Cabral desimpediu a estrada da independência, só nos restava pavimentá-la!, entrevista a Sana na N’hada

Acompanhados pela sua serenidade e sabedoria encantadoras, ficamos a conhecer o percurso singular e discreto de Sana na N’hada, ‘homem-grande’ que esteve no coração da História. Realizador guineense da geração de Flora Gomes, estudou cinema em Cuba por uma casualidade, filmou a guerrilha do PAIGC, foi director no Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau, e tem-se esforçado por resgatar e arquivar as imagens da luta de libertação, nos últimos 13 anos com a artista Filipa César com quem colabora em projectos artísticos e de intervenção. Fez de tudo para filmar, quase sempre em baixo orçamento, e caminhando quilómetros para ir buscar e mandar revelar película.

Relata-nos a importante e complexa missão que Amílcar Cabral lhes delegou e como foi, a meio desse processo, saber a esmagadora notícia do seu assassinato. Calhou-lhe, como primeiro trabalho, filmar Amílcar Cabral numa exposição sobre a Luta em Conacri, em 1972, e depois a transladação do seu corpo para Bissau, capturando a comoção dos guineenses pela morte do melhor pensador e líder da resistência anticolonial. Em 1973, Sana ouvia Ana Maria, viúva de Cabral, “como se estivesse a sonhar, a delirar - agora o mundo parecia estar a desabar sobre a minha cabeça”, contar que Amílcar, “mesmo depois de ter sido alvejado com o primeiro tiro, ainda quis saber o que se passava e o porquê” do seu próprio assassinato. O sonho e a luta de Cabral podem não morrer, mas custa muito a pessoas como o Sana ver a distância entre o seu compromisso e o país actual. Entrou em depressão com a negligência que sofreram os materiais audiovisuais. Mas, no encontro essencial com Chris Marker e Sarah Maldoror e, mais recente, com Filipa César, percebe que é possível trabalhar de modo mais autónomo.

Sana na N’hada é o melhor narrador da sua própria epopeia e de um contexto histórico que a muitos interessará. A nossa entrevista começa em setembro de 2022, na tabanca de Malafo, perto da sua aldeia natal, na inauguração da Abocha Mediateca, juntamente com Filipa César, Marinho Pina, Suleimane Biai e toda a comunidade local, para promover troca de saberes. Prosseguimos entre Bissau e Lisboa, e acabámo-la após o Colóquio ‘Amílcar Cabral e a História do Futuro’, no mês passado.

Sana com câmara e fotómetro. Bissau 1976. encontro Praça Heróis Nacionais, Visita Agostinho Neto. foto de Agostinho Sá Sana com câmara e fotómetro. Bissau 1976. encontro Praça Heróis Nacionais, Visita Agostinho Neto. foto de Agostinho Sá

DE MEDICINA PARA CUBA

Como é que a sua vida deriva para o cinema?

Em 1963, eu tinha treze anos e frequentava a terceira classe na escola dos padres franciscanos na minha aldeia, Enxalé. Quando rebenta a guerra, havia tiroteio no quartel da minha tabanca e fugimos, com os meus irmãos e a mamã, para a base dos guerrilheiros. Fugimos para nos abrigarmos por uma semana no máximo, pensávamos, e o conflito durou onze anos. Quando o conflito colonial terminou, toda a gente tinha um começo possível na função pública. As pessoas que trabalhavam na Rádio de Libertação, podiam trabalhar na Radiodifusão Nacional da Guiné Bissau, era uma estrutura existente, não era preciso inventar, só tinham que se adaptar à nova realidade. No domínio do cinema, éramos quatro jovens formados em Cuba, Josefina Lopes Crato, José Bolama Cobumba, Florentino Flora Gomes e eu, já trabalhávamos há dois anos e tal. A nossa função como cineastas era única, a primeira vez que existia. Então, quando acaba a guerra nós tínhamos que criar uma coisa nova e, em 1977, fizemos os estatutos para criar o Instituto Nacional de Cinema. 

Antes de ir estudar cinema passou pela educação e medicina, como foi?

