Romper o silêncio, fazer o luto, Luanda – 30 anos do 27 de maio (2007)

“Não são os gritos dos maus que me magoam mas o silêncio dos bons”. Cabeças em silêncio acenam às palavras de Martin Luther King. Um silêncio de introspecção e concentração naquele momento colectivo em que se dá a voz ao primeiro que insiste em ser dos “bons” e escrever sobre uma nuvem negra que pairou por demasiado tempo. É como um mantra em forma de palavras de ordem: “nunca mais a barbárie na nossa terra, nunca mais a mentira para servir interesses nunca confessados.”

Miguel Francisco, “Michel”, um jurista que não é escritor nem jornalista dá o seu testemunho no livro Nuvem Negra – o drama do 27 de Maio de 1977 lançado em Luanda.


O testemunho é uma transmissão simbólica. Sabemos como o sofrimento é indizível, mas contar a barbárie ajudará a não repeti-la. O gesto de escrever este livro e lançá-lo em Angola (“só quem não sabe o que é Angola não sabe o que é coragem”, diz Reginaldo Silva na apresentação do autor), é um incentivo para que mais pessoas impliquem a narração da sua experiência no processo histórico. 

Duzentos angolanos juntaram-se no Chá de Caxinde, sob o “jango” do restaurante em plena baixa de Luanda, para combater o silêncio. Há três anos que esta reunião tem lugar na terra onde a tragédia começou, no mesmo alcatrão onde desfilaram populares e militantes de esquerda que acreditavam na pluralidade de ideias para a recente independência, entusiasmados com os discursos de Nito Alves. Uma insurreição que ficou oficialmente conhecida como “tentativa de golpe de Estado” protelada por “fraccionistas”, à qual a resposta foi a descontrolada “caça ao homem”, sob governo de Agostinho Neto. Na cidade onde as paredes das prisões, quartéis e apartamentos permanecem emudecidas - e apesar do branqueamento dos jornais (só o semanário privado Angolense publicou um texto sobre o assunto), apesar da pressão para calar e esquecer, os arrepios que eriçam (a dor é física, durante e depois) - as pessoas desejam estar juntas para lembrar um imenso equívoco que fez suceder destinos fatídicos. 

Não há coisa mais triste para um angolano do que comer funge sozinho e, nessa tarde de comoções, amigos, familiares das vítimas, filhos de falecidos, ex-presos e sobreviventes de ímpar matança (todos os dias se interrogarão que bênção os terá poupado ao destino dos restantes) comeram juntos para não esquecer, uma tentativa de fazer a catarse e o luto desta história. Também o horror vivido no campo de reabilitação de Luena fez eco no almoço comemorativo dos 30 anos do 27 de Maio, organizado por Reginaldo Silva e Rui Lopes (Macau). 

Para Luís de Passos, presidente do Partido Renovador Democrático que, na altura, diz ter mobilizado os populares do Sambizanga para a Rádio Nacional (sabendo que os cubanos iam carregar) e ficou escondido nas matas até 1990 (impressionantes dez anos), “uma ferida dolorosa continua aberta”. Há uns anos organizara uma romagem ao cemitério “km 14” prestando homenagem àqueles que, em Junho de 1977, para lá foram levados, fuzilados e imediatamente enterrados numa vala comum. Foram poucos os que participaram, o receio ainda era dominante. Até 1990 não se falava sobre o assunto. Lamenta o não pronunciamento do governo que, “se pretendesse de facto a reconciliação dos angolanos, deixava as pessoas falarem livremente, com espaço na comunicação.” Há cinco anos, saiu um comunicado do Bureau Político do MPLA que assume que a reacção à acção desencadeada pelos “golpistas” comportou exageros. Muito pouco para tamanho enredo sanguinário, quase nada para o imperativo da memória. Desde então silêncio e zero respostas.

