A Tetralogia da Amizade, conversa com João Rosas a partir do filme 'A Vida Luminosa'

A poesia invisível do cotidiano 

Abordas o quotidiano como narrativa. O que te interpela nessa passagem dos pequenos nadas e não os grandes acontecimentos?  

Interessa-me a forma diarística, a relação entre o cotidiano e a memória, e como é que o cinema, desde logo uma arte que trabalha o espaço, é um trabalho com o tempo. Sobretudo com o doutoramento [projeto “o cinema e as cidades invisíveis”], tenho estado a pensar mais sobre isso. Na verdade, é uma das coisas que está no início do meu…

Gesto cinematográfico?

Sim. Essa relação entre o quotidiano e a memória. Como o cinema trabalha a dimensão poética da memória. Para mim, também se relaciona com a cidade, determinados lugares. O interesse pela cidade nasce, aliás, desse fascínio pelo cotidiano urbano. Se formos por uma via mais psicanalítica, tem a ver com o facto de ter crescido no bairro Quinta da Luz [tal como tu], uma zona no limiar da cidade. A minha vista dava para aquelas colinas da Amadora e da Serra da Luz. A cidade estava nas nossas costas e depois - quando comecei a filmar as primeiras coisas sozinho, andava com a câmara na mochila, ainda sem qualquer ideia de fazer cinema ou de usar essas imagens - foi o movimento de descoberta da cidade, em direção ao centro. É curioso que essa ideia da apropriação do espaço também está no Entrecampos.

O que filmavas?

Filmava muito os percursos, transportes públicos, amigos, manifestações, esse tipo de coisas.

Vais usar esse arquivo pessoal da cidade?

Não sei. É um arquivo com um lado material  - estas imagens, recortes e fotografias que vou tirando - e imaterial, as imagens mentais que vou acumulando. Também me interessa a visibilidade e a invisibilidade, ou seja, a poesia invisível do cotidiano. O cinema é capaz de revelar mesmo no sentido fotográfico, ou seja, de trazer à superfície aquilo que, pela própria vida urbana, tem um ritmo que tu, no cotidiano, não reparas. Consegue, mais uma vez, trabalhar o tempo, às vezes dar um passo atrás.

Em termos de sequência na tetralogia — desde Entrecampos até A Vida Luminosa — essa relação de memória e vivências na cidade, é-nos apresentada a partir de uma vida pessoal, mas num tempo humano muito alargado que é o de uma pessoa a crescer. Acedemos às mutações das personagens e dos lugares, às mudanças de Lisboa.

Acho que há uma diferença entre os filmes de ficção e os filmes documentais. Os de ficção, diria que têm, por um lado, essa fixação do real. Como são inseridos num arco temporal muito grande, tu vês essas mudanças na cidade. Interessa-me o lado documental das imagens. Daí filmar no cotidiano da cidade, e ser a cidade que me leva às ideias, a determinados lugares, não só das minhas memórias, mas do próprio cotidiano. O cinema fixa isso, essa tal invisibilidade ou a evanescência. Na ficção, a cidade…

É um espaço relacional.

Exatamente, está em interação com as personagens. O cinema em geral, é uma maneira de pensar a cidade e, mais do que pensar, de habitá-la. Aquilo que me dá alguma saúde mental para viver em Lisboa, uma cidade de que sou muito crítico, é estar do que pode haver de cinematográfico na cidade e, por outro lado, ver a cidade como um espaço de encontro e de cruzamento com o outro. Não só para me levar aos filmes, porque os filmes dependem do outro, não os faço sozinho, mas também nesse gesto mais político, particularmente importante nos dias de hoje: precisamente, a ideia de encontro com o outro, relacionada com o cinema e com o modo de habitar a cidade. Como é que os filmes humildemente, podem, no fundo, contribuir para mostrar também a cidade como um lugar de relações, de amizade, de amor. Isso está tanto na ficção como no documentário, mas no documentário, interessa-me trazer mais esse pensamento para a frente. Na ficção, há uma depuração formal em que tento apagar esse trabalho, inserindo-o na narrativa de forma orgânica, no sentido da depuração: partir de coisas que considero complexas e simplificá-las. Enquanto que, no documentário, interessa-me que esse pensamento esteja à vista.

cena de 'A Vida Luminosa', João Rosas, Midas filmescena de 'A Vida Luminosa', João Rosas, Midas filmescena de 'A Vida Luminosa', João Rosas, Midas filmescena de 'A Vida Luminosa', João Rosas, Midas filmes

Em Lisboa, o mundo desaparece um pouco. O facto deste filme trazer personagens como as amigas estrangeiras do Nicolau, dá a ideia de uma Lisboa mais globalizada. Acho que ainda não tinha visto muito isso noutros filmes. Com essas miúdas estrangeiras que vivem em Lisboa, há um olhar de fora para dentro. Como pensaste isso?