Em 1964, no congresso do PAIGC, decidem que era preciso fundar a estrutura do novo Estado a criar. A consigna era “aquele que sabe ler que ensine os que não sabem”. Nesse quadro, fui fundar uma escola na tabanca de Bumal. No primeiro dia, apareceram 79 indivíduos que queriam saber ler e escrever. O Caetano Semedo, dirigente da guerrilha nessa região, tinha ido pedir à minha mãe para me levar com ele para junto dos guerrilheiros. A minha mãe não consentiu, mas ele levou-me na mesma. Então, vou dar aulas e fundar uma escola com pessoas da minha idade. Era uma responsabilidade enorme. Fizemos umas carteiras de liana, ao ar livre, não havia cadernos para escrever os números nem quadro, fomos arranjando tábuas. Depois, não nos entendíamos linguisticamente, tive de aprender mandjaco para poder ensinar. Era mais fácil eu aprender a língua deles do que eles aprenderem balanta, a minha. Assim foi. No fim do ano escolar, na época das chuvas, deram-me um livre-trânsito para ir a Conacri fazer estágio para poder ensinar. Daqui para a fronteira levava uma semana, e tinha de passar pelo Senegal para ir a Conacri. Mas eu tinha um pé doente e não podia andar. 

Na altura só se podia deslocar a pé?

Sim, claro, era guerra por toda a parte. Portanto, não fui porque estava doente. Depois mandaram-me buscar para ir a Morés, não sei porquê. Afinal, o Osvaldo Vieira que era o chefe militar dessa Frente lembrou-se que tinha prometido mandar-me a Conacri, para a Escola Piloto recém-criada. Quando cheguei a Morés, ele não estava. Fui parar ao Hospital de Campanha, onde o Simão Mendes queria homens feitos a quem ensinar os mínimos para socorrer os feridos na guerra que, muitas vezes, morriam antes de chegar ao hospital ou chegavam cheios de hemorragias, quase a morrer. O objectivo deste estágio era ensinar o pronto socorro aos militares, com idade para combater. Como eu só tinha 15 anos, o Simão Mendes não me queria lá no hospital, disse que queria homens, “não precisava de bebés”. Mas eu tinha passado o dia todo a caminhar até Morés, um dia de viagem a pé, não havia maneira de voltar à procedência. Então tive que ficar no hospital, onde trabalho convencionalmente, faço o estágio com o Simão Mendes, termino o estágio, os meus colegas foram distribuídos para outras regiões, mas eu fico por ser menor. Depois vêm uns médicos cubanos e continuo com eles. No final de 1966, cheguei a Conacri para seguir viagem para a União Soviética onde faria o liceu e depois Medicina. Mas chego atrasado, o grupo com que estava previsto eu ir, partira uma semana antes. Amílcar Cabral disse que para Medicina já não dava para o nosso grupo, éramos seis: quatro iam para a agricultura, e nós dois (eu e o José Bolama Cobumba) íamos fazer cinema. Só que eu nunca tinha visto nenhuma imagem. 

Não tinha visto nenhum filme? Nem uma fotografia? 

Não. A única imagem que eu conhecia era a de Jesus Cristo, de um livro de catequese, não tinha visto nenhum filme. 

Quantos anos passou em Cuba?

Cinco anos e meio, a fazer o Liceu e a formação em Cinema.

Além de Cuba, como é que a Guiné apoiava?

Não havia Estado, havia a guerrilha do PAIGC. O governo cubano recebia esses estudantes. A maior parte ia para a União Soviética, para a Alemanha, para a Hungria, para Checoslováquia, para Marrocos e para a Bulgária. Eu vou para Cuba, mas não havia escola de cinema, e sim um Instituto Cubano de Artes e Indústrias Cinematográficas, o ICAIC. Então, tivemos que fazer o Liceu de forma muito acelerada. Depois é que fomos para o Instituto de Cinema onde aprendemos, na prática, o mecanismo de uma câmara de 35 mm, a Arriflex alemã. O que é aquilo, como é que funciona, tudo isso num passeio diante do ICAIC. Depois aprendemos a estrutura da película, a emulsão, o suporte, os sais de prata para revelação, toda essa teoria. Depois aprendemos ainda a fazer fotografias, fizemos quilómetros de película. Nós íamos para o laboratório com uma bobina cheia de película Kodak, e com rolos vazios já usados, enrolávamos em média 35 exposições e até umas 70 fotografias. 

Ainda tem material desse tempo?

