Mediar os imaginários, promover trocas de saberes e práticas, a Mediateca Abotcha inaugura em Malafo

“Como o macaré, fenómeno raro e quase único com várias confluências”, assim é a Mediateca Abotcha definida por Marinho de Pina, arquiteto, poeta, músico, parente da equipa que pôs este projeto de pé, ou melhor, no chão. Macaré é o choque aquático de um rio caudaloso com as ondas da maré enchente, no encontro entre o Rio Geba e o Corubal, na região Oio onde, em 1963, a luta de libertação contra o colonialismo português teve início na Guiné.


A 90 km de Bissau mas com estradas tortuosas de tão esburacadas, chegamos a Malafo. A casa, assente numa fundação de pedra, foi construída em adobe, que responde bem ao problema da temperatura. São 500 m2 de área coberta, uma zona comum em círculo no qual decorrem as atividades e os djumbais (encontros), 4 quartos, divisão da biblioteca e computadores, um amplo alpendre em torno da casa por onde as crianças brincam e se dispersam grupos de conversa. 16 painéis solares, duas cisternas e furos de água, que garante a autonomia da casa, e um forno de lenha que garante pão para todos. O equilíbrio de uma morança (parte de uma aldeia), com quatro famílias do clã na Onça, parentes do realizador Sana na N’Hada, que cuidam do arroz, do caju, gerem a escola de ensino básico, pastoreiam as vacas, respondem ao conflitos com mínima interferência do Estado. É assim em quase toda a Guiné, onde o vínculo à política central é residual. Estamos nesta região simbólica, e passam 50 anos da Semana de Informação em Conakry quando, em 1972, Flora Gomes e Sana na N’Hada filmaram Amilcar Cabral pela primeira vez depois da sua formação de cineastas no ICAIC em Cuba. A 12 de setembro comemora-se o aniversário de Amílcar Cabral (nascido a 1924 e assassinado a 1973), autor de pensamento e ação de maior referência na Guiné e no mundo. 

Encontramo-nos para inaugurar a Mediateca Abotcha, uma plataforma de troca de saberes culturais, sociais e ecológicos, de ativação de workshops, seminários, encontros comunitários e de arquivos (visuais e literários). Contrariando a ideia do que vem de fora, dos negócios offshore, defendem uma Mediateca Onshore, na terra, e Abotcha, no sentido de “ir para o chão”, valorizar a humildade e a perseverança. Trata-se de uma rede de conhecimento a nível local, entre Sul-Sul e o mundo através das artes performativas, dos meios digitais, da arte, da agro-ecologia, dos saberes tradicionais. Uma Mediateca que se inscreve numa ideia de justiça social, económica e ambiental. 

Tudo isto envolto na paz e hospitalidade da tabanca de Malafo, maioritariamente balanta, uma das cerca de vinte etnias do país, conhecida precisamente por sua hospitalidade e mestria no domínio do arroz e das construções. 

O burburinho de gente, pássaros e cigarras enchem o espaço. Crianças de várias idades brincam, ajudam-se, vão à escola mas também trabalham no arroz ou tomam conta das vacas e cabras, conhecem profundamente a sua natureza. Uma mãe dá de mamar para logo ir apanhar a planta do arroz que será enxertada na bolanha (arrozais). Toda a gente está ocupada, colaboração que vai fluindo, mas também há tempo para se sentar a conversar ou em silêncio. As mulheres preparam comida, limpam o chão. Dá tanto trabalho que ordenam: “sapatos sempre de fora”. Dois membros do Grupo de Teatro do Oprimido, companhia parceira da Mediateca, que está a preparar uma peça com a comunidade, vêm buscar colchões pois complementar as dormidas de hóspedas na escola da aldeia, outra peça fundamental para esta Mediateca dar certo. Os professores da escola dizem-se maravilhados com a biblioteca acabada de chegar. Os livros, de doações particulares, de editoras e institutos, foram reunidos por três meses na Anozero Bienal de Coimbra, com programação ativada também por estudantes guineense. Envolvida neste projeto, a que chamámos Bibliotera para contrariar a ideia de verticalidade e hierarquia do saber, vim acompanhar os livros para a sua nova casa. Podemos referir este gesto como um pequeno contributo para pôr em prática um dos objectivos da resistência cultural que Cabral definiu: o “desenvolvimento, com base numa assimilação crítica das conquistas da humanidade nos domínios da arte, da ciência, da literatura, etc., de uma cultura universal tendente a uma progressiva integração no mundo actual e nas perspectivas da sua evolução.”

