Grémio Lisbonense, uma jangada de pedra no naufrágio da Baixa

Velhotes a jogar bilhar à espera de vez para a cadeira de barbeiro. Concertos de bandas multiculti. Valsas e forrós, sardinhadas e jazz. Erasmus, poetas, ex-ocupas, membros da sociedade da copofonia artística. Tantos encontraram refúgio no Grémio Lisbonense, uma jangada com secular varanda de pedra sobre o Rossio. O velho Grémio, porto de abrigo de cultura numa Baixa pombalina que se rende à especulação e gentrificação, foi afundado à força de bastonada policial. O “Elogio da loucura” numa cadeira de barbeiro. Texto de 2008.

 

O senhor Alfredo Teixeira pedia o habitual corte de cabelo ao senhor Fernando, barbeiro da casa, que já o fora no Parque Mayer. Olga Cruchinho repunha as garrafas de cerveja no bar. Pedro Rodrigues preparava-se para actuar na Festa do Precariado. Entre o jogo de bilhar assomava-se à majestosa varanda para ver a cidade acontecer. Alguém falava sobre o evento da noite passada, ou sobre uma próxima conferência. “Era curioso entrar e numa mesa estarem os senhores a jogar às cartas, noutra meia dúzia de punks, ao lado umas madames a pintar, e uns miúdos Erasmus a beber umas cervejas baratas. Não estava direccionado para um público só, mas sim para a cidade de Lisboa” explica uma das dinamizadoras. Era o refúgio do Grémio Lisbonense, uma jangada com secular varanda de pedra sobre o Rossio. 

É a cidade de Lisboa que deseja recuperar o fantástico espaço onde, no último ano, se deu toda essa confluência e que, em 165 anos, foi habitado pelo Grémio Lisbonense, uma instituição de utilidade pública, com valor histórico e de intervenção social, recentemente daí desalojada.

Os bastões contra os sócios 

A 8 de fevereiro deste ano a PSP trouxe a mensagem musculada da expulsão. Afinal, dizem eles, só usaram os “meios coercivos necessários e adequados” à situação, para que o proprietário do espaço, que moveu a acção de despejo contra a associação, pudesse sair do local uma vez que “um grupo de pessoas estava a bloquear a passagem”. 

Os meios foram uma violenta e desmesurada repressão. 

“A polícia estava lá a fazer uma das coisas para que serve: proteger a propriedade privada. Só que neste caso é uma associação, e de interesse público, o que complica as coisas. Teve uma atitude inqualificável, pôs em causa a segurança das pessoas ali, e levou um preso que nada tinha feito e que foi espancado na esquadra” conta Pedro Rodrigues, um dos sócios presentes, que se haviam reunido no prédio para discutir a situação e defender o espaço. Estavam ansiosos com os destinos do Grémio, e gritavam: “O Grémio é nosso!”, “Lisboa a quem a vive!” Foi quando os reforços policiais abriram caminho à força pelas escadas a varrer indiscriminadamente à bastonada tudo o que encontrassem. Fotógrafos e jornalistas aleatoriamente agredidos. Telemóveis arrancados entre provocações pelos polícias - e sem estarem identificados – num absoluto descontrolo. “Nós é que tínhamos que dizer calma, eles é que lançaram a confusão. E ainda se diz que as forças policiais servem para manter a calma.” comentam Dina e Olga, que já vamos conhecer.

A associação foi corrida de uma hora para a outra, com todo o seu valor lá dentro, os 165 anos de espólio histórico: documentos, livros, móveis - e até a cadeira de barbeiro -, além das centenas de bebidas, pois esse ia ser um fim de semana com várias bandas a actuar. Como a instituição não tem onde guardar as coisas, ali ficaram, depois de inventariadas pelas autoridades e as fechaduras mudadas para que só o ‘fiel depositário dos bens’ pudesse entrar. Até se resolver…

Se tivesse havido uma carta de ordem de despejo fora mais fácil ter preparado a saída. Ao mandar proceder ao despejo daquela forma brutal, o próprio senhorio reconhece, num fax enviado à advogada do Grémio, que o fez indevidamente. Foi apresentada queixa contra a acção policial e ninguém vai esquecer a despedida do Grémio em forma de repressão de uma manifestação pacífica.

O peso da história 

Fundado em 1842, o Grémio Lisbonense foi distinguido com o grau de comendador da Ordem de Benemerência pelo então Presidente da República Óscar Carmona, no ano em que comemorou o primeiro centenário (1942), e com a medalha de mérito “Grau Prata” da cidade de Lisboa pelos serviços prestados à comunidade. Além destes louros, a instituição ostenta orgulhosamente na lista de sócios a frequentação de filósofos, escritores, músicos e pintores como Agostinho da Silva (que por lá fez conferências ‘com aquele seu jeito de comunicar’), Sam Levi, mestre Lagoa Henriques, mestre Lima de Freitas, maestro José Atalaia, Ferreira da Silva e o pedagogo João Lopes Soares (pai de Mário Soares), que mereceu uma placa comemorativa da sua passagem em 1970. Outros artistas contemporâneos se lhes seguiram. 