Fotografias não, mas algumas foram publicadas no PAIGC Actualités. Aquilo que fizemos em Cuba ficou lá. Mas parte das outras imagens, que a Filipa César ajudou a salvar, com financiamento da Alemanha, estão aqui na Mediateca. Depois de chegarmos a Conacri, a 7 de janeiro de 1972, fomos mandados para um estágio de aperfeiçoamento nas Actualidades Senegalesas, uma empresa do Estado, mas sem orçamento para nós. Voltamos de Cuba com câmaras fotográficas, tínhamos de fazer qualquer coisa. Nos fins-de-semana, dávamos uma fugida de Dakar para a zona lá da fronteira e íamos à guerrilha tirar fotografias. Os guerrilheiros não nos queriam lá, não éramos combatentes, só atrapalhávamos, como carga morta. 

Sana na N'hada na Base de Campada, setembro de 1973.Sana na N'hada na Base de Campada, setembro de 1973.

FILMAR AMÍLCAR CABRAL

Nessa altura filmou a exposição de retratos da luta do PAIGC com o Amílcar Cabral

Em setembro já tínhamos câmaras de 16mm, as Beaulieu R16. Então, pela primeira vez, filmámos. 1972 assinalava o nono ano da Guerrilha da Guiné Bissau e filmamos uma exposição inaugurada por Amílcar Cabral, que a apresentava a Sékou Touré, em presença do corpo diplomático acreditado na Guiné Conacri e de militantes do PAIGC que se encontravam lá. Portanto, era a primeira vez, e calhou-me filmar o Amílcar. Eu fazia a imagem e o Flora Gomes fazia o som. Não foi uma decisão, eu peguei na câmara e Flora pegou no gravador de cassetes. Aproveitamos a iluminação da televisão da Guiné Conacri que tinha um operador com uma lâmpada. Íamos empurrando um ao outro, para fazer as imagens. 

Como era a exposição? 

De fotografias, retratos da luta. O armamento apreendido ao inimigo, os quadros formados, as fotografias de pessoas mutiladas, doentes no hospital, o apetrecho de guerra e o inimigo.

Cabral na exposição Semana da Informação, Conacri, 1972Cabral na exposição Semana da Informação, Conacri, 1972Cabral na exposição Semana da Informação, Conacri, 1972Cabral na exposição Semana da Informação, Conacri, 1972

O objectivo era dar a conhecer os avanços do PAIGC?

Justamente, era uma espécie de balanço de nove anos de luta do PAIGC. Portanto eu filmei isso, como disse, não tinha lâmpada, era preciso aproveitar o enquadramento da luz. Não foi grande coisa, quando quis fazer um grande plano o operador da TV de Conacri afastou-me, quando volto para filmar de perto eles apagam a luz, eu fiquei com imagens impossibilitadas. 

Não tem imagens do Amílcar de perto, num plano fechado? 

Quando ele apresentava a exposição no gabinete sim, agora quando na exposição ele faz um discurso, sozinho, eu queria filmar mas não foi possível. Estava lá perto mas não dava, o operador de câmara e o homem do som ocupavam tudo. Nós estávamos em baixo. Então faltou essa coisa mais de perto do meu público. Mas ainda aparece a Miriam Makeba, o Sékou Touré. Antes disso, Amílcar tinha dado uma conferência de imprensa, aí tive oportunidade de filmá-lo de perto, mas também havia muitos jornalistas assistindo à sua frente. Foi a primeira vez que filmamos. É muito importante, acho que podemos fazer algo dessas imagens.

Como é que relaciona essa experiência, o embrião de toda uma carreira, com o estarmos aqui agora a inaugurar um projecto que sempre quis fazer: uma Mediateca e uma biblioteca.

É o resultado da conclusão a que cheguei: por via oficial não é possível concretizar certas coisas. Não porque as pessoas sejam más ou porque não se interessam. Reconheço que têm outras prioridades, a agricultura, a saúde, o transporte. Tentámos várias vezes criar um fundo com ajuda do Estado, com ajuda privada, para a produção de filmes, mas não acontece. Desde que a lei da criação do Instituto Nacional de Cinema foi promulgada, em 1978, nunca houve a mínima tentativa de criar condições para se fazer filmes, mas sempre houve película e dinheiro para se gastar em reportagem de discursos políticos. Estive à frente do Instituto Nacional de Cinema durante vinte e dois anos, e nenhum ministro aceitou ou ouviu propostas, todo o tipo de imaginações que fiz não vingaram. 

Como foi filmar durante a guerra?

