“A vida das mulheres não tem significado para os governantes angolanos”, entrevista a Djamila Ferreira

Na última visita a Luanda, conhecer algumas jovens mulheres que estão a pensar e a lutar por um país mais justo e pela igualdade de género, foi muito animador. Vale a pena ler tudo o que Djamila Ferreira, 33 anos, nos conta, agora que muitos jovens perdem o medo de falar sobre as injustiças. Nasceu e cresceu em Luanda sem nunca ver o poder a mudar de cor/ partido, estudou Direito e trabalha nas áreas sociais pelas comunidades. Como tanta gente, sente-se dececionada com o desenlace das últimas eleições presidenciais, mas nada voltará atrás no despertar de consciência de muitos angolanos. Falámos sobre as carências e falências quase todas: educação, trabalho, bem-estar, sistema de saúde e de justiça. A repressão a quem protesta e denuncia e, sobretudo, a vulnerabilidade das mulheres, amarradas a um sistema que as empurra para a pobreza e ignorância. De como a justiça falha em casos de abandono familiar, situações de abuso, violações sexuais e despedimentos por gravidez. Ao mesmo tempo, mais do que nunca, os coletivos feministas organizam-se contra as monstruosas desigualdades de género. Djamila Ferreira conhece Angola a fundo e, na sua luta, enfrenta inúmeros boicotes. Deseja nunca se corromper ou resignar, “seria uma traição às comunidades”, mas sabe que esse é o modo do regime operar e calar. É uma das vozes que dão algum alento para acreditar no futuro de Angola! É uma das vozes que dão algum alento para acreditar no futuro de Angola!

Djamila Ferreira, foto de Marta Lança Djamila Ferreira, foto de Marta Lança

Como se foi apercebendo dos problemas e da realidade angolana? 

Trabalhar na Mosaiko [uma associação social angolana] desde 2011 abriu-me a possibilidade de estar em contacto com as comunidades e conhecer a realidade de perto. Sair da cidade pelo país a fora foi uma experiência brutal há 12 anos. Quando não trabalhava, os espaços que frequentava eram em torno de casa e não tinha noção da vida real, por exemplo de uma mulher numa zona rural ou periurbana. Tinha apenas aquela conceção redutora que vinha pela escola. Assim, foi no trabalho que tive a oportunidade de sair para vários municípios e províncias, ao ficar duas, três semanas fora. De cada vez que conhecia pessoas, ia sentindo um forte impulso para me dedicar aos direitos das mulheres. 

O seu interesse vem diretamente dessas realidades mais fora do seu contexto? 

Também tenho experiências pessoais e de outras mulheres à minha volta. Principalmente pessoas que decidiram casar e depois tiveram outras experiências, ou mulheres que cuidaram dos filhos sozinhas, e histórias de abusos sexual. Comecei a interessar-me mais por isso.

Estudou Direito como ferramenta para intervir socialmente?

Desde nova que gosto muito de estar com as pessoas e de falar. Tenho uma irmã jornalista e ela também conta histórias sobre as suas amigas. Ouvia as conversas dos mais velhos sobre o estado do país, falavam muito de José Eduardo dos Santos, às vezes eu entrava nas conversas e os meus irmãos sempre me mandavam calar a boca: “Xé, não fala política, és muito miúda!”. Me atiravam muito essa música à cara, não fala política, às vezes eu saía a chorar…

Continua muito presente o lema-conselho de “não falar política”?

Está, muitíssimo presente. Mas os jovens, homens e mulheres de hoje, não são os mesmos dos anos passados. Hoje questiona-se mais. Muitas pessoas, intelectuais ou não, recorrem às redes sociais para falar sobre o que pensam sobre o país.

Já esteve pior, o poder de denúncia… Há uns anos era mesmo tabu.

Mas agora parece que estamos a regredir e estamos pior. 

Porém, há mais consciência cívica.

Isso sim, pelo menos em conversa com mais velhos, e por [causa de] alguns fatores históricos, dantes assistia-se à inércia e ao silêncio do povo. Agora não. Mas as condições sociais e de vida regrediram bastante: o poder de compra, postos de trabalho e salário dignos, acesso à educação de qualidade. Ainda temos crianças a estudarem debaixo da árvore. Ainda temos, mesmo aqui em Luanda, crianças a estudarem ao relento. Quando chove, o professor e os alunos vão a correr para um abrigo com um quadro. Tens bairros sem saneamento básico, sem energia nem água. E pessoas que vivem em situações muitíssimo precárias, de pobreza extrema, não têm o que comer, não têm o que vestir. Temos tudo isso em 2022.