Longo caminho para a materialização da Mediateca

Filipa César refere que a origem da Mediateca Abotcha deve-se a dois fatores: “o arquivo do cinema da luta de libertação feito pelo Flora Gomes, Sana na N’Hada, Josefina Lopes Crato e José Combumba e a vontade de uma biblioteca manifestada pela tabanca e Pereira na Onça”. Dedicação e persistência do núcleo duro composto por Sana na N’Hada, Suleimane Biai (membros da Geba Filmes), Marinho de Pina e Filipa César e os cúmplices da terra, Pereira e Bedan na Onça, que vão gerindo a casa, Braima Conté, condutor que tudo desenrasca, e as pessoas da comunidade onde todos são essenciais. Foi em 2017, após a estreia de Spell Reel em Berlim, que tiveram a ideia de criar um espaço para mostrar e criar imaginários. Fazia sentido situá-lo ali, na terra natal do cineasta Sana na N’Hada que, num encontrou com Chris Marker nos anos 60, falaram de uma “videoteque”, como preservação de arquivos visuais e de troca de saberes. Sana estudou cinema em Cuba e filmou a luta de libertação em condições inimagináveis, tais como caminhar por cinco dias até Conakry para levar o material filmado ou carregar baterias e regressar trazendo mais película, para no fim de tudo constatar que, numa guerra, nunca há vencedores. Ao longo dos onze anos de colaboração com Filipa César foi sendo um sonho crescente entre ambos. Conseguiram um fundo (cerca de 40 mil euros na Alemanha, porque fazem questão que todos saibam os valores, transparência é palavra de ordem) para construir o espaço. Durante quatro meses, edificaram as fundações e a casa, os membros da tabanca participaram. Apesar de um projeto base, a construção foi sendo negociada e alterada (portas, disposição da cozinha etc) até à última. Acolhiam ideias e contributos, como a fossa de bananeiras e a horta Nhambrakutar, em espiral, criada pelo artista Sancho Silva com a comunidade na sua residência.  

Os dias de inauguração 

Muitos vieram saudar a nova Mediateca Abotcha a 11, 12 e 13 de setembro. O primeiro encontro destinou-se à troca de ideias para o espaço entre alguns parceiros. Forum da Paz, Teatro do Oprimido, Malmon, um projeto científico de agronomia coordenado por Marina Temudo, que valoriza e preserva as formas de cultivo do arroz africano e tem ali uma estação meteorológica, a colaboração da realizadora argentina Melina Pafundi que veio dar formação do aplicativo Pan.do/ra de organização de arquivos. A Bibliotera é muito elogiada pela necessidade de ferramentas de educação, de leitura. Estiveram ainda presentes Teresa Montenegro, estudiosa da literatura oral e da riqueza do crioulo (nomeadamente os provérbios) e fundadora, com Abdulai Silla, da primeira editora guineense Kusimon, e o Raúl Fernandes, sociólogo e professor na Universidade Amílcar Cabral. 

Fala-se em crioulo guineense, língua franca das 17 línguas na Guiné Bissau. Tio Pereira (no tempo da luta, colega de Flora Gomes na Escola Piloto de Conakry) dá as boas vindas as donos da terra, professores, estrangeiros: “na tabanca mais antiga de Mansoa, inauguramos a nossa casa bonita que vai servir para todas as comunidades. O conhecimento é ilimitado.” Filipa César introduz o atelier que promoveu, com Sónia Vaz Borges e Marinho de Pina e a comunidade de Malafo, sobre modos e arquiteturas de educação durante a luta de libertação. Foi aí que construíram coletivamente a primeira maquete da Mediateca na pátio da escola. Suleimane Biai defende a Mediateca como um espaço de solidariedade e relembra Cabral que disse “os que sabem devem ensinar os que não sabem”. Valoriza a vinda dos livros, mas é da opinião que, nas escolas, as matérias deviam ser lecionadas em crioulo. Como dirigente do Fórum da Paz Jasmina Barkhausen reforçou o mal que a Alemanha fez aos países africanos e como a Guiné é território de memória e de luta. A importância dos filmes e arquivos para estudantes, e saber interpretar o arquivo pois não há memória neutra. Associou este projeto aos efeito da luta de Cabral até hoje, uma vez que envolve agricultura, ecologia, crioulidade, igualdade de género, interculturalidade e práticas de paz. Também estiveram presentes representantes da Satna Fai - Associação de mulheres agricultoras de Malafo, com a porta voz N’sai Ndiba que gere, com Pereira na Onça, a Mediateca e que construiu a padaria Abotcha.