O edifício que o alojava não podia ser mais cobiçado! Desde logo, pela a sua privilegiada localização (que faz a fortuna do edifício): em pleno Rossio em frente ao Teatro D. Maria II, destacando-se pela varanda do Tribunal da Santa Inquisição, por cima do Arco do Bandeira, mandada construir pelo Marquês de Pombal, após o terramoto de 1755 que destruíra o antigo palácio dos Estados onde eram sentenciados os hereges. A varanda continua a ser o melhor camarote para o melhor palco de Lisboa: o Rossio das manifestações, dos esquemas, dos namoros, das compras, das Áfricas, das vitórias de futebol (com as câmaras da BBC e Sky aí bem posicionadas durante o Euro 2004). Depois, a amplitude do espaço. Mas, no interior, nem sempre foi assim, a sala nobre continua com as mesas de bilhar, acrescentando-se a cadeira do barbeiro, mas havia um restaurante e azulejos antigos até meio da parede, e outro material no chão. Algumas destas mudanças, naturais avaliando a sua longevidade, são motivo de indignação dos herdeiros de tamanho património, a família Vasconcelos e Sousa, que desejava há muito tempo despejar os inquilinos, para quem seria difícil de digerir que um edifício com tamanho potencial e extensão rendesse apenas 350 euros por mês.

A associação

O senhor Alfredo Teixeira, presidente do Grémio, faz-nos viajar no tempo com os seus termos muito correctos, os colarinhos bem engomados e o cabelo bem aparado. O sorriso é matreiro (adjectivo que tem vindo a perder a sua matreirice). Matreiro no sentido de falar de uma coisa que só ele sabe e recorda assim. Para lá da janela do escritório da advogada onde conversamos, na Augusto Aguiar, a rua ganhará repentinamente o preto-e-branco das imagem de arquivo televisivo, quando se abre a caixa das memórias do Grémio. “Nos primórdios tinha uma acção muito diferente. Foi fundado por comerciantes das redondezas. Era uma associação para convívio, mas tomou uma dimensão filantrópica, com gratificações a pessoas menos protegidas pela sociedade, assistência, repastos e ceias de natal.” Havia um restaurante à entrada, na porta para uma grande sala, e as longas mesas enchiam-se de damas e sobretudo cavalheiros, onde se comia em colectivo. Caras de portugueses de outros tempos, elas de colares de pérolas e casacos de raposa e eles de chapéu e charuto em riste. Por lá passou gente com as mais variadas motivações, inclusive com ligação à Maçonaria que deram ao Grémio, segundo o sr. Alfredo, um grande implemento. Habitantes da Baixa, muitos reformados, quadros do Exército, capitães (como o sr. Aníbal, o anterior presidente), generais, muitos universitários, “professores que aí encontravam uma continuidade da sua vida profissional”. Enumera com entusiasmo as boas prestações da associação exemplar: tertúlias, sessões de cultura, defesas de teses, aulas, a conferência do Agostinho da Silva, apesar de, garante o sr. Alfredo,  “nunca se falava de política, não havia política, nem os estatutos autorizam. Havia apenas o espaço cultura!”. Nós duvidamos. 

Há uns anos estava ele a jogar na sala de bilhar quando o convidaram para entrar para a direcção como secretário e depois passou a presidente. Além do trabalho administrativo, Alfredo Teixeira tinha muito com que se entreter: cartas, damas, bilhar, e podia sempre recorrer aos serviços de barbearia. Em tanta actividade lúdica, nada havia relacionado com desporto, só cultura.

Recentemente, depois da Câmara de Lisboa ter emitido um parecer positivo, decretou-se a utilidade pública do Grémio Lisbonense. Chegados à constrangedora situação actual, lembra o desgastante processo jurídico que a acção de despejo envolveu. “Fomos julgados na 1ª instância, perdemos, tribunal da relação, perdemos, no constitucional, perdemos. A partir daí aguardávamos a notificação para o despejo. Mas houve um anjo-da-guarda que nos salvou…” Era a advogada Paula Alves de Sousa que aparecera numa sardinhada organizada pela Junta de Freguesia de S. Nicolau (que aí também fazia rastreios médicos), a convite de um cliente seu e - bendito Santo António! - se sensibilizou pela causa do Grémio começando a montar uma estratégia. Em virtude do estatuto de utilidade pública o caso tinha de ser julgado em tribunal administrativo. Interpôs uma acção de providência cautelar acompanhada pelo presidente da Junta, que sempre teve uma conotação simpática com o Grêmio, seguiram-se os tramites “e nós continuávamos por ali.”   