Foi um dos pontos de partida do filme. Relaciona-se com a tua primeira questão sobre os pequenos temas. O ponto de partida para os filmes de ficção é, muitas vezes, uma espécie de pergunta, ou de estado de transição do personagem, neste caso do Nicolau, associado a determinadas idades. Seja a questão da descoberta do desejo, seja a indecisão com o curso e, agora, a identidade. Quando começas a formar a tua identidade, sais de casa dos pais, começas a ser tu próprio. Deixas de ser só filho, estudante e primeiro namorado.

Já vamos falar sobre o “devir adulto”.

Estes estados de transição são feitos de pequenas vivências, pequenas coisas que vão alterando a tua identidade: Alguém que tu conheces, como começas a descobrir a cidade, outros lugares, ou como é que uma pessoa te leva a outra. Um livro que lês, um filme que vês. O que me interessa nos filmes em geral, é não me centrar nos grandes acontecimentos, na história com H grande.

Nem em mais um corpo morto numa floresta, como nas séries…

Exato. Pensar antes nas pequenas coisas que também são aquilo que tornam a vida luminosa, não é?

Determinismo do meio e surpresas 

Somos produto do contexto em que crescemos e ao qual estamos expostos, aos colegas, às namoradas, aos pais, mas também há um lado aleatório, não é? 

Sim, claro.

Ou seja, a dita classe média é determinada com alguns aprioris mas depois há o acaso, as afinidades eletivas que te vão levando de uma a outra coisa. E então, essa formação de identidade, como é que se constroi no filme? 

Partir desta questão identitária, mas tentar não ir pelos discursos identitários que estão hoje muito na linha da frente, no cinema e na arte em geral. Portanto, mais do que ter respostas sobre isso, interessava-me um questionamento. O cinema serve para questionar e não para responder. Hoje em dia os gestos artísticos, e no cinema também, muitas vezes ensinam-te ou explicam-te como ler determinada obra. E a resposta é «as coisas são assim». Não me interessa isso.

E ainda…

Ser um filme ancorado no presente. O trabalho sobre o cotidiano urbano e que a cidade esteja em interação com os personagens, não seja só uma cidade ou memorial de nostalgia, da minha recordação de como era, e o que é a cidade hoje. 

Mas é uma cidade num contexto social específico.

Desta classe média branca, privilegiada, dos chamados problemas do primeiro mundo. Como é que estas pessoas, neste meio, vivem a cidade.

Qual foi a metodologia?

A partir daí foi um trabalho que tem duas vertentes práticas muito fortes e que passam de filme para filme. Uma é a repérage que faço através de caminhadas pela cidade - um trabalho de recolha em que revisito certos lugares meus, e vou descobrindo os lugares que as pessoas que estão no filme vão trazendo também. Há este diálogo, um bocadinho da minha cidade e da cidade dos outros, e transformarmos isso numa cidade em comum. Mais uma vez, esta ideia do encontro. E essa cidade em comum, no fundo, é a cidade-personagem.

Outra, é um longo processo de casting. Daí também trabalhar com não atores, porque o que me interessa é conhecer de facto as pessoas. Mais do que as capacidades técnicas de cada um (porque isso é uma coisa que também se trabalha, é uma questão de repetição), o que me interessa é trazer essas pessoas para o filme.

E as suas histórias e a cidade dessas pessoas.

Portanto, o casting, na verdade, é uma série de longas conversas, em que as pessoas estão sobretudo a falar de como vivem a cidade, com quem, se tomam drogas, se vão dançar, onde é que vão, se vão beber para casa. Enfim, as vivências.

E é a partir dos testemunhos do casting que vais fixando as personagens?

Sim. E depois, a partir dessas informações há um trabalho de escrita que vai sendo sempre afinado entre o que as pessoas me contam, aquilo que eu penso. Portanto, as personagens nascem ou vão ganhando corpo a partir deste diálogo entre aquilo que eu quero que sejam as personagens, as pessoas que as encarnam e aquilo que elas dão à personagem, um ou outro elemento real da sua vida, em que as personagens acabam por ser pequenas variações, até expressões idiomáticas, maneiras de falar, etc.

Não te esqueças da parte de Lisboa e do mundo.

E o que era desde logo óbvio, também pensando do ponto de vista do que é que a cidade mudou em relação ao que era a cidade há 20 anos, quando nós tínhamos a idade destas pessoas, é a presença dos estrangeiros. Também de estrangeiros europeus… sejam estudantes, sejam nómadas digitais, pessoas que vieram atrás de um namorado e acabaram por ficar cá, e interessava-me perceber isso, ou seja, também o que é que estas pessoas veem na cidade…

Lisboa deve ser encantadora para muita dessa gente, embora para a personagem/rapariga catalã seja dura também.

