Césaire, o insular que escrevia em movimento
A propósito de uma retrospectiva da obra de Sarah Maldoror, tive a oportunidade de rever os seus filmes sobre o poeta, político e pensador Aimé Césaire (1913-2008), a quem a cineasta guadalupe conhecera no circuito da Présence Africaine na Paris dos anos 50, juntamente com Mário Pinto de Andrade, com quem viria a casar. Interessada em divulgar a cultura negra e o conceito de negritude - palavra fixada por Césaire e reinventada em lutas que perduram até hoje -, Maldoror manteve com ele um diálogo filmado ao longo da vida. Um retrato em movimento, onde os conceitos se transformam em cada enredo.
Esse pendor biográfico e a abordagem das problemáticas situadas que Sarah traz permitem-nos escapar ao “nome canónico” de Césaire e contextualizar a obra no homem. Refiro os filmes Un homme, une terre, filmado na Martinica em 1976, e Et les chiens se taisaient, de 1978, adaptação da peça homónima de Césaire, apresentada nas reservas consagradas à África Negra no Museu do Homem em Paris. A atualidade desses filmes ecoa no debate contemporâneo sobre a descolonização dos museus e a restituição de bens culturais. O poema, grito de revolta contra a escravatura, ressoa nas palavras, máscaras e interroga a herança colonial e a persistência da opressão.
Outro exemplo é o documentário Aimé Césaire, les masques des mots, filmado entre a Martinica e Miami, num colóquio de homenagem ao autor, com presenças como Léopold Senghor e Carlos Moore, em 1987. É lá que Césaire lê o “Discurso sobre a Negritude” (agora publicado pela VS Edições, precedido do seminal “Discurso sobre o Colonialismo” (1950), ambos traduzidos por Diogo Paiva). Neste texto potente, Césaire reflete sobre o futuro da Martinica, reavalia o conceito de negritude, denuncia o racismo persistente e relembra três crimes estruturais contra a humanidade: a escravatura, a colonização e o apartheid, geradores de um mundo segregado.
Sarah Maldoror realizou ainda Eia por Césaire, um ano após a morte do poeta. Nesse filme recupera imagens anteriores, percorre com simplicidade e ternura os dias martinicanos, conhecido localmente como Pápá Césaire, com grande estima das pessoas da terra. Um aspeto curioso é contado pelo seu motorista: o autor de Caderno de um Regresso ao País Natal escrevia apenas em movimento, o motorista tinha de conduzir horas e horas pelas estradas da ilha para o poeta conseguir escrever, fundindo-se com a paisagem da ilha. A força da sua obra poética, a ação política e a mundivisão nascem desse vínculo andante entre insularidade e mundo. Nesse filme, Césaire explica a sua condição telúrica, de uma povoação em cima da falésia, numa Martinica caribenha alegre, festiva e impregnada de violência ao mesmo tempo, com o mar a bater e a fustigar as pirogas contra a costa.
Sarah Maldoror em 'Aimé Césaire and Other Poets'
A Martinica viu surgir outros dois pensadores centrais: Frantz Fanon e Édouard Glissant. Fanon, tal como Césaire, também escrevia em movimento, mas de pé. Em Eia por Césaire assistimos ao seu funeral, onde figuras como Nicolas Sarkozy lhe prestam homenagem como vulto da francofonia. Uma ironia, considerando o tom incisivo do “Discurso sobre o Colonialismo”, em que Césaire faz um ataque veemente aos colonizadores e ao projeto colonial europeu, sem poupar críticas aos antigos camaradas do Partido Comunista Francês (PCF), de que se distanciou ao perceber a negligência em relação à questão racial. Césaire antecipa, com clareza, a ligação estrutural entre colonialismo e capitalismo, e utiliza o marxismo em prol dos povos negros. Essas reflexões continuam essenciais à esquerda contemporânea, sobretudo nas articulações entre classe, raça e género - único ponto onde Césaire falha ao não ter abordado suficientemente o sexismo, também estrutural ao capitalismo. Denunciava a incapacidade europeia de resolver os dois problemas maiores gerados pela burguesia: o proletariado e a questão colonial. Mostrava como o novo mundo da «conquista» da América, a escravatura, as plantações e a pilhagem colonial sustentaram a modernização da Europa e o avanço do capitalismo, questionando como as potências que fundaram riqueza no racismo poderiam liderar revoluções emancipatórias. Como podiam as mesmas potencias que internalizaram o racismo colocar-se na vanguarda da revolução? Interrogava Césaire.
