição Espiritual, já com 6 mil discos, faz com que viaje pelas províncias de Angola levando mensagens rimadas de política.
Pretendendo usar a sua influência para trazer outros valores, ciente das dificuldades de produção e divulgação em Angola, criou, com outros “brothers”, a produtora Masta K Produsons para que “esse tímido movimento vá crescendo e ganhe espaço, para mostrar que existe o outro lado da moeda, pessoas com consciência social”. Produzem discos, lançaram, entre outros, o Phai Grande, divulgam rappers em português como Valete, Sam the Kid, o brasileiro My Bill e o guineense Rhyman.
Mc Kapa rima a vida no musseque, universal para todos os guetos do mundo. Em “Atrás do Prejuízo”, música que passa na Televisão Pública de Angola mas é vedada nas principais antenas de rádio, fala da luta diária pela sobrevivência. “Eu vou sorrir pra não chorar / é mais um dia na minha vida / vou cantar p’ra não lembrar as malambas desta vida”, o refrão com Beto de Almeida e extractos de Salif Keita é a lúcida constatação da resignação e impotência de milhares de angolanos. Em “O Silêncio também Fala” apela “angolano acorda, chora agora ri depois”, ilustra o cenário sinistro, fosso do quotidiano entre os extremos da sociedade angolana, lembrando que a democracia não cai do céu, exige luta e convicção, com exemplos de Mandela e N’Krumah à cabeça. “Bro, levanta a Voz!”
Kapa quer o melhor para o seu país, a declaração de amor a Angola, linda fêmea que atiça paixões fatais com a sua “carapinha de Maiombe / vistas que brilham mais do que os diamantes da Lunda”, de sentimento “mais fundo que o Tundavala e superior ao Moco”, cantada na música “Algo a Dizer” que acaba com um ultimato: “Conheci-te em 1981 e continuo o mesmo garoto, disposto a morrer por ti.”
Música de intervenção
Ausência de sociedade civil activa, opinião pública parcial, saturação do discurso paternalista ocidental e das ong’s, negligência do Estado. Neste contexto a expressão social é de extrema importância. Há concertos de hip hop, de participação espontânea, que se transformam em autênticos comícios, os mc’s interpelam e diagnosticam os problemas de forma quase sociológica, recuperando um espaço que lhes é vedado nos circuitos oficiais ou institucionais da cultura. Aos domingos do Elinga Teatro, lugar de encontro de artistas e tribos urbanas, as vozes vão-se sucedendo no microfone aberto, é o hip hop no seu esplendor com rap, dança e grafitti.
“Nós somos estrelas negras, o nosso brilho é interno”, palavras de Lukeny Fortunato, dinamizador com um dos mais antigos entusiastas do género, Kool Kleva, de outros encontros – o Artes ao Vivo, noites de poesia ou Eclectismo Poético, mais voltado para o rap. No sofisticado café Bahía, à marginal de Luanda.
Os métodos de trabalho são os habituais recursos do circuito alternativo: gravam em casa, colocam os discos nas lojas, vendem em mão, divulgam os lançamentos dos discos uns dos outros, de boca em boca e na net, para o pessoal da diáspora e de outras zonas de Angola. É coisa de colectivo.
“Respeito a individualidade mas não o individualismo / Divido a minha sabedoria como se fosse comunismo / Num mundo de teorias, com todos esses “ismos” / Consciências são débeis como se tivéssemos paludismo”, canta Leonardo Wawuti, que também colaborou no Conjunto Conguenha. “Não pares, mantém-te em movimento / Só sais desta se te proporcionares acontecimentos.”
Leonardo pensa que, desde o fim do colonialismo, nunca mais tinha havido música que se pudesse chamar de intervenção, “durante o monopartidarismo cantava-se a saudade de Angola, a vida humilde, da lavra e do luto da guerra. O rap é mais ou menos o equivalente à música que se fazia no tempo da Independência, num estilo diferente. É o mais inovador em termos de escrita, abordagem e ritmo.” Excepção feita ao kuduro.
Depois de tantos medos inscritos na História: “O colonialismo, experiência de muita opressão. O sistema monopartidário, todo o passado sangrento de Angola, os massacres da Pide, a batalha de Kifangondo, o 27 de Maio logo após a independência, pessoas que são presas por se manifestarem, a morte do Cherokee. Há muitas representações que deixam as pessoas numa atmosfera de medo, pois sabem o quanto custa dizer a verdade em Angola. Então optam por ficar caladas.” Explica Kapa, não sem tristeza.