As elites queixam-se das desigualdades, mas não estão verdadeiramente interessadas em abdicar da sua posição?

Nem as elites nem a classe intelectual, que tem bastante consciência da condição do país. Parece que estamos todos acorrentados. Neste último ciclo eleitoral, o poder popular sentiu-se mais forte. Estávamos mais unidos, se calhar porque sabíamos de onde saíamos. Nasci em 1989 e cresci num país onde nunca vi um partido diferente a governar, nunca vi alternância política, cresci com um único Presidente da República, que só mudou há quatro anos. Estou a ver outro Presidente no poder e aí se quer manter. Por causa disso, penso que houve mais união popular para fazer pressão e empurrar o sistema. 

Mas, quando começámos a perceber que não iríamos conseguir, demos conta que estamos num buraco mais profundo, e que não vai depender só da sociedade civil ou dos intelectuais, mas também de quem está lá em cima, a ajudar o sistema a manter-se. E o problema é que toda a gente está preocupada com o que vai comer amanhã e ninguém quer largar o osso pelo país. E isso é triste e desesperador. Eu trabalho com as comunidades e sei o que as pessoas passam. Se calhar, eu entrar para o sistema seria uma traição para essas comunidades e contribuía para perpetuar a condição social das pessoas. 

Entrar para o sistema, ou seja, ser convidada para o sector público?

Sim, ou não falar…

Quer manter a sua margem de ação independente para poder atuar. Foi estudar Direito para ter mais capacidade e intervir?

Achei que era um curso com o qual podia ajudar o país a desenvolver-se. Gosto de política mas também gosto de defender pessoas. Com o curso de Direito, senti que teria armas para ajudar mulheres a mudarem a sua condição social, a fazer justiça pelos crimes que sobre elas recaem.

Depois foi trabalhar com as comunidades, recolhe as denúncias e consegue fazer a ponte com as instâncias que decidem?

O meu trabalho é mais institucional, porque estou ligada a uma organização onde faço acompanhamento judicial de casos de violação de direitos humanos, aconselhamento jurídico, e formações sobre direitos humanos.

Trabalhou na ação “Transformações para a democracia e eleições”, que é fundamental para o processo democrático.

Sim, enquadra-se num projeto que implementamos sobretudo em fase eleitoral. Fazemos ciclos de debates, encontros formativos para alertar as pessoas, torná-las mais conscientes, poder perceber o círculo eleitoral e participar de modo mais consciente e ativo. Esse ano foi mais estimulante, porque todos estamos cansados e queríamos a mudança, sentíamos que era a oportunidade para a alternância política, e havia uma figura que podia ajudar a população.

E chegaram a alcançar vitória?

Mas foi-nos roubada. Não mudou oficialmente, mas há uma frase a circular na qual acredito, “nada mudou mas tudo mudou”. Todos ficámos ligados pelo sentimento de querermos que esse sistema caia ou se transforme.

Ficaram mais fortes na perceção do que perverte a democracia, e aquilo com que têm de se debater?

Exatamente. Não temos nada a perder, as pessoas estão dispostas a ir para a rua sempre que há uma irregularidade. As pessoas estão dispostas a fazer manifestações. Também há mais repressão. Nunca houve tantas mortes e manifestações como agora, nem no tempo do Zé Du. Há mais violência, há mais pessoas a morrer e a desaparecer, há mais pessoas a serem detidas de forma arbitrária. Ainda ontem um jovem me contou que, no dia em que iam ser divulgados os resultados das eleições, ele e amigos foram para a frente da administração do Cazenga sentados com velas. A polícia perguntou o que estavam aí a fazer. Eles disseram: “Estamos a fazer uma vigília por causa do resultado das eleições”. A polícia convidou-os a sair de lá, eles não aceitaram e foram levados à esquadra. Ficaram três dias e foram julgados sumariamente, e agora receberam uma medida de termo de identidade e residência, não podem circular. Uma vez que o sistema não quer ser conotado com prisões nem desaparecimentos, essa é uma das formas de meter medo.

Quando diz que há vontade popular quer dizer que mais pessoas perdem o medo?