Foi em Paris, no perído entre guerras, que Césaire, juntamente com uma diáspora negra, perceberam a sua negritude e o racismo. André Breton não se cruzou com Césaire na sua cidade e vai conhecê-lo na Martinica. Entusiasmou-se com a sua poesia e encorajou-o a usar o surrealismo como arma política. Mas Césaire esclareceu que a sua escrita não era surrealismo, mas sim um modo africano de pensar e criar, apesar do peso do surrealismo ser notório nas suas obras dos anos 40, como “Les Armes Miraculeuses” ou “Corps perdu”, com a colaboração de Pablo Picasso.
Césaire tornou-se um pilar do pensamento anticolonial e panafricanista. Quanto à Martinica, defendia a autonomia e não a independência, por receio de que um pequeno país perdesse referências e capacidade de gestão realista. Considerava que o estatuto de região autónoma permitia conciliar as necessidades com as possibilidades, apostando na cultura como elo profundo entre os povos. Uma identidade coletiva que unisse congoleses, antilhanos, sul-americanos, africanos, “como uma família à mesa”.
Hoje, embora o pensamento de Fanon seja mais citado quanto a relações internacionais, a escrita de Césaire é visionária, com imagens poderosas e ideias que antecipam questões dos estudos pós-coloniais. A sua crítica à hipocrisia europeia - “A Europa é indefensável” - desmonta o falso universalismo e denuncia a violência civilizatória que o Ocidente infligiu. Relembra que o nazismo, que horrorizou a Europa, replicava métodos já normalizados nas colónias. Felwine Sarr acrescenta que o encontro com o “rosto hediondo do outro”, através do sistema colonial, que conduziu a uma mudança radical nas sociedades africanas e na personalidade de base dos seus grupos sociais, marcou profundamente a modernidade ocidental ocidental.
Césaire propunha um universalismo concreto, enraizado na diferença e não na hegemonia. A negritude seria então um caminho para imaginar uma nova humanidade. Como lembra Achille Mbembe, na Crítica da Razão Negra (Antígona, 2014), a poesia de Césaire é um grito de afirmação e reexistência, que permite aos oprimidos recriar-se como comunidade livre e soberana. Césaire reconhece: “A consciência de ser negro implica aceitação, responsabilidade, afirmação de uma identidade e de um conjunto de valores”. Perguntar o que a negritude significa hoje é pensar o que resta do panafricanismo, num continente africano vulnerável a novos e velhos predadores. Pensar Césaire é também escutar o desespero da juventude que se manifesta nas ruas, como vimos em Maputo e em Luanda de há um ano para cá. Ler e reler Aimé Césaire é essencial, especialmente neste ano de comemorações dos 50 anos da independência das colónias portuguesas.
Num tempo em que os dados da história mudam, tomar Césaire a sério é urgente para compreender a persistência do colonialismo nas práticas contemporâneas e na distribuição desigual dos recursos, da vida e da cidadania. Césaire identificou com lucidez a violência estrutural e a distribuição desigual dos recursos e dos privilégios da cidadania à escala global, aquilo a que hoje chamamos privilégio branco. Achille Mbembe acrescenta que a esse privilégio se devem ainda somar as proezas técnicas e científicas, as criações do espírito, as formas de organização política relativamente disciplinadas e, sempre que necessário, uma crueldade sem medida. Como já advertia Césaire, há uma tendência irracional para o assassinato que acompanha essas formas de dominação. É ainda Mbembe quem convoca a urgência de reler Césaire, pois levá-lo a sério significa reconhecer, no presente, os sinais do regresso ou da reconfiguração do colonialismo: em práticas de guerra, na estigmatização das diferenças, ou nos revisionismos que, sob o pretexto do fracasso dos regimes pós-coloniais, procuram justificar retroativamente aquilo que, como alertava Tocqueville, foi sobretudo um governo grosseiro, venal e arbitrário.
(texto editado do que saiu no jornal Cavalo Velho nº 4, VS Editor)