Há realidades muito diferentes. Há quem esteja a trabalhar para empresas estrangeiras e, portanto, viva muito bem na cidade, outros que toparam rapidamente com a precariedade laboral e com baixos salários.

Do ponto de vista dessa personagem que vinha atrás de um namorado português, que conheceu no Erasmus, era uma cidade difícil de penetrar. Ressoou-me uma adaptação nada fácil porque as pessoas estão com os seus amigos de há séculos. Já nos aconteceu a todos trazer alguém de fora e não haver receptividade, nem interesse. Mas agora há um meio próprio dessas pessoas estrangeiras também.

Sim, era isso que me interessava descobrir e, no fundo, retratar, porque eu próprio também já senti isso, já vivi isso.

João Rosas, foto de Alexandre RamosJoão Rosas, foto de Alexandre Ramos

 

As conselhos a Nicolau

Todas essas raparigas à volta do Nicolau parecem guiá-lo.

O ponto de partida narrativo era este rapaz que está rodeado de raparigas, e só pensa na ex-namorada. Elas são as amigas, ou conselheiras, que o vão guiando quando elas próprias também estão numa fase de transição. É um coro de personagens, desde o realizador, à personagem do Valério na papelaria, às raparigas todas. 

E o filme arranca com o Coro da Achada, com a frase do Brecht “de todas as coisas certas a mais certa e sabida é a dúvida”.

O amigo, o pai, o colega das bicicletas, está toda a gente a dar-lhe dicas. Estão todos a aconselhá-lo?

Está tudo a falar do que é que podia ter sido e não foi. O que é melhor para ti. Mais uma vez, tendo a ideia de inserir a coisa de uma modo orgânico e não ser nem expositivo, nem oferecer uma chave de leitura do filme, interessa-me abordar a questão da definição e das escolhas que cada um pode fazer, e como é que isso depois influencia a tua personalidade e o teu modo de ver o mundo. Como é que insiro isto numa hora e meia quando, por vezes, é um processo que dura anos e nunca acaba? Em particular nesta idade é um processo que dura anos. Portanto, o desafio era esse.

 

Dinâmicas geracionais

A personagem do Nicolau está numa fase de indecisão. E retrata um pouco as dinâmicas de gerações deste meio. Somos os primeiros a dar-nos ao luxo das indecisões, porque os nossos pais tinham trabalho, carreira, ascensão social e padrão de consumo. Hoje, mesmo com mais estudos e ferramentas, nada está garantido. Somos a primeira geração do início da precariedade, falo de uma precariedade soft, porque temos sempre onde dormir e temos ajuda, em última instância. Já a geração do Nicolau tem menos oportunidades, é muito mais difícil uma série de coisas, habitação, trabalho.

Por outro lado, há ali um padrão de «rapazes Peter Pan», que não conseguem ser adultos, que reconheço também em alguns amigos. As raparigas são mais decididas e pragmáticas. O Nicolau, apesar de estar na fase das indecisões todas, ele próprio, como personalidade, é um gajo indeciso, um pouco cata-vento. Como te interessa essa postura indecisa da vida?

Embora com todas as nuances da noção de geração, neste meio social e neste contexto há uma questão geracional que é a de gostar de muitas coisas e não gostar de nada, ter muitos estímulos e ao mesmo tempo um niilismo existencial de que isto não serve para nada, uma precariedade laboral também muito grande, uma infantilidade ou infantilização que leva, de facto, à dificuldade em tomar decisões, a uma superproteção. Não há necessariamente uma questão de género embora, de modo geral, posso dizer que, pelo menos as raparigas que conheci no casting, são mais decididas e têm as ideias mais no sítio. E as que tive mais interesse são raparigas com uma ideia de ser mulher, em que isso implica também uma força e uma desenvoltura de «isto é a minha voz e quero tê-la», enquanto os rapazes estão mais perdidos.

cena de 'A Vida Luminosa', João Rosas, Midas filmescena de 'A Vida Luminosa', João Rosas, Midas filmes

O filme toca, ao de leve, na «crise» de masculinidade (num contexto restrito), em que não se sabem recolocar enquanto «homem», longe do papel do provedor ou do machista assumido.

Confesso que não pensei muito sobre isso.

O que te interessava desenvolver na personagem do Nicolau?

Ele estar mais num lugar de escuta do que num lugar de fala e, portanto, serem sobretudo as mulheres que falam e ele ouve. Interessava-me essa passividade dele. É uma mensagem, um gesto político humilde e pouco vincado da parte do filme. Vivemos numa época de sobreprodução de discursos, discursos cheios de certezas e realmente feitos por homens, muitas vezes. A mim interessava-me o contrário, que era o cinema ser esse lugar de ouvir o outro, o lugar do silêncio, de ter tempo. Para mim a personagem do Nicolau está muito ligada a essa ideia.