A artista Filipa César reforça a importância de manter a Mediateca comunitária, independente e sustentável, com parcerias internacionais mas sem dependências de ONG. É preciso “não ser muito exaustivo e cuidadoso na oferta de atividades, a comunidade tem uma economia local própria que deve ser respeitada para não desestabilizar o equilíbrio que existe.” Convidou o tecelão Zé Interpretador a tecer em pano pinti uma carta que datilografada pelo realizador Chris Marker para o Sana, na qual falava de formatos de vídeo, do animismo dos computadores e de uma videoteque. Filipa César valoriza em todo o seu trabalho artístico essa articulação entre “novas tecnologias e tradições futuristas”. E a tecelagem, transversalmente presente em todas as etnias guineenses é, não só a origem da computação, como a materialização do princípio do entanglement que informa a Mediateca. “Mediar por vários meios, cabe pensar a tecnologia de outra maneira, mediar os imaginários, pode ser do modo oral, manual, analógico, digital ou performativo”, refere César. 

No dia seguinte vieram mais visitantes, representantes e população das comunidades da região. O escritor Abdulai Silla conta-nos estratégias para “acender a chama da leitura”, criando comunidades de leitores a exemplo de uma escola da periferia de Bissau. O cineasta Flora Gomes fala da Escola Piloto de Conakry, de como algumas pessoas da sua geração viveram um momento único e histórico, que nunca mais se voltará a trabalhar naquelas condições. Incentiva a continuarmos as propostas de Cabral que foi o “passaporte de um país livre”, e de construção nacional para todos os guineense. “Quase 50 anos depois do seu assassinato, está aqui o somatório da luta e do sacrifício de muita gente, importa seguir as suas pegadas fazendo coisas, como vídeo, pintura. Contem a história da luta de libertação.”  

O ambiente foi de festa e o contentamento foi várias vezes repetido. Além do pano di pinti que a comunidade ofereceu a alguns amigos da Mediateca, duas vacas foram sacrificadas, quanto mais sangue mais felicidade. Digamos que estas vacas tiveram vida feliz, e trata-se da mais curta cadeia alimentar, do curral a 200 metros ao ar livre entre o verde, porque a soberania alimentar é um dos pontos de ação. A carne tem de chegar para os hóspedes e para todos. Logo a seguir ao jantar um grupo de homens reúne-se para combinar uma mais eficaz gestão da distribuição da carne no dia seguinte. 

À noite mostramos o filme angolano Cidade Vazia de Maria João Ganga, um menino órfão que vem do Bié para Luanda na guerra civil. O filme é longo e sereno, mas as cerca de 40 crianças não desprendem a atenção. Nunca vi plateia infantil tão atenta e disponível. Houve ainda uma djam session com o o Fili e Demba Dabaté dos Super Kamarimba, de guitarra, percussão e improviso, naquela dolência de Marabu mandinga de Tabatô.

Sana na N’Hada mostrou parte do seu, agora da Mediateca, arquivo da Luta de Libertação (Semana da Informação, Conacri, 1972, e Declaração da Independência em Boé, 1973) identificando uma série de personagens da luta. Considera que, depois de abrir as portas, se entra numa nova fase muito importante. “Justificar o que queríamos aqui, se estamos à altura da expectativa.” Os meios estão aí, a Mediateca vai ganhando forma, os sonhos não se limitam.

 

Publicado originalmente, numa versão ligeiramente diferente, no Público a 3/10/2022

por Marta Lança
A ler | 22 Maio 2023 | Abotcha, balanta, Filipa César, Guiné Bissau, Malafo, Marinho de Pina, mediateca, Sana Na 'Hada