Até porque coincidiu com o aparecimento de três jovens que dinamizaram o espaço e trouxeram novos sócios ao clube dos mais idosos. “A partir da altura em que elas tomaram conta das actividades conseguiram muitas inscrições. Sempre houve bom ambiente e louvamos as suas iniciativas.” Foi uma nova fase da vida do Grémio, mas já lá vamos. 

Globalmente é uma instituição muito ligada àquele espaço pombalino, “não pode ser noutro sitio senão acaba. Só tem a sua utilidade pública, cultural e social se for ali.” Esta é a “ansiedade que a gente tem de reavermos aquilo e continuarmos ali.” É uma situação que Alfredo Teixeira lamenta, tendo-se visto forçado a mudar de poiso. Subiu uma encosta da cidade e passa as tardes no Jardim da Estrela. “Há uma casinha junto ao hospital, a sala do idoso, é para ali que vou todos os dias jogar às damas.” Alguns sócios também aparecem, outros foram para a Academia, outros para a associação dos jogadores do bilhar, no Conde Redondo, “mas todos queremos voltar ao Rossio”. 

 

Um ponto de encontro 

Olga Cruchinho estudara comunicação social e naquele momento estava numa fase de ruptura com outras coisas da sua vida. Dina Almeida tirara artes gráficas e acabava de chegar de uma viagem de um ano. Ambas nos inícios dos 30 anos, disponíveis para começar uma nova coisa com mais um amigo. Foram ao Grémio, onde tinham feito uma festa de Carnaval, encontraram “um bar que só tinha duas cervejas no frigorífico, um café mau e nem sempre alguém para servir.” E de repente… “percebemos que a renda era extremamente barata e que valia a pena tentar. Fizemos uma proposta para o bar.” Foram desde logo alertadas de que havia um processo e que a qualquer momento o Grémio podia ser notificado, o que acabou por as motivar: “achámos mesmo que se o dinamizássemos, íamos ajudar o Grémio a ficar neste espaço.”

Começaram em Julho de 2007, numa altura em que muita gente está fora. Porém, o espaço já era sobejamente conhecido porque se alugava para festas. Para ir ganhando confiança com os associados, faziam o bar e começaram por pagar metade da renda. “Depois comprometemo-nos em assegurar as despesas e eles deram-nos carta branca.” Sucederam-se os concertos, de novas bandas, em que os grupos ficavam com a porta e elas com o bar, o que estimulava as bandas a trazerem muitas pessoas. Depois, a divulgação foi-se fazendo naturalmente de boca em boca. “A onda era: Queres entrar? Tenho um espaço! E de repente já tínhamos muitas pessoas a propor-nos coisas. Tentámos ser o mais ecléticas possíveis. Evitávamos só música muito violenta porque o edifício é antigo.” Tudo isso nos contam as impulsionadoras da ‘onda’. 

A programação não tinha uma linha, talvez a palavra interculturalidade lhe assentasse bem, pois ali dialogavam coisas das mais diversas proveniências: Erasmus, Leonardo da Vinci, brasileiros, nepaleses, miúdos da Cova da Moura (para quem angariaram dinheiro para irem representar  Portugal no Carnaval da Baía), e inúmeras associações que andavam à procura de um poiso. As actividades passaram a ser de tudo um pouco, “mas o mais dominante era malta nova com bandas”. Ora vejamos um bocadinho do que passou por lá: workshop de guionismo e serigrafia, grupos de teatro que lá iam ensaiar, a roda de choro e as Milongas todas as semanas, lançamento de livros e de publicações como a A23 ou a Telhados de Vidro e o jornal Mudar de Vida. Dança contemporânea, oriental, samba e forró. Concertos como o de José Mário Branco, fado, grupos como Conjunto Pau, Presidente Drogado e Nossa Senhora, A Feromona, Bluzz, Riddim Culture Sound, Projecto Ponkies, o duo Pedro e Diana, Atma e Nata, Mimicakix e Anita no Brasil, Farra Fanfarra e Los Cubos, e muito jazz: projecto Almagreira; jam session com Tânia Vaz e Francisco Artur; Off Jazz Quartet; Loose Canon; BÄ MBO; Ana Paula Trio, The Shoklats, Rising Echo, A Caravana, Duas Semicolcheias Invertidas, A Loja das Conveniências. E até o Toy animou uma das noites. Realizaram-se exposições e feiras (de troca de discos, de artesanato, de arte e de BD) assim como festas temáticas: Loucos Anos 20, aniversário do Grémio, Halloween, festa organizada pelo pessoal da casa ocupada da rua do Passadiço e a lendária festa “o Corpo que deus me deu”, com a Rita Natálio vestida de plástico. Várias festas de angariação de fundos, festa anos 60, festa Hippie, de Carnaval e a festa visionária “O Grémio tem a cabeça a prémio”. Tinha mesmo. Também houve muitos debates, como “Reflexões sobre a cultura”, com Lauro António e Pedro Barroso e “A noite precária”, organizada pelos Precários Inflexíveis e ainda não pelo May Day, como manifestação de revolta da situação em que estão os precários que fartos de ser pau para toda a obra, menos explorados e terem contratos com direitos e as vidas a prazo. Como se isso tivesse mudado muito 20 anos depois. 