Assistimos a mais manifestações, há mais pessoas a ir à rua, há mais pressão, há mais encontros para pensar estratégias. Há mais jovens, até mesmo nos encontros formativos, nos espaços públicos, que falam e demonstram a sua, não quero dizer a frustração, mas insatisfação com o sistema. E não têm nada a perder.          

Como está a situação da mulher atualmente? As desigualdades salariais, a família, educação e os filhos, tudo isso recai em cima das mulheres. E o flagelo diário das mortes de mulheres no parto.

A nossa vida não tem significado para os governantes. 

Porque são as mulheres as principais vítimas desse sistema?

Do ponto de vista geral, a situação das mulheres em Angola está mais precária. Vou começar pela questão da segurança no posto de trabalho. Esta nova lei prevê dez anos de trabalho por tempo determinado, isso faz com que as entidades patronais possam se desfazer das pessoas a seu belo prazer. Nos últimos tempos, e por causa da covid-19, vê-se mais mulheres a serem obrigadas a ir trabalhar depois de um mês de licença de parto, ou semanas. Oficialmente temos três meses de licença mas quase nunca é respeitado. Principalmente em postos de trabalho domésticos ou em trabalhos não formais. 

Como advogada, tenho recebido inúmeras reclamações de mulheres que dão à luz e são obrigadas a ir trabalhar ou perdem o emprego, ou estão grávidas e perdem o emprego. Ou vão fazer candidatura e perguntam-lhes qual é a previsão delas de engravidar. Então, temos assistido a pessoas que são despedidas e não são respeitadas nem indemnizadas, nem o tempo de trabalho. 

Depois há a situação da fuga da paternidade, abandono familiar. Aqui em Angola tu podes encontrar gerações que viveram sem uma presença masculina e que, na sua maioria, a causa é abandono do pai. Não tem morte ou outro problema qualquer. E tens mulheres com cinco, dez filhos (aqui faz-se muito filho) a cuidarem de todos sozinhas, muitas vezes sem um emprego formal e sem qualquer apoio social… Porque também não temos as estruturas firmes nesse quesito. E qual é o real problema nisto tudo? A violação da lei é praticada por particulares ou por empresas mas também a violação institucional, porque o Estado não se organiza e não apoia, não responde às necessidades de justiça dessas mulheres. Na universidade aprende-se que os processos de família às tais prestações de alimentos são providências cautelares, são processos urgentes que têm de levar pelo menos uma a duas semanas para o juiz decidir, porque estamos a falar de alimentos, de uma casa para abrigar a pessoa… mas, na realidade, os processos levam três a cinco anos. Às vezes por coisas tão corriqueiras como o Tribunal não ter papel para notificar o pai, não tem linha para autuar.

Isso inibe as pessoas de recorreram à Justiça?

As pessoas até ponderam ir à Justiça, mas acabam por desistir porque o sistema de justiça não responde. Primeiro é o excesso de burocracia, depois a falta de recursos…. Um escrivão para mil processos leva anos. É o que eles respondem. Tribunais que estão a cinquenta quilómetros da comunidade, distantes das pessoas. A pessoa chega ao Tribunal, que já é bem distante, e depois é a questão do acesso, os custos do processo. Se a pessoa já é pobre, ou trabalha para sustentar cinco filhos sozinha, que dinheiro é que ela vai encontrar para pagar o processo ou o advogado ou “meter a gasosa” para ser mais rápido? As pessoas acabam por desistir. O sistema não responde e quem viola o Direito toma consciência de que o sistema é moroso, não responde, e continua aí sem ser punido pelas consequências do seu ato. Então, temos as mulheres totalmente acorrentadas e condenadas a serem cada vez mais pobres.

Por vezes romantiza-se um pouco que as mulheres africanas, apesar de tudo, não estão sozinhas a criar o filho, existem estruturas de solidariedade entre si. 

Temos essa solidariedade preparada, mas é mais na estrutura familiar porque somos educadas a cuidarmos umas das outras, não a nos cuidarmos entre homens e mulheres. Tu casas, quem vai cuidar de ti é a tua mãe, e as tuas primas. Estás grávida, quem te vai acompanhar no parto e nas consultas é a tua mãe. Tens o bebé, quem te vai cuidar é a tua mãe. Então, há uma estrutura familiar preparada para te apoiar e, mesmo nas famílias vais notando que as decisões, os pedidos, as reuniões familiares e tudo mais, têm maior presença feminina, os homens não são educados para o cuidado da família ou do outro em geral.