Voltemos ao almoço, mais uma garfada de cabidela ao som das canções em quimbundo dos anos 70. Os organizadores, Macau e Reginaldo Silva, predispõem-se a informar os mais jovens que tantas dúvidas acumulam sobre este complexo processo. Vão caindo nomes, de alguns carrascos (a culpa é um fardo difícil de carregar), mas sobretudo de camaradas torturados, companheiros de cela, filhos, irmãos e até afilhados de nomes para sempre associados à ”intentona fraccionista”. Explicam-se as correntes ideológicas, as diferenças que já na altura existiam e o aproveitamento do suposto “fraccionismo” para dizimar sem norte, em Luanda e sobretudo nas províncias, Malange, Namibe, Benguela, Moxico, Cunene. 

O que interessa agora é cuidar dos vivos, mas é preciso fazer o luto dos mortos. João Van Dunem, que foi mandado buscar a Cuba para ser preso em Luanda, está ali por razões muito íntimas. Refez a vida no estrangeiro, trabalha como jornalista da BBC em Londres, tendo sempre o peso do mistério da morte do irmão e da cunhada (José Van Dunem e Sita Valles), mantendo vivo o desejo que se faça a “discussão sobre os frágeis acontecimentos de 77 para se exorcizar os fantasmas e os medos.” Com gestos delicados, quase tímidos, explica como é sagrado para os africanos prestar homenagem aos seus mortos e como desconhecer o que aconteceu, onde estão os restos mortais e não poder enterrá-los, lhes impossibilita o “comba” necessário. João Van Dunnem não se considera uma pessoa ressentida, é um humanista de formação, mas diz haver momentos em que se sente “árvore sem raízes” pela amputação do passado, pelo desaparecimento dos seus amigos e familiares.

“Tenho sabido lidar com isto porque convivo com pessoas que viveram a mesma coisa. Às vezes estou mais receptivo, outras fragilizado, com raiva, emoção, ou não consigo falar.” É Quim Carvalho que o diz, outro dinamizador do almoço, preso durante 27 meses e regressado a Angola há três anos. Lembra que há coisas legais e urgentes a tratar: “reconhecer que as pessoas morreram, quem, quantos e onde. Antes ainda de se pensar em penalizar os culpados é preciso dar as certidões de óbito às pessoas. Há filhos que ainda não estão registados, só da parte da mãe, pessoas que não puderam divorciar-se. Depois resolve-se a parte política. O problema foi criado dentro do MPLA e é aí que tem de ser resolvido.”

Já passaram 30 anos. E ainda há quem reviva o desespero da simulação de um fuzilamento. E não poucos têm medo de falar. Mas os angolanos não esquecem. Há uma comoção que atravessa as pessoas ligadas ao 27 de Maio pelas mais variadas razões: a cumplicidade que só a dor e o mistério perpetuam em três décadas de não esquecimento. Nesta grande família reunida, com a evidência das palavras de Martin Luther King e relato da experiência de Michel, o silêncio era mais para ouvir e não para calar.

 

Publicado no Le Mode Diplomatique, 2007.

 

27 de maio - repressão na mesma família política   

“O MPLA oficial começa a preparar a liquidação deste outro MPLA, num plano meticulosamente montado. O 27 de Maio é uma armadilha” conclui Álvaro Mateus, co-autor com Dalila Mateus de Purga em Angola, 30 anos depois dos acontecimentos do 27 de Maio em Angola. 

 

Em Angola a violência foi em várias alturas a forma de relacionamento entre correntes de nacionalismo, opinião, ideologia e interesses. O Maio de 77 é um desses momentos trágicos que emudece gerações. Escrever sobre isto implica levantar o véu de um assunto pleno de complexidades, processo que exige coragem, persistência e risco. 

Um “amplo movimento de protesto”, uma manifestação pacífica conjugada com acções militares, nomeadamente a libertação de presos políticos, a tomada da rádio e captura de alguns membros do MPLA sob o regime de Agostinho Neto. O pretexto para uma violenta repressão da qual resultam 30 mil mortos, tendo-se perdido muitos jovens e alguns dos melhores quadros do país, numa razia que afectou inúmeras famílias angolanas. Purga em Angola tenta explicar esta inconsequente ligação de factores. 