Próximo do fim da guerra estive como repórter na frente norte e na frente leste. Isso significava andar quase uma semana até ao Senegal, carregar as baterias, descansar três dias e voltar para o mato. A partir do momento em que tinha a bateria carregada, podia filmar qualquer coisa, qualquer ataque, qualquer bombardeamento no caminho. O rio Geba está aí, é o limite das frentes leste e norte. A minha área de intervenção era de Bafatá para aqui. 

Uma área enorme.     

Na frente leste alguém (Paulo Correia) quis que eu fizesse a mesma coisa que na frente norte. Então, quando eu voltava, de três em três meses, a levar a película já exposta e buscar a película virgem, às vezes ficava na frente leste, filmava lá o que havia para filmar, depois regressava de novo a Conacri para arranjar película para a frente norte. Portanto, era caminhar e caminhar. 

As condições de trabalho eram de facto muito duras.

O mais importante numa guerrilha, a nossa guerrilha aqui, é andar, sempre a andar. Sempre tem que andar. 

Mas ia acompanhado? 

Claro. Enquanto estava na zona libertada, quando não havia combates, não havia tiros por aí eu não precisava de protecção. Quando as pessoas já tinham armas para disparar contra a aviação, os pilotos andavam mais prudentes. Eu filmava, mas se havia uma emboscada ou um ataque, os chefes claro que queriam que eu filmasse porque desejavam imortalizar-se. Mas às tantas, se se dizia na base “vamos atacar a dez quilómetros daqui”, tudo bem. Mas eu começava a perceber que estamos já perto do objectivo através dos comportamentos, os sorrisos já estavam mais nervosos, as pessoas começaram a puxar o boné, a Kalashnikov, isso quer dizer que já estamos perto. Aí já somos pouco amigos. Já não me sorriem, não me querem por perto. No princípio, lá na base, queriam que eu ficasse perto deles, mas depois não.

Então tinha de racionar bem o que e como filmar. 

Devia filmar o espaço, os passos, sobretudo as caras e o movimento; mas também não podia filmar muito porque a película era pouca e tinha de carregar uma pasta pesada com o material. 

E a logística para se alimentar e hidratar no dia-a-dia?

Para se poder poupar água, corta-se um limão, põe-se num litro de água. Assim a água já não sabe muito bem, é forte, e com o limão dá menos sede. Com um litro d’água aguenta-se uns três dias, por aí.

E como desenrascavam comida? 

Quando aparecia.

As populações das tabancas iam ajudando?

Sim, sempre que elas podiam. Nos primeiros anos, 1963 a ‘65, havia muita reserva, muita comida e muito gado. Depois a tropa portuguesa comia, nós também comíamos, às tantas já não havia mais gado doméstico, cabras, porquinhos. Então as próximas vítimas foram os antílopes, aves selvagens, gazelas, hipopótamos, por aí. 

E crocodilo? Já experimentei carne de crocodilo e não é má. 

Não tem gordura nenhuma. Por exemplo, uma iguana é saudável.

Então fazia essa documentação e entregava o material, depois os filmes eram passados na clandestinidade?

Não, ninguém os via. Nós estivemos a filmar durante cinco anos, até 1976, e só mais tarde é que vimos algumas dessas imagens. 

Então quem é que ficou com os filmes? 

O PAIGC recebia e mandava para um país amigo, se houvesse delegação. Para Suécia, para a União Soviética, para a Argélia. A intenção era eles revelarem a película e mandarem de volta. 

E depois?

O único que mandou de volta foi a União Soviética. Mas mandou o negativo, não tiraram cópia do trabalho. Era o que nós filmamos na Proclamação do Estado, em Boé, a 24 de Setembro de 1973. Desde 1974, até hoje não consigo saber o paradeiro das outras películas. 

Que alívio ter salvo as imagens da auto-proclamação da Independência. E quando é que as viu? 