As pessoas estão sedentas de espaços

Na defesa da “dinâmica cultural da Baixa de Lisboa, contra a cidade desocupada, das casas emparedadas, da especulação imobiliária e dos negócios de luxo”, lê-se no blog do Grémio. Contra a cidade envelhecida, em que as ruas são sinistras e a vida é só para dentro de paredes, e com este notório aumento de actividades culturais (nem sempre sinónimo de qualidade nem de mais cultura), surgem pequenos nichos de acolhimento para este ‘entusiasmo cultural’ e de festa. O mais interessante era uma certa febre das pessoas estarem juntas e quererem fazer coisas juntas. 

De novo Pedro Rodrigues, “é uma luta pelo espaço público, contra a privatização e o fechar de tudo o que são excepções na cidade. O capital põe bancos no centro e empurra o que não dá lucro para as margens. O Grémio está mesmo no centro de Lisboa, nesse sentido há qualquer coisa de exemplar neste caso.” Apesar de faltarem espaços contam-se alguns de âmbito cultural nos últimos tempos como referências diferentes, refiram-se o Braço de Prata (com uma afluência constante), o Bacalhoeiro e a veterana Zé dos Bois. E houve o Monte, na rua Monte Olivete, numa outra linha. No reconhecimento de uma “rede” relativamente interessante, Pedro Rodrigues estranha, porém, que “às vezes é mais fácil organizar um concerto do que arranjar um espaço para fazer um encontro ou uma reunião à noite sem barulho num sítio central público. Deve ser das ‘especializações’.” Era essa guetização que o Grêmio contrariava, ainda que o ser eclético por vezes resvale para um nivelamento em que vale tudo, uma vez que não há critérios definidos. 

“As pessoas estão fartas de sítios de gueto, tipo carneirinho, em que vais ali tens que ser assim, usar aquela camisola. No Grémio estavas descontraído, cada um era da sua maneira.” E era precisamente o trabalho partilhado e o ambiente familiar que fazia a magia da coisa. 

Depois do despejo

Depois da ordem de despejo, os participantes das festas e actividades não foram, como os antigos  sócios, jogar damas para a Estrela, mas deram-lhes seguimento noutros lugares: Voz do Operário, Ass. 25 de Abril, Centro Social da Mouraria, Clube Ferroviário de Portugal, Ateneu Comercial de Lisboa, Teatro da Comuna. Mas não é a mesma coisa. Ainda se vão fazendo novos sócios (já são cerca de 200, entre eles pessoas do mundo do rock dos Ena Pá 2000 e dos Peste & Sida, o poeta Manuel de Freitas, a coreógrafa Olga Roriz), mas assim não é a mesma coisa.

Em termos jurídicos, a associação multiplicou-se em “reuniões com quase todos os vereadores da Câmara, e todos queriam contribuir para que o Grémio continuasse aí”, conta o Presidente Alfredo. A situação actual é que a Câmara Municipal de Lisboa substituiu o Grémio nas negociações com o senhorio, propondo para o edifício o estatuto de imóvel de interesse municipal. O espaço histórico e pombalino da cidade de Lisboa e a sua localização privilegiada contribuem para que a Câmara se dedique à luta por este espaço, e pela persecução da actividades do Grémio no mesmo. A advogada confirma-nos que o recurso já foi admitido e estão à espera dos próximos capítulos.

Entretanto esta situação jurídica do Grémio contribuiu para que houvesse um certo afastamento do grupo cultural. Todos têm presente a idéia de que aquele espaço, e só ali, é a garantia de continuar em força. Não existe uma ideia de continuidade como grupo propriamente, era sobretudo aquele espaço que unia pessoas tão diferentes que, com idéias tão diferentes, ainda não se sentaram em assembleia para que todos pudessem discutir o que fazer e o que pretendem desta associação. “É uma questão de honra.” Afirma Olga Cruchinho que garante que “um espaço físico mantém as pessoas ligadas”, confessando por fim: “pessoalmente já não acredito em nada, só vendo.” Mas no fundo, no fundo sabemos que acredita. 

Reportagem para a revista A23, editor Ricardo Palouro, algures em 2008

por Marta Lança
Cidade | 7 Março 2023 | espaços culturais, especulação, gentrificação, Grémio Lisbonense, Lisboa, música, rossio