A versão oficial dos acontecimentos, que os arrumou numa lógica selectiva de “ou eles ou nós” e especulativa “se eles tivessem tomado o poder”, nunca permitiu que se discutisse a fundo o 27 de Maio. O clima de medo e de violência sedimentou o silêncio e deixou marcas na sociedade angolana: desmobilização de acções cívicas e de opinião pública, receio de críticas e subserviência como meio de sustentação financeira. A herança do 27 de Maio não é necessariamente causa do desequilíbrio da Angola actual como o livro parece sugerir, mas a sua não-resolução criou “um espírito de inibição” que contribuiu para a ausência de debate político e ideológico. É, por isso, bem-vinda qualquer tentativa de acrescento de informação que permita trazer para a mesa mais elementos de reflexão. 

A historiadora Dalila Mateus, que escrevera A PIDE / DGS na guerra colonial (Terramar, 2004) e Memórias do Colonialismo e da Guerra (Asa, 2006), deparou-se com um assunto inteiramente por explicar. Um dos sobreviventes do 27 de Maio, que não compreendia porque estivera preso e as razões de tamanha tragédia para a sua geração, desafiou-a a fazer um estudo sobre os acontecimentos do período de 1977 a 79. O marido Álvaro Mateus, jurista, político e jornalista, foi categórico: “vamos fazê-lo”. Com a força encorajadora do trabalho de equipa, começaram a delicada tarefa de pensar o 27 de Maio.

Colocou-se desde logo a questão das fontes. Pesquisaram em Portugal: arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da PIDE/DGS e jornais angolanos e portugueses. Em relação à pesquisa em Angola, um dos entrevistados, membro da antiga Disa (Departamento de Informação e Segurança de Angola), confidencia à autora que “tudo foi destruído”. Dalila Mateus depreende que pontualmente poderão ter-se guardado documentos mas considera uma tarefa impossível chegar aos arquivos de Angola. Em conversa com o Ípsilon explica que, “à diferença dos processos da PIDE, neste caso não houve nem processo nem julgamento, só listas de mortos com o nome de guerra”. 

Apesar da tentativa de rasurar a memória, as pessoas que viveram o terror não esquecem, sendo os depoimentos a pedra de toque neste livro. Contactaram um vasto leque de pessoas, representantes de todas as partes: ex-presos, polícias, políticos, dirigentes do MPLA, diplomatas portugueses, familiares das vítimas. Alguns aparecem anónimos por salvaguarda, mas as entrevistas são gravadas, identificadas, depositadas na Torre do Tombo e daqui a 30 anos estarão acessíveis. Mendes de Carvalho (antigo ministro e embaixador), general Ramalho Eanes, o historiador Carlos Pacheco, Francisca e João Van Dunem (magistrada e jornalista, irmãos de José Van Dunem), Dino Matross, antigo secretário-geral do MPLA, Maria da Luz Veloso, assessora de Agostinho Neto, Vítor Geitoeira, quadro da DISA, entre outros, ajudaram a perceber a história. 

Depois dividiram tarefas: Dalila Mateus tratou da pesquisa e das entrevistas e Álvaro Mateus dedicou-se ao trabalho de compilação e composição do texto com o domínio da “linguagem política de quem viveu essa época”, elogio que Dalila dedica ao marido. O processo de montagem deste enorme puzzle passou por um jogo entre depoimentos e documentos, articulando os dados disponíveis até que as peças soltas fossem encaixando e inferindo-se os espaços vazios. 

O casal Mateus não partilhava especial relação com Angola, ao contrário de Moçambique, onde ele nasceu e os dois viveram, a não ser através de  amigos angolanos, mas nem as amizades os impediram de reportar os factos, uma vez que Álvaro Mateus fora “vice-presidente de relações externas da Casa de Estudantes do Império, e era amigo de muitas pessoas que vieram a estar envolvidas no 27 de Maio”.