Em setembro de 1974 (depois da revolução do 25 de abril) eu estava em Conacri, para onde levei a minha película exposta, e encontrei a película da proclamação do Estado numa prateleira. Como havia um barco que ia para Bissau, as pessoas começaram a preparar as coisas do PAIGC para mandar para lá. Eu embalo aquilo que tinha a ver com o meu trabalho e meto num barco. Sigo nesse barco até Boké, desço e volto para Conacri, mal chego dizem-me: “tens de ir para Bissau, há uma missão para Cabo Verde. A aviação portuguesa leva-te de Bissau para Cabo Verde”. Então vou de Conacri a Bissau numa avioneta do exército português. Nem conhecia ainda Bissau, ainda lá estava tropa portuguesa, tinha havido um cessar-fogo espontâneo, não foi decretado. Já estávamos a começar a negociar. Lembro que, a 9 de setembro, embarcarem em Bissau seis mil tropas de regresso a Portugal. E lá sigo no avião com a delegação do PAIGC, desde a Guiné-Bissau para Cabo Verde, no dia 12, conduzida por Pedro Pires, com o Julinho Carvalho, Agnelo Dantas, Silvino da Luz, etc. Cabo Verde era ainda portuguesa, como Bissau. O PAIGC não tinha entrado, só entraria em outubro. Mas só em 1975, quando fui uma vez acompanhar o cineasta sueco Lennart Malmer, que tinha coisas na alfândega no porto de Bissau, é que descubro o material que embalei em Conacri um ano antes. Tinha ficado ao sol aquele tempo todo. 

E como conseguiram revelar mais material? 

Em 1976 fizemos um finca-pé com o Mário Pinto de Andrade [coordenador-geral do Conselho Nacional de Cultura e Ministro da Informação e Cultura da Guiné Bissau entre 1976 e 1980] e com a sua esposa, a realizadora Sarah Maldoror, para sensibilizar e arranjar financiamento sueco para revelar o que ainda estava em Conacri do que tínhamos filmado cinco anos atrás. Mas era só uma parte.

Porque muito material foi enviado para revelação e estará algures?

Mesmo assim, tínhamos cem horas de imagens. Aquilo que não foi enviado para os países amigos, estava lá, em altas temperaturas e tudo emaranhado. Filmamos quase sempre com película Kodak, preto e branco. Fui à Suécia verificar o estado das imagens reveladas que, surpreendentemente, estavam em bom estado. Só pude montar um primeiro filme que se chama O Regresso de Amílcar Cabral

Sana na N'hada e Flora Gomes, Malafo 2022. foto de Marta LançaSana na N'hada e Flora Gomes, Malafo 2022. foto de Marta Lança

A MORTE DE CABRAL 

Em O regresso de Amílcar Cabral as imagens são feitas apenas por si? 

18 das 19 bobinas do filme são minhas; a outra é do Flora Gomes. Eu e o José Bolama Cobumba, que fez o som do filme, fomos a Conacri com a delegação que trouxe os restos mortais de Amílcar Cabral. O Flora Gomes filmou uma bobina no aeroporto de Bissau, quando o corpo chegou, tínhamos duas câmaras. A história do filme é a transladação do corpo de Cabral, de Conacri para Bissau. Segui o processo todo de Conacri até o aeroporto, até ao Palácio, para chegar à Fortaleza de São José da Amura, onde está sepultado.

Como foram os seus contactos com Amílcar Cabral?

A primeira vez que o vi foi em Morés, frente norte, em meados de 1966. Depois foi em Conacri, em Havana e ainda em Conacri, quando voltei de Cuba. No dia 22 de dezembro de 1972, em Dacar, vi Amílcar Cabral pela última vez, um mês antes de ele ser assassinado. Então, estando o nosso grupo de quatro elementos em Dacar, num estágio nas Actualités Sénégalaises, Amílcar Cabral veio de visita ao Lar do PAIGC. No fim da sua visita, chamou-nos à parte para nos dar uma missão: a de ir filmar, nas três frentes de luta, os preparativos para a proclamação do Estado da Guiné-Bissau. No termo desta visita, Amílcar Cabral marcou-nos um encontro em Conacri, em Março do ano seguinte, para um balanço da nossa visita ao que se seguiu: isto é segredo, não se comente com ninguém!

O Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotoramaO Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotoramaO Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotoramaO Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotorama

E como correu a missão? 