É um protagonista que se deixa moldar pelos outros. Quase estamos dentro da sua cabeça a ouvir os conselhos todos, há sempre alguém a tentar levar a resolver a tua vida, a tentar ajudar ou a conduzir para algum lado que não é necessariamente onde vai.

E portanto, as cenas estão muito construídas em torno desses monólogos, sobretudo femininos, que ele vai ouvindo, desde a primeira rapariga, a Andreia, que está no bar e depois na cena com um longo traveling dela a falar da sua vida, depois temos a espanhola também em cima da árvore, temos obviamente a Chloé a falar do seu projeto, temos a italiana que fala sobre os seus pais… As cenas são construídas a partir desses monólogos que vou escrevendo, a partir de coisas que me interessa trazer para o filme e a partir das pessoas.

O caso da Gemma, que é a rapariga catalã, é um bom exemplo desse casting. Ela foi ler o papel da Chloé, da francesa - que nesse caso seria espanhola, obviamente mudava-se - mas não tinha a ver com aquilo que eu tinha imaginado para a personagem, só que percebi imediatamente que tinha de a ter no filme. Depois seguiu-se uma série de conversas para construir esta personagem e tentar perceber onde é que fazia sentido encaixá-la no argumento. E ficou na ideia do Nicolau mudar de casa, viver numa casa partilhada, era um bocadinho esse espaço em que o filme se abria.

 

O desejo e a amizade que expandem o imaginário 

Nessa parte, senti que faltavam mais cenas dentro da casa partilhada, para se perceber. Ele tem ali uma estranheza. É a primeira vez numa casa fora dos pais, mas já está tomada pelas plantas, pelas coisas das raparigas, ele está ali um bocadinho peixe fora d’água. É uma coisa super importante, ir viver com amigos, não se sair da família para constituir outra família, ter experiências intermédias. Então, esse aspecto ficou-se pelas cenas com as raparigas, mas uma hora e meia não dá para tudo…

Eu filmei mais cenas na casa. E tinha essa ideia, mas depois não funcionava em termos de ritmo. Houve muitos fios narrativos que tive de abandonar, que estão apenas sugeridos no filme. 

E a Chloé, rapariga bonita, mais velha, interessante e viajada, abre-lhe a cabeça com uma série de leituras e de interesses. O Nicolau fica um bocado «a apanhar bonés», mas está a alargar horizontes. Abrir o imaginário através de alguém por quem nos apaixonamos, é um modo de experimentar coisas e mundos. Ao mesmo tempo, ele está na fase de «já chega de brincar, tens de trabalhar, de fazer dinheiro». Quer viajar e curtir e, ao mesmo tempo, é preciso começar a ser responsável, ter trabalho. O apelo da viagem, ou da viajante - uma relação de deslumbramento, e ter de começar a sedimentar uma vida de adulto, achei interessante esse dilema.  Como é que a personagem vive estas duas forças?

Sim, é um dilema que não diria que toda a gente tem, mas muitos de nós temos. Está até na Bíblia essa divisão entre o nomadismo e o sedentarismo. Interessava-me porque é uma coisa também geracional e tem a ver com o personagem, mais uma vez ligada a estas possibilidades infinitas, esta ideia de que tanto posso ficar aqui como ir embora. Isso no filme está apresentado com aqueles elementos da oferta de emprego mais séria, por parte do Constantino, a possibilidade da banda, de gravar o álbum, ou seja, aqueles projetos que ele no fundo estava a cultivar e que eram razões para ficar, mas na verdade ele depois abdica disso.

Abdica, quer dizer… na livraria deixa a dúvida. Há a proposta de ficar chefe de loja, mas não se percebe se ele aceita ou não.

Ele diz que vai pensar e depois o filme continua. É quando ele diz ao Miguel da banda, que se vai embora.

Portanto, ficamos a perceber que ele não fica, vai atrás.

Enfim, também pode haver a leitura de que não se sabe muito bem. Ele diz que pode estar a pensar em cemitérios e, na verdade, não se vai embora. Fica em aberto.

 

Filmar o nosso próprio meio 

O documentarista brasileiro Eduardo Coutinho sempre fez filmes do sertão, das favelas, sobre os «outros» e, quando um dia, está a filmar o Edifício Master, um prédio em Copacabana, bloqueou, a burguesia é desinteressante, no sentido que é mais difícil ter uma postura etnográfica sobre o meio a que se pertence. Também muda a relação com a imagem. As pessoas na “favela” mais facilmente começam a mostrar-se, enquanto que elaborar a palavra para criar interesse, é outro tipo de exigência. De tão familiar, há uma forma de falar que nem reparas.

No filme A morte de uma cidade (2022) filmaste trabalhadores da construção civil, mas, em geral, os teus filmes são muito a partir do teu «lugar de fala», fazes o exercício de filmar o teu próprio meio. O que é que te interessa?