Que diferença está a fazer o facto de as noções de feminismo já terem despertado por aqui? 

Uma coisa que muda entre nós é ganharmos mais consciência e criarmos correntes de apoio para nós mesmas, alargarmos para fora da família. Por outro lado, também há ações concretas. Por exemplo de advocacia feitas por algumas organizações junto da Assembleia Nacional, e de outros órgãos de decisão, a chamar atenção para políticas públicas que devem responder às questões de género. No ano passado a verba alocada para a proteção contra a violência doméstica saiu do Orçamento Geral do Estado, sem qualquer justificação. Aumentou-se dinheiro ao bolo orçamental para as outras áreas do Estado e retirou-se o pouco que havia para a proteção da Mulher. Algumas instituições e associações juntaram-se e fizeram um comunicado para a Assembleia Nacional, para a décima Comissão dos Direitos Humanos, a ver se essa verba volta ao Orçamento Geral. Além das ações há debates. Quando houve a aprovação do Código Penal sobre criminalizar situações de discriminação contra a mulher e contra pessoas LGBTQ, a discussão sobre a penalização do aborto entre a Ondjango Feminista [movimento feminista autónomo de ativismo e solidariedade entre mulheres] e outras instituições foi muito acesa.

Mas o aborto continua a ser crime.

Continua, é punido com pena de até cinco anos [de prisão].

Djamila Ferreira, foto de Marta Lança Djamila Ferreira, foto de Marta Lança

Onde é que a Justiça falha mais?

A falta de resposta do sistema de Justiça encontra-se em várias áreas e casos, nas situações de abandono familiar, nas situações de abuso sexual e de violações sexuais. Temos casos de meninas que são violadas, vão à esquadra e o polícia entende aquilo como uma provocação, ou uma revanche entre alguns miúdos que andaram a provocar a miúda. E não vai instruir o processo, faz-se uma assentada familiar e a medida pode ser que o violador pague uma multa por desonrar, e a coisa fica por aí. Tem outros casos que andam, mas ainda há tanto trabalho por se fazer… 

E a mortalidade materna e infantil e a violência obstétrica?

Os números são gritantes, não sabemos no concreto mas estamos a acompanhar vários casos de mortes materna e infantis, ou negligência médica ou violência obstetrícia, muitos relatos de mulheres que acabam mutiladas pós-parto, situações de intervenção cirúrgica à bruta. À mínima coisa a parturiente vai para cesariana, os partos normais são também muito frequentes mas o rio de cesarianas que se faz e a justificação que se dá é revoltante. Depois, quando já se fez uma cesariana não se consegue um parto normal porque o hospital não está preparado para atender a essa condição. Continuam a fazer cesarianas porque dizem que há risco do útero rebentar, mas a questão é que não têm equipamentos para te salvar, então é melhor uma cesariana. Quando as mulheres recorrem às maternidades para parir nem sempre o atendimento é humanizado, são agredidas verbalmente, se choram ou se reagem à dor.

Acredito que alguns médicos também sofrem com essa impotência…

As equipas médicas também estão acorrentadas e obrigadas a condicionar as mulheres a essa situação. Os médicos têm feito greves, exigindo melhoria das condições de trabalho e subida de salários. Uma delas resultou em negociações com o Ministério da Saúde que acabou por não cumprir e defendeu-se dizendo que, se os médicos angolanos não querem trabalhar, contratavam médicos estrangeiros. Há também uma entrevista de João Lourenço a referir-se às condições de trabalho dos médicos.

Voltando à Justiça com as mulheres.

Agora o que é que acontece? Independentemente do tipo de crime sobre a mulher, não tem solução para nós. Continuamos acorrentadas, o marido pode fugir e não assumir uma gravidez, não assumir o sustento das crianças, a mulher pode ser agredida brutalmente, pode ser violada, podem ser violados os direitos trabalhistas. Pode sofrer violência obstetrícia. Não há resposta para os crimes cometidos contra as mulheres. Muito menos resposta célere. Pode fazer o impulso do processo e terá uma resposta cinco anos depois. Estava a acompanhar o julgamento de um senhor que fugiu, que abandonou a família. A mulher pôs processo no Tribunal, e ela acabou por morrer durante a instrução do processo, e quem está a responder são as filhas. Um processo que começou em 2019 ainda está em fase de julgamento.

As pessoas acabam por desistir.