Tendo em conta as dificuldades de uma geração universitária que se debate com problemas como o acesso ao livro e à informação, ao transporte e à seriedade pedagógica, as vozes destes jovens têm força informativa e de propagação de ideias. O acto de criação começa na escolha de para onde se olha, o que se vai buscar para “rappar”: “do dever de prestar saúde, assistência, educação. Quanto mais falarmos, talvez exista da parte das pessoas que governam maior preocupação, talvez repensem a política social, económica, de distribuição do orçamento. O angolano é um verdadeiro artista porque consegue viver com muito pouco”, conta Flagelo Urbano, muito dedicado à causa do hip hop, na qual participa como mc e produtor. De novo Mc Kapa, “a minha grande questão é a maneira como se conduzem os destinos dos angolanos, falo da falta de qualidade de vida, da esperança de vida tão reduzida, deste quadro contrastante de vivermos num país potencialmente muito rico e na realidade tão pobre. A cultura das aparências, a corrupção e o tráfico de influências representam o grande entrave para o desenvolvimento e progresso de um país.” E nas letras ironiza: “aborreço-me batendo nas mesmas teclas / Falo muito de política. Poderia cantar futilidades para distrair o povo.”
Os mc’s identificam a conquista de uma maior liberdade de expressão com a abertura de alguns jornais e rádios privadas, citam exemplos como o jornalista Rafael Marques e William Tonet do Folha 8, Paulo Flores e Bonga na música, atitudes que foram ganhando visibilidade nos últimos 5 anos. Acham que eles próprios estão a contribuir para isso, pois é possível que, ao ouvir-se certas músicas, se pense: “se esses miúdos são capazes de dizer isso sem medo é porque os tempos mudaram, a era do medo está no fim”, especula Kheita Mayanda.
A poesia da língua
A expressão da vivência urbana opera a língua com muita soltura, criatividade e teatralidade. O calão “mangolê” é mestre na arte de surpreender, a língua afiada cheia de wis, cotas, damas, mwadiés, dredas, paiadores e outros mambos faz do rap cru de Phay Grande, o poeta, uma linguagem reflexo da turbulência de Luanda, da panela de pressão da cidade. No seu álbum Pão Burro diz tudo, doa a quem doer, e a crítica começa dentro, longe da cantiga da vitimização habitual em que a culpa é sempre dos outros. A herança da ironia da cultura angolana mantem-se como forma de evidenciar o despropósito de uma governação que ainda não pensa a educação e o esclarecimento como estratégia para o desenvolvimento.
Kheita Mayanda, na letra “A Idade da Razão”, faz jus à herança existencialista do título: “A humildade me diz /Só posso dar ao mundo a mudança que em mim já fiz/A presunção afasta-me da lucidez que preciso/ Pra fazer poesia sobre as ruínas que piso.” Cientista social de formação, encontra na poesia a possibilidade de fixar a beleza efémera e tão intensa daquilo que o rodeia: “Flores selvagens crescem entre o cimento e a indiferença/Entre a miséria e a abastança, metade homens metade crianças/Por essa Luanda das minhas andanças (…) Algumas flores murcham sua beleza é instantânea / Mas a imagem que nos oferecem é totalmente espontânea / Frágeis na sua condição / Ao mesmo tempo veneno e antídoto elas são / Feras feridas acuadas entre o medo e o betão.”
Não faltam as “estigas” inerentes ao género, sem fugir ao típico mc que se afirma como o mais verdadeiro mensageiro, em desafios: “Quem quer testar o Brigadeiro?”/Magoo o dedo grande tipo pregos e martelos /sou polígrafo para emcês que repetem ser verdadeiros/Quim Barreiros do Hip Hop badalhoco e rosqueiro /Quem quer o bacalhau? Preparem a vaselina e o cagueiro”. Quem canta é Brigadeiro Mata-Frakuxz aka Ikonoklasta, que estuda em França e vai regularmente “à banda” participar em concertos e projectos colectivos. É também Ikonoklasta que faz o historial do hip hop angolano numa série de “vindimas”. Auto-referencial como o fado e a salsa, o rap angolano está povoado de letras que tentam definir esse estranho objecto. “o hip hop ou tem sentimento ou é hardcore / o conteúdo deve ser inspirador, contestatário ou interventivo / servir uma causa maior ou no mínimo ser criativo (…) o que importa não é o tema é a originalidade na abordagem / independentemente da via o conteúdo deve ter mensagem / o Hip Hop não é só música p’rá miudagem / por isso deixem de glorificar copos e bandidagem”, rappa em catadupla.
Apesar de “o homem estar a transformar-se num animal selvagem, coração de pedra, cérebro de areia” como recita o Mc Kapa, a resistência destes mc’s tenta gerir os absurdos que alguns aspectos do quotidiano foram extremando sob o olhar indiferente dos poderes políticos. Com as condicionantes para a vida de todos, com riquezas que despertam a cobiça de negociantes de todos os cantos do globo, com tantas imagens com que se ilustrar e contradizer, Angola é uma terra pujante em matéria para se criar e reinventar. Em que a realidade ultrapassa a ficção em termos de potencial diegético e imagético, em que se convive com o absurdo todos os dias e ele volta a surpreender-nos. Através da descrição da vida que tem de reinventar-se para continuar, este movimento de solidariedade tenta a inserção na polis e debate-se pela consciência. Luanda está a mexer!
originalmente publicado no jornal Público 6/7/07