Acho que está um bocadinho ligada, se calhar, à divisão de género cinematográfico. A ficção acaba por ser um bocadinho a maneira de trabalhar essa realidade que me é mais próxima. Mas todos  dependem sempre do encontro com o outro. De facto, para mim, isso está ligado à dicotomia entre a escrita e o cinema. A personagem do Valério (o editor Vasco Santos) diz que se calhar eu (a personagem do Manuel) devia ser escritor. Para mim, a dificuldade da escrita ou a riqueza do cinema é esse movimento de aproximação ao outro, mesmo que esse outro seja alguém parecido comigo ou da minha “classe social”.

Nesse processo de parecenças também estás a auto-caricaturar.

Por exemplo, nas cenas da papelaria Tigre de Papel, há ironia em relação à personagem do realizador e o papel social em que os realizadores são colocados, e eles próprios muitas vezes se colocam, com estas dúvidas existenciais acerca dos seus projetos. Interessava-me caricaturar isso, claro, mas relacionando-o com a problemática do filme, ou o tema central, que era a questão do Nicolau estar a ouvir uma pessoa 20 anos mais velha a dizer “sou isto, mas se calhar devia ser aquilo, se calhar tomei as opções erradas”.

Estão todos a fazer balanços. Digamos que são pessoas quase de “esquerda caviar”, não tanto. Mas dar-se ao luxo da diletância e indecisão é uma questão de classe. Há que assumir isso, quem vive na periferia, tem filhos cedo e dois empregos para pagar as contas, não pode diletar em nada. Portanto, há aqui uma linha de cor e de classe muito vincadas também, na postura de quem pode questionar o “ser adulto”, pensar, poder ser mais infantil. Para já estás a documentar que isto existe, esta realidade de classe média-

Essas pessoas existem, não é?

E têm problemas à mesma, só que noutra escala.


Quem é que é esse outro? 

Usas muito a expressão “aproximação ao outro”. No sentido dos encontros? 

Sim, de outra pessoa. Não necessariamente no sentido de alteridade, do outro. Embora depois isso, no filme da obra, A morte de uma cidade, muda completamente essa relação, como estavas a dizer. Portanto, estar a filmar a Cécile, que faz de Chloé, ou a filmar o Jorge no estaleiro, onde ele está sujeito a uma série de violências, implica posicionar-me de maneira diferente, essa relação também muda. Quando eu digo outro… quando estás a filmar outra pessoa é sempre outra, ou seja, há sempre uma câmara como intermediário, há sempre uma relação de poder que se estabelece. Interessa-me desconstruir essa relação de poder, seja com pessoas como o Francisco/Nicolau, seja com o Jorge, ou o Armando, ou o Mamadou. Isso é interessante e fascinante no cinema, como é que esse encontro depois se transforma numa relação que, tento, ser uma relação horizontal, de partilha e de diálogo, e não uma relação de poder instituída pela imagem que estou a produzir dessas pessoas. Agora, também sinto, pelo menos para já, uma certa legitimidade maior para falar daquilo que me é próximo, e familiar, e aquilo que conheço. Claro que depois o cinema tem esse lado da curiosidade. O lado até mais político do cinema, mais do que do cinema político ou panfletário, é essa curiosidade perante o que não conhecemos.

Há surpresas mesmo naquilo que achamos conhecer. Tal como podes ir filmar noutro continente, de facto não é menos político filmares, com ironia, o teu próprio lugar. Numa leitura política de A Vida Luminosa, vejo também falência de alguns projetos sociais. Por mais vida comunitária, por acumulação de experiências, até que ponto é que isso é transformador da vida geral? Não dá para encaixar as pessoas em protótipos de qualquer coisa, mas acho que o filme, parecendo muito suave, depois vê-se que há aqui uma geração neste meio que também não desata, está muito condicionada. Há qualquer coisa de angustiante.

Também fui percebendo isso ao longo dos castings pelas pessoas que fui conhecendo, esse lado angustiante, as pessoas sentirem-se de mãos atadas. Bem, não é só na geração deles, eu acho que na nossa. E mesmo a geração mais velha, que no caso português fez, ou viveu o 25 de Abril, há esta sensação, que ouço muito a minha mãe dizer, «nunca imaginei que isto fosse possível voltar a estes discursos», ou que certas coisas voltassem a acontecer. Acho que toda a gente, pelo menos à esquerda, está um bocado estupefacta e deprimida sem saber como agir. Agora, a minha contribuição, neste caso com este filme, é mostrar como estas pequenas relações, o que há de não explicitamente político, mas subjacentemente sim, nestas relações e na maneira de viver a cidade, e de retirar a luminosidade destes pequenos momentos. Como é que estas relações, de amor, mas sobretudo de amizade, a importância que elas têm na vida individual e na vida coletiva. Espaços, por exemplo, onde eles se encontram, ali na Quinta do Ferro. São elementos que eu vou pondo lá e que muitas pessoas não veem isso, mas para mim tem o mesmo valor, por exemplo, que a Cinemateca. A sala de cinema como lugar de experiência coletiva, como lugar de comunhão, com uma massa de desconhecidos. Hoje em dia, o cinema, tal como tantos outros espaços deste género, está em decadência.