Trabalhar um tema duro como este implica empenho, coragem e uma certa contenção do lado emocional na travessia por histórias difíceis, provindas de vítimas e repressores. Durante o processo foram-se deparando com conclusões decepcionantes: “era um mundo que ruía, aquilo em que acreditámos dos movimentos de libertação, o sonho de uma Angola democrata, com liberdades de progresso”, confessam. Eis o ponto da consternação, da interrogação retórica: como foi possível que estes homens, lutadores contra o jugo colonial, que juraram socialismo e abraçaram ideais de fraternidade, mal chegados ao poder, tenham esquecido a defesa do povo e aniquilado pessoas da mesma família política?

Apesar do estilo mais jornalístico do que ensaístico, num registo que em certas passagens pedia uma abordagem mais aprofundada, Purga em Angola apresenta boa articulação dos factos e elaboração na estrutura. De congratular são os capítulos precedentes do 27 de Maio, desde a fundação do MPLA, a origem das dissidências e a implacável prática de gestão das mesmas, já desde a luta anti-colonial (Matias Migueis e Hoji-Ya-Henda) e nos casos da Revolta Activa e OCA (Organização Comunista Angolana), estes últimos a quem Nito Alves, enquanto ministro da Administração Interna, também dirigira um discurso de ódio em 1976 apelando à delação e prisão dos seus membros. A reconstituição do dia 27 de Maio com transcrição dos comunicados da rádio (gravação do Miguel Lemos) convoca uma dimensão cinematográfica pelo ritmo tenso dos acontecimentos, que se espraia no terror que se seguiu, cujo enfoque vai para os campos de reabilitação, descrição de casos de presos (sem omitir as terríveis torturas) e histórias de desaparecidos, como Sita Valles e Rui Coelho. Deste último são publicadas duas certidões de óbito, a primeira com data de quando estava ainda vivo e na Argélia.

Traça-se ainda, no registo biográfico, o destino de alguns protagonistas da insurreição como Monstro Imortal, Juca Valentim, José Van Dunem e Nito Alves. A análise das várias acusações ao 27 de Maio e às Treze Teses de Nito Alves - golpe de esquerda, de direita, golpe racista, ideologicamente radical – revela-se matéria fulcral pois foram estas interpretações ambíguas e pouco esclarecidas que serviram a repressão e o silêncio consequente. 

Para os autores, toda a montagem do golpe está ligada a uma desenfreada luta pelo poder, uma vez que havia, da parte dos dirigentes do MPLA, o desejo de impedir os nitistas - em vantagem pela popularidade junto das massas, pelo trabalho das Comissões de Bairro - de chegar ao Congresso de 77. “Tinham conquistado o poder e os seus benefícios. E agora chegavam uns tipos que tudo punham em causa, invocando antigas utopias. Não os podiam deixar avançar.” E as contas ilustram tal obstinação: dos 110 mil militantes do MPLA, quando termina a purga são 32 mil, números que os autores recuperam do livro apologético sobre Agostinho Neto Uma Vida sem Tréguas.  

 

“Neste trabalho é posta em causa muita gente com responsabilidades políticas”, escreve Dalila Mateus na introdução. É o caso da descrição da Comissão inquisitorial nomeada pelo Bureau Político do MPLA “com o objectivo de seleccionar os depoimentos dos presos do 27 de Maio”, à qual o povo designou de Comissão das Lágrimas, ante-câmara para a tortura e fuzilamentos. São acusados intelectuais e políticos de terem colaborado em sessões de interrogatórios, desvendando um rosário de nomes como Iko Carreira, Manuel Rui Monteiro, Pepetela, Mendes de Carvalho e muitos outros. Neste assunto delicado, sendo as provas escassas, foram seguidas pistas cruzadas para chegar aos nomes: “encontrámos em jornais menção a elementos da comissão das lágrimas, depois os presos falam dessas pessoas”. Os autores têm em conta que, naquela época, “muitas pessoas se empenhavam, convencidas de que estavam a fazer o bem e muito dificilmente reconhecem os seus feitos, porque acreditaram nos seus superiores”. Acrescente-se que muitos sujaram as mãos para salvar a vida. Mas nenhum desses factores desculpabiliza as atrocidades cometidas. 