Dias depois eu, Josefina Lopes Crato, José Bolama Cobumba e Florentino Flora Gomes, montamos num Jeep Waz soviético, conduzido por Sirifo Dansó, dentro do qual encontramos um caucasiano que nenhum de nós tinha visto antes, o que nos mergulhou num profundo silêncio que ninguém quebrou até ao destino. Viemos a saber mais tarde que o indivíduo chamava-se Oleg Ignátiev, um repórter do Pravda. Partimos rumo a Ziguinchor, Casamansa, no sul do Senegal, onde chegamos por volta das 20 horas. Ali fomos recebidos por Lúcio Soares, chefe militar da frente norte, Luís Correia, da segurança da frente, Manecas Santos, da artilharia pesada, Duke Djassy, do corpo de Exército comandado por Quecuta Mané, Cambanó Mané, aliás Iongoiá, do corpo de exército comandado por Braima Bangura. Alojaram-nos na residência do Luís Cabral, então chefe da frente norte. Ninguém disse uma só palavra durante toda a tarde. À noite, face aos imperativos de segurança, as nossas piadas habituais eram sussurradas, falávamos sobre o que podia acontecer a qualquer um de nós e deixávamos recados às nossas respectivas mamãs, que nenhum de nós conhecia. As piadas eram mais um derivativo do nervosismo e da ansiedade diante da esmagadora responsabilidade que Amílcar Cabral nos tinha posto em cima. E se, por qualquer acaso, por medo, justamente, de não falhar, falhássemos a missão? Essa era a questão! 

Passamos a noite juntos numa sala; o Oleg Ignátiev ocupou o quarto de cama. Na manhã seguinte Luís Correia e Duke Djassy vieram lembrar-nos que, para além da proibição de falar em voz alta, também não devíamos pôr o nariz fora de casa. Face aos nossos protestos, obtivemos deles a permissão de irmos desentorpecer as pernas e aproveitamos para mergulhar o mais longe possível na planície herbosa de Ziguinchor, voltando logo ao nosso confinamento. O meu amigo Cambanó aproveitou para troçar da minha suposta ‘prisão’.

No fim da tarde partimos rumo à nossa fronteira norte, a uns 100 kms. 

Não nos detivemos em Cumbanghor, indo directamente para Sambuia. Dalí atravessamos o rio Farim e passámos por Djacal para irmos pernoitar em Maquê. É um trajecto por mim conhecido por ter passado pela última tabanca há 6 anos, de volta a Morés depois de ter levado à fronteira do Senegal nove feridos, vítimas do bombardeamento que ceifou a vida do meu chefe Simão Mendes, a 19 de fevereiro de 1966.   

Entretanto perceberam quem era o senhor branco que estava convosco?

Só ficou clara para nós a identidade do nosso hóspede quando a nossa equipa é apresentada na base de Maquê: “ele é Sr. Oleg Ignátiev, comentarista especial do Pravda, um famoso jornal soviético”. Aí distribuímos as funções dentro da equipa. Todos tínhamos uma câmara fotográfica, Oleg inclusive, cada um de nós pôde utilizar a sua, cabendo aos dois elementos da equipa que, até aí, não tinham filmado ainda, exercer agora: José Bolama Cobumba e Josefina Lopes Crato. Os dois iriam revezar-se dada a fadiga da marcha. Eu fiquei com a responsabilidade de interpretar ao Oleg tudo o que se dizia em crioulo para espanhol.

O Sana ficou com a importante tarefa de intérprete para o soviético.

Os meus colegas decidiram que eu seria um bom intérprete para ele, Oleg, uma vez que o próprio me confiou os seus documentos ao partir para um comício. Também tinha de ocupar-me da sua logística, da sua segurança e da respectiva documentação, que não podia cair em mãos alheias. 

A partir de Maquê, o chefe militar da frente, Lúcio Soares, decidiu atacar todo o tempo as guarnições que estavam na nossa rota, Em Maquê houve um primeiro encontro, que o José Bolama filmou e onde o Oleg foi apresentado ao público, o que foi uma espécie de convite do lobo tuga ao curral do PAIGC. Ele usou da palavra, de onde surgiu a necessidade de uma interpretação das suas palavras. 

E depois?

Na noite seguinte partimos de Maquê para Morés, via Madina, sob o ribombar de bazookas e canhões sem recuo, em respectivos ataques contra Olossato e Mansabá, que deviam ser obrigados a recolher aos abrigos para podermos passar tranquilamente. Pernoitamos em Madina para seguir viagem na manhã seguinte rumo a Morés.

Chegados a Morés, eu fui buscar água para Oleg, o meu hóspede, se banhar. Aqui encontrei antigos colegas de estágio, meninas em maioria, que acreditavam que eu já era médico, o que  me cansei de desmentir, em vão. 