Sobretudo a vivência social do cinema.

A mim interessa-me que o filme os fixe, enquanto existem.

Celebrá-los de alguma forma.

Exatamente.

Ainda que a tua celebração do cinema no filme seja, mais uma vez, esse lugar de encontro do cinema, onde as pessoas estão e veem filmes juntos, comovem-se e há uma relação com o filme e com o espectador, mas depois gozas com o mundo encriptado e snobe do cinema de autor. A personagem do Nuno Lisboa, por exemplo, que só fala por citações. Porquê é que te lembraste de fazer assim?

Tal como no filme da obra (A morte de uma cidade), acabou por se tornar, a certa altura, um filme feito com amigos, no sentido em que foram criadas relações de amizade e a minha vivência do estaleiro passou a ser muito mais uma vivência de convívio sem filmar do que propriamente a filmar, apesar de ter filmado muito. Passou a ser um espaço onde eu ia todos os dias para estar com aquelas pessoas, almoçava lá, passava lá o dia porque era uma relação de amizade, tal como ia à casa de alguns deles não para filmar, mas para estar com as pessoas. Aqui também me interessa trazer alguns dos meus amigos. E por isso é que eu falava de relação no início. Há esta questão da relação de poder quando se filma alguém, seja alguém como tu ou seja alguém como um trabalhador das obras, há sempre uma relação de poder que se estabelece e que é preciso desconstruir, mas há também este lado da relação com a cidade ao longo dos anos, como é que o cinema trabalha essa relação com os lugares, seja no cotidiano, seja na memória deles. E as relações de amizade com pessoas. Tal como há lugares da cidade que me interessa dar a ver e partilhar com quem não os conhece ou os vê sob outra luz, a mesma coisa com as pessoas, com os amigos. No fundo, estas pessoas acabam por fazer variações delas próprias, de coisas que eu gosto nelas, ou de coisas cómicas, como é o caso do Constantino (Bernardino Aranda), ou do Vasco (Santos), ou de mim próprio, da Joana (Cunha Ferreira). Vou trazendo para o filme, porque são pessoas com quem tenho uma relação prévia, e essa relação está na própria escrita do filme. 

 

A amizade 

És uma pessoa muito leal às amizades. E nos filmes a amizade está muito presente, porque é muito o espelho da tua forma de estar na vida em relação à amizade. A amizade é um dos teus vetores.

Isso dá pano para mangas, mesmo em termos filosóficos, há uma longa tradição sobre amizade, mas de um ponto de vista pessoal e essencial é isso, a amizade como uma das relações centrais naquilo que é a formação da identidade de cada um. De facto, para mim é muito claro esse movimento do que as amizades me deram a partir do momento em que, enfim, saí um bocadinho da alçada da família, esses primeiros anos de vida quando nós estamos na unidade familiar, uma ou duas famílias, mas que está muito, naquele contexto, a escola onde os teus pais te dizem para ir, tens os amigos que são os filhos dos teus pais. E a partir do momento em que começas a escolher os amigos… são relações também muito interessantes do ponto de vista narrativo, tal como as relações entre irmãos. 

No contexto da precariedade, num país em que os “amiguismos” funcionam, num país de lobbies, e definem até o sustento de alugmas pessoas.  Vemos um pouco o amigo do pai, o publicitário «olha, falei com o meu amigo». Tu estás a falar do ponto de vista fundacional, da amizade, mas também há o «desenrascanço».

E o filme, ainda que seja um apontamento, também toca nisso. Desenrascanço não só económico, mas há esse lado da amizade que é o desenrascanço afetivo. Quando acabas uma relação amorosa, quando morre um dos pais. Enfim, a expressão «ombro amigo» por alguma razão existe. E sobretudo são relações que podem ser muito variadas. O clássico de que “não escolhes os teus pais, os amigos escolhes”. No amor, mesmo que estejas numa relação poliamorosa, há um limite de parceiros que consegues, na prática, cultivar. Já amigos, podes ter pessoas muito diferentes entre si, que te dão coisas diferentes.

E gostas delas para além de te identificares ou não politicamente. Está para lá disso.