Como proposta para a atenuação de tanta dor os investigadores e muitas pessoas afectadas pelo 27 de Maio propõem, na esteira de Nelson Mandela do pós-apartheid, a criação de uma Comissão de Apuramento da Verdade, de vertente pacífica e transparente. Seria a oportunidade de apurar crimes e pedir perdão. 

A figura de Agostinho Neto, se para tantos possui a magnitude de um grande herói nacional, é aqui bastante desmitificada, sobretudo pela sua incapacidade de gestão dos conflitos internos. O poeta, médico e presidente que cantava a vida e liberdade, ganha contornos sinistros. Muitas das informações sobre alguns aspectos da sua conduta foram, ironicamente, retiradas do livro de Iko Carreira, O Pensamento Estratégico de Agostinho Neto.  

As linhas sobre a participação da Rússia e Cuba lembram-nos de como os interesses internacionais têm de ser investigados como peças-chave deste drama. No livro avança-se a teoria de que, na tentativa de obter a neutralidade dos EUA e de acalmar os sul-africanos, os dirigentes do MPLA tentam desvincular-se de ligações a partidos comunistas, afastam militantes e ex-militantes comunistas do movimento (tendo sido Neto e Lara do PCP)– o que chegou a atingir estudantes angolanos no Leste - e prendem quadros do ANC e a SWAPO no interesse de “mostrar respeito pela situação existente na África Austral.”

É precisamente sintomático deste processo o papel do PCP. O partido português interrompera as relações com o MPLA antes do 25 de Abril e também se desresponsabiliza da participação de militantes no 27 de Maio, como se evidenciou na trágica história de Sita Valles. Em Setembro de 77, sai no Avante! a versão vencedora dos acontecimentos, intitulada “Informação do Bureau Político sobre a Tentativa de Golpe de Estado do 27 de Maio” e são acolhidos na Festa deste jornal alguns dos protagonistas da repressão, como Onambwé. 

Há também aspectos curiosos na reacção a estes acontecimentos. A moderação de imprensa portuguesa, com excepção de Natália Correia que chegou a falar de “Gulag Angolano”, manifesta uma vontade de manter as diplomáticas relações com o governo angolano sem levantar problemas, comportamento muito similar ao dos dias de hoje. Revelador desse silenciamento é o facto da pasta 27 de Maio no arquivo do Conselho da Revolução conter apenas recortes soltos, quando se terá certamente discutido o dossiê, numa altura de fervor revolucionário e com envolvimento de militantes da esquerda portuguesa. O livro deixa também a interrogação sobre quem seriam os conselheiros portugueses de Agostinho Neto.

 

Na apresentação de Purga em Angola, na Sociedade Portuguesa de Geografia, José Pedro Castanheira referia a capacidade de Angola despertar paixões na opinião pública portuguesa. De facto, é com grande expectativa que se acolhe um livro que possa dar um pouco de luz à história negra de 1977, por haver cada vez mais pessoas interessadas em perceber o que de facto se passou. 

Quanto à crítica de que deveria ser escrito por angolanos, Dalila Mateus contesta contra a propriedade da investigação: “quando um médico descobre um medicamento não é só para o seu povo ou país, é para todo o mundo, tem de ser uma lição para os angolanos e para o mundo.” Questiona ainda se algum angolano poderia escrever isto na Angola actual, tão premente ainda no país a cultura do medo. 