Pode até ser uma idosa que precisa de apoio, de uma pensão de pobreza, a reforma de uma senhora com 70 e tal anos, e ter um processo desde há dois anos. Não houve movimentação do processo porque o Tribunal não tem papel para notificar, não tem tinteiro para pôr na impressora para imprimir notificações. Tem como não desistir, se a Justiça já desistiu de você?

Existe uma cadeia que não tem a ver necessariamente com competência, nem com a falta de dinheiro, porque o governo tem dinheiro. 

Tem, e o dinheiro vai para onde? Os processos são caros. Todas as semanas há processos em curso no Tribunal, há pessoas a pagar custas judiciais. Portanto, estão sempre a arrecadar… E depois também temos juízes a desviarem dinheiro. Há juízes que dão processos que envolvem mais dinheiro a determinados advogados que já sabem que vão garantir o processo.

 

Não é caso exclusivo de Angola… Já trabalha há dez anos, mas perante a indignação das coisas não andarem ou de não ver passos concretos, o que é que a faz continuar a trabalhar na área social?

Esse último ano tem sido mais desafiante, porque ganhei mais consciência de quão fundo é o buraco onde estamos metidos. Essa coisa é muito maior do que eu. Ganhei consciência disso quando solicitei para ser defensora oficiosa de um processo e a Juíza não me deixou entrar para a audiência. A Juíza disse às pessoas que eu estava a sentir-me mal, mas eu estava à porta do Tribunal a tentar, a discutir, para entrar. Quando descubro que o processo foi julgado, as pessoas foram obrigadas a pagar rios de dinheiro em mão, ameaçadas para pagar, e eu sem poder fazer nada. As pessoas ligaram para mim a dizer que fugi. Foi o pior dia de advogada da minha vida, eu me senti pequena… 

Tinha boa relação com elas?

Tivemos encontros prévios, preparei-as para o tipo de postura que deviam ter durante o julgamento, sobre o que estava previsto, o que ia acontecer. Eles realmente tinham cometido um crime de exercício ilegal de profissão, mas eram adolescentes, trabalhavam em farmácias. Eu já estava vestida com a toga e quando ia entrar não me deixaram, a juíza precisava de ter uma conversa prévia com as partes. Eu perguntei: “Como assim, conversa prévia sem a advogada estar presente, o que é isso?”. Não pude entrar, fiquei à espera cá fora, quando tentei entrar de novo disseram que foram obrigados a pagar em mão 500 mil kwanzas [941 euros] cada um. 

Achava que podia ganhar o processo? 

Sim, isso é processo sumário. E ainda disseram que eu desisti. Foi o dia mais triste da minha profissão, fiquei de escrever para o Conselho da Magistratura mas depois percebi que não ia acontecer nada. 

Tem medo de represálias e de ser proibida de trabalhar?

Não. É a verdade, só a verdade nos liberta. 

Quanto à questão do poder. Há muita gente que estudou fora e regressou a Angola cheia de energia para mudar, depois vão ficando cansados perante os bloqueios e acabam por desistir e enriquecer. Quanto mais se encontra em situação de privilégio menos quer saber. Acha que isso pode acontecer consigo?

Acho. Sabe porquê? O país está a mudar. Nós que trabalhamos em instituições privadas também sentimos que estamos sem segurança no nosso posto de trabalho porque há pouco financiamento. Temos duas opções: ou continuamos a trabalhar no privado ou vamos para o Estado. Ou trabalhamos por conta própria. Se for para o Estado, pronto, acabou. Vi várias pessoas na sociedade civil por quem tinha muita admiração, que diziam “vamos viver na carreira”, tiveram dez anos, onze anos e depois entraram para o público e diziam-me “eu vou fazer a mudança a partir de dentro”. Vejo essas pessoas que diziam isso totalmente engolidas e sei o que me espera quando eu for, não é fácil. Claro que não posso mudar estruturas com o meu perfil,

Vai ver que um dia recompensa a pessoa manter-se firme, um dia vão reconhecer mais isso do que se perder a coerência.

Aqui nós somos cheios de incoerências.

Não pensa ir embora do país? 

Muito! Penso que os meus filhos cresceriam melhor e mais seguros.

 

Entrevista feita no bar do Hotel Globo, Luanda, outubro 2022.

por Marta Lança
Cara a cara | 14 Dezembro 2022 | angola, Direitos Humanos, Djamila Ferreira, feminismo, João Lourenço, justiça, luta, Mosaiko, mpla, saúde