São vidas com as quais estás em contacto, mas ao mesmo tempo há um lugar oculto. Da tua família, já sabes a história de cor e salteado. Os teus pais, a sua ladainha, o que é que eles fizeram e não, e não sei o quê. Partilhas o quotidiano com a pessoa com quem vives, tens uma intimidade muito específica, mas não tens propriamente a novidade. Já os amigos são aqueles que te abrem as janelas e deixam o ar entrar. Só pela pergunta “que é que tu tens feito”, isso logo é um arejar que as outras relações não têm. O cinema nasce da cidade, para mim, mas também nasce da amizade, essas histórias que os amigos contam. Na verdade, muitas das coisas que estão no filme são histórias que os meus amigos me contaram, ou coisas que me aconteceram com eles, coisas que vivemos juntos.

O filme começa com a história de desamor e de coração partido. E a melhor amiga, que já apareceu nos outros filmes, regressa de uma temporada fora. O desejo vai e vem, as namoradas vão e vêm, mas a amizade é mais perene. Acaba por ser isso que nos ampara, nas nossas vidas atribuladas.

Diria que o que une, de facto, estes quatro filmes é a amizade. Será a tetralogia da amizade mais do que do amor. Claro que há um crescimento das personagens, nomeadamente do Nicolau. Mas já o Entrecampos tem isso e, mais uma vez, ligado à cidade. Agora apercebo-me disso, como é que aquele primeiro filme que faço nasce do desejo de filmar a cidade (e a infância). A curiosidade que está na origem do cinema e do gesto cinematográfico, este interesse pelo mundo, por explorar, por conhecer o outro.

cena de 'A Vida Luminosa', João Rosas, Midas filmescena de 'A Vida Luminosa', João Rosas, Midas filmes

A amizade desenvolve-se nos 4 filmes.

Olho para trás e vejo que os filmes têm essa ideia, de facto, da amizade e do encontro. Por um lado, essa apropriação do espaço pela Mariana e ela transformar esse espaço num lugar vivido. E como é que essa primeira amizade com o Nicolau é o que a leva a sentir-se em casa e depois a acabar a perder-se num fluxo urbano, tal como o Maria do Mar é o olhar daquele adolescente de 13, 14 anos para os amigos do irmão. Perante um grupo de amigos, o que é que é a amizade, que dinâmicas é que há ali, quem gosta de quem. Enfim, e como é que a amizade muitas vezes está nessa fronteira com o amor ou com o desejo, etc. E para mim, então, é isso, é um tema muito rico.

Literatura e cinema 

Uma das grandes diferenças entre cinema e literatura é a interioridade?

Sem dúvida. Há pouco tempo estive a ler A Tradução do Mundo, do colombiano Juan Gabriel Vásquez, são umas Conferências Weidenfeld de Literatura Europeia Comparada. Ele começa por mencionar uma conversa que teve com a Zadie Smith e com outro escritor líbio exilado em Inglaterra, sobre a ideia do “lugar de fala”. Referem que há uma crise da literatura quando, por exemplo, ele como homem é acusado de não poder escrever sobre uma personagem mulher. E a própria Zadie Smith diz «se não me deixarem escrever sobre pessoas que são diferentes de mim, a literatura morre». E, portanto, ele associa a alteridade também à literatura. A literatura vive desta capacidade e invenção de te pores na pele do outro. Na literatura, pões-te na pele do outro mas, de facto, o pensamento é interior. E, portanto, há essa grande diferença entre a palavra e a imagem, entre o interior e o exterior, entre o público e o privado, que muda o tipo de relação que tens com o «outro». Por muito que a literatura seja baseada em alguém real que tu entrevistas, a imagem, este lado de exterioridade, muda essa relação. É a razão porque continuo a fazer filmes, porque o cinema dá-me isso que a literatura até agora não me deu e não sei se vai dar, apesar de eu continuar a… 

Estamos à espera do romance.

É uma coisa que eu tenho sempre… Quero escrever, mas depois acabo por me aborrecer de mim próprio. E o cinema é isso: por acaso, sou convidado para ir filmar para um estaleiro e consigo atravessar essa barreira através da imagem.

Podes pôr o ónus no outro. A força da vida fica mais do outro lado.

Falo com o Francisco Melo (ator que faz de Nicolau) e aquilo é o que me alimenta a própria imaginação e a vontade de construir alguma coisa.

Na tua escrita de argumento, sobretudo nos diálogos, nota-se que és uma pessoa da literatura. A depuração dos diálogos é de alguém que tem esse gosto pela literatura, acho que isso é evidente.

Leio muito mais livros do que vejo filmes, e gosto mais de literatura nesse sentido, como consumidor…

Família e paternidade 

Os pais separam-se. O pai está em mudança, reencontra-se, volta a ser solteiro depois de tanto tempo com aquela pessoa. Mas a figura da mãe ali depois não tem muita continuidade. Porquê? 

Havia mais cenas filmadas com a mãe, mas foi uma questão de montagem, tivemos de tirar muitas coisas.