Mas há quem tenha coragem. O angolano Miguel Francisco (Michel), que pertencia à tropa de elite da 9ª Brigada, publicou recentemente Nuvem Negra – o Drama do 27 de Maio (Clássica Editora), e conta na primeira pessoa os horrores vividos num campo de reabilitação em Luena, Moxico, onde assistiu a um sem número de fuzilamentos sumários. Outros relatos de sobreviventes hão-de surgir e contribuir de forma plural para a narrativa deste episódio sinistro da história de Angola. 

Será certamente do surgimento de diversas versões e interpretações fundamentadas sobre esta ferida aberta angolana que a História pode eventualmente fazer o seu julgamento e evitar a elisão da memória. “Este é um livro profiláctico” afirma convicto Álvaro Mateus. E apressa-se a citar George Satayana “aqueles que não conseguem relembrar o passado estão condenados a repeti-lo.” 

 

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As divisões do MPLA

A orgânica do MPLA é a origem de muitos problemas. Explicam os investigadores que, apesar de ser uma frente, o MPLA afigurava-se como um “partido centralista e pouco democrático, na altura com pró-soviéticos, pró-maoistas, pró-titistas e nacionalistas de toda a espécie, com uma tradição de Neto afastar os oponentes”. Foram-se definindo duas linhas, por um lado, “o MPLA dos dirigentes que viviam em Lusaka, Brazzaville, Dar-Es-Salaam, e raramente entravam em Angola, com uma guerrilha em Cabinda sem grandes chefes militares e, por outro, um MPLA composto por homens que se formam como guerrilheiros desde o 4 de Fevereiro de 61, e vivem às portas da capital perseguidos pela polícia política, pela FNLA e que vão sobrevivendo”. Numa comunicação directa com a população, formam redes clandestinas na cidade, amparando as necessidades do povo: “nas entrevistas refere-se a capacidade de ajuda que esta gente facultava em alguns musseques”. Gozam de demasiada popularidade quando o MPLA de Neto chega à cidade para proclamar a Independência. Entre estes dois MPLAs a única ligação é a rádio Brazzaville, nas emissões Angola Combatente. 

  

O que aconteceu no dia 27 de Maio? 

Segundo os investigadores, Nito Alves e José Van Dunem estavam presos, portanto afastados da preparação das operações, tendo sido libertados nesse dia, quando o batalhão feminino abre as portas da Cadeia de S.Paulo. Um grupo de militares invade a rádio para convocar pessoas. Ingenuidade, excesso de confiança? “Foi uma insurreição. No filme feito pela TPA a manifestação apresenta jovens, mulheres e crianças, e não se avistam armas. Tinham tal superioridade de forças que pensaram ser suficiente a manifestação”, depreendem os autores. Entre os militares havia quem quisesse o golpe de Estado mas, contrapõem, “se houvesse golpe, qualquer marxista-leninista sabe que tem de tomar o palácio.” Há pessoas que vão ver o que se passou, são metidas em camionetas e nunca mais apareceram. Os nitistas terão prendido alguns elementos, amigos e inimigos, levam-nos para o quartel da 9ª Brigada e de seguida para o Sambizanga, para casa do futebolista Kiferro que dera ordens para não se tocar neles. Um personagem infiltrado entre os chamados fraccionistas, Tony Latton, tem uma arma, dispara e vai-se embora. “Era preciso dar uma imagem de golpe de Estado e o que havia até àquele momento não passava de uma manifestação” conta Kandanda (militar das FAPLA e elemento da DISA) em 2001 no jornal privado angolano Folha 8. Mais tarde estes generais raptados aparecem mortos numa ambulância que fora trazida do hospital pelo actual empresário Melo Xavier. 

Depois veio a frase de Neto “não haverá contemplações. Certamente não vamos perder tempo com julgamentos”, era a carta aberta para o terror e mortes que se viriam a passar.  

 

Publicado no jornal Público, novembro 2007.

por Marta Lança
A ler | 19 Abril 2022 | 27 maio, angola, Dalila Mateus, genocídio, Michel, mpla