És pródigo a tirar muitas coisas na montagem, já no Tempo Comum (filme de Susana Nobre, 2018), deu para ver… (risos)

Neste caso, estava a montar com o Luís Miguel Correia, às vezes até me agarrei bastante.

Percebo isso que dizes sobre a mãe. Ficámos com a sensação que o filme não faz  julgamento sobre nenhuma personagem, nem com a mãe. 

Nem o próprio pai está com ar ressentido com a separação.

Exatamente, o facto do pai voltar a aparecer e a mãe não, é por isso, por se reinventar e ele próprio, sair de casa. E isso é uma forma do Nicolau, ele próprio, mudar, prepara-o. Ele não muda só através das conversas com as raparigas, muda a sua relação com o pai. A primeira cena com o pai é típica, o pai a dizer «tens que trabalhar, faz alguma coisa da vida». A segunda cena já é uma mudança de papéis e, portanto, a cena até está no meio do filme. Porque interessava-me essa mudança, precisamente, e a função da cena acaba por ser essa, mais do que, obviamente, “ele ficou amigo do pai e não fala com a mãe”, não há isso.

Porque não desenvolves a questão da paternidade, uma vez que tens duas filhas? Não quiseste ainda ir por aí, ou porque o Nicolau ainda não chegou a essa idade?

O próximo filme que vou fazer já é mais sobre isso. Não sobre a paternidade, mas já é mais sobre a nossa idade, ou seja, o protagonista é mais de 40, 45, tem filhos e é mais sobre a crise da meia idade, mas também sobre a importância da amizade.

Mas tem sido um tema sobre o qual te interessa pensar, escrever.

Ao mesmo tempo, ainda estou muito dentro da coisa. É claramente a coisa mais difícil que já fiz, educar uma criança.

Tentar que não venham a ser pessoas infantilizadas e mimadas.

Ao mesmo tempo que não sejam traumatizados porque não lhes demos amor e proteção.

Como tu sabes, temos aquela fase intensa dos primeiros anos de tomar conta, dar tudo. E depois começa a parte mais difícil de educar que é dar umas luzes cada vez mais espaçadamente, nós ainda não estamos nessa fase.

Voltando aos traços geracionais. Na forma de educar, percebemos como somos fruto do nosso tempo e contexto, tivemos uma educação pedagógica diferente do «come e cala», mas não éramos tão mimados como são as nossas filhas. Ouvi um psicólogo a dizer assim: não se pode exigir grande educação sentimental de pessoas que estavam preocupadas com a sobrevivência das crianças que morriam a torto e direito. Então, primeiro estavam preocupadas com a mortalidade infantil, os nossos avós. A seguir, com a alfabetização. Os nossos pais esforçaram-se para que estudássemos, que tirassemos um curso superior. E agora o desafio dos pais atuais, nós, é a saúde mental das crianças no mundo digital. 

Hoje em dia o desafio de educar crianças para serem pessoas autónomas é enorme. Tens uma carga imensa, uma série de pressupostos, já leste muito sobre educação. Queres ser amigo dos filhos e, ao mesmo tempo, eles precisam da autoridade. Não é fácil ser um pai e mãe fixes e não ser condescendente. E depois as “famílias compostas” trazem uma série de problemáticas, de um lado e de outro a educação pode não coincidir. Também cresceste assim entre duas casas, não ficaste traumatizado? 

Não fiquei traumatizado. Agora, claramente, tenho uma personalidade dual. Para mim, mais uma vez psicanaliticamente, o cinema está muito ligado a essas duas janelas: estar na janela de casa da minha mãe e imaginar a vida do meu pai e vice-versa, estar em casa do meu pai e ver a casa da minha mãe. E ainda por cima via literalmente as pessoas dentro de casa, silhuetas. O cinema vem muito dessas janelas, para mim. Depois, também a dualidade entre a literatura e o cinema. Para mim, um mais ligado à minha mãe, o outro ao o meu pai. Tive isso desde os dois anos, portanto, para mim sempre foi assim.

O que podes transmitir melhor às filhas?

Acho que uma coisa a transmitir às nossas filhas e a esta geração é que a amizade não é digital, é de carne e osso. Explicar a importância destas experiências físicas, de estar nos lugares e falares cara a cara e o toque. E as experiências que tu passas e a exploração física que fazes da cidade, de bares, disto, daquilo, como é que isso faz parte. Isso forma muito, ao contrário das relações digitais e das plataformas, ilusórias e altamente narcisistas, da projeção de uma imagem perante o outro.

A série de filmes vai ter continuidade?

Para já sim. Mas quando estou com o Francisco, tenho novas ideias. 

por Marta Lança
Afroscreen | 19 Junho 2025 | A vida luminosa, amizade, cinema, João Rosas, Lisboa