As nossas efusões não duraram muito, pois, ao regressar à palhota do meu hóspede, Oleg Ignátiev, encontrei-o deitado de costas, inerte, inconsciente, os olhos esbugalhados, com um aparelho de rádio ao peito. Do rádio, que assobiava mais do que falar, reconheci a voz do presidente Sékou Touré num tom enérgico, mas cujo sentido, com o meu parco francês e o pânico do estado de Oleg me inspiravam, não me deixava compreender. Acordei o Oleg, que balbuciou numa língua, a sua, algo que eu não entendia, e voltou a desmaiar. Aí eu fui correndo ver Lúcio Soares e o chefe político da frente norte, Pascoal Alves, que encontrei ambos agarrados a outro rádio e a escutar o mesmo presidente da Guiné-Conacri, Ahmed Sékou Touré, mas desta vez percebi que se tratava de algo muitíssimo grave. Que tinha a ver com Amílcar Cabral. Mas fui caçado dali, sem miramientos, pelos dois dirigentes do PAIGC. 

O Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotoramaO Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotorama

A FATAL NOTÍCIA 

Como soube da morte de Amílcar Cabral?

De volta ao Oleg, desta vez encontrei-o desperto e mais sereno. A primeira coisa que ele me disse foi uma terrível pergunta, que eu mal podia responder, porque imensa, surpreendente, terrível, esmagadora. Oleg Ignatiev disse: “mataram Amílcar Cabral, o que vocês vão fazer? Vai acabar o PAIGC, os fascistas vão ganhar?! Sem me deixar tentar responder, no caso de eu conseguir atinar algo ou balbuciar um começo de frase, Oleg exigiu que o levasse para junto dos dirigentes da frente norte, e lá fomos os dois a passo de carga. Desta vez já os interessados não podiam correr comigo. Oleg repete a mesma pergunta mas, desta vez a quem de direito e não obteve resposta imediata ou talvez eu não tenha ouvido bem. Oleg disse: “eu tenho de chegar a Conacri antes do…funeral do…” Pascoal Alves faz um gesto imperativo para me afastar dali e eu ia a fugir, literalmente, quando o grupo que atacou Mansabá na noite anterior chegou e Lúcio, como que movido por uma mola qualquer, se levanta e dá uma ordem com uma voz enérgica que eu nunca lhe conheci e que ordenava os combatentes, dirigidos por Mbemba Seidi e César Mendonça, para voltarem imediatamente e atacar de novo Mansabá até ao amanhecer. Estes, incrédulos, iam protestar quando um gesto de Lúcio em direcção do rádio os deixou ouvir a fatal notícia. No dia seguinte, num comício organizado em Iracunda, o velho Quebá Irá, aquele que outrora me chamava de Pequeno Enfermeiro, resumiu numa frase aquilo que Oleg Ignátiev queria saber. Quebá Irá afirmou: “Mas quem disse que Amílcar Cabral morreu? Mesmo que seja o caso, ele já desimpediu a estrada da independência, só nos resta pavimentá-la!”    

E decide filmar o funeral de Cabral? 

Oleg voltou do comício mais animado. A missão da nossa equipa, que era de visitar as três frentes de luta, estava agora comprometida pelo desaparecimento do nosso líder, Amílcar Cabral. Mas Oleg Ignátiev tinha outro problema insolúvel: a via mais rápida para Conacri era passando pelo Senegal; ora, tendo ele acabado de abandonar o Senegal oficialmente, já não podia voltar a entrar sem visto. A solução que se impõe ao grupo é, pois, continuar viagem atravessando todo o país e chegar à fronteira sul, onde nenhum de nós precisava de um visto para entrar. Chegaríamos tempo de assistir à exéquias de Cabral?

Conseguiram?

No dia seguinte atravessámos a estrada Mansoa/Mansabá para pernoitar em Mandincara/Darsalaam. A nossa chegada foi concomitante com a da Titina Sylla, responsável pelos serviços de saúde da frente norte, a quem a sua fiel amiga, Ana-Maria Gomes, comissária política do sector de Sará, veio acompanhar até ali. Titina, em sentido contrário ao nosso, ía aos funerais de Amílcar Cabral em Conacri, onde ela nunca chegaria, tendo sido vítima da emboscada de uma patrulha tuga. Morreu no rio Farim, na travessia Djacal/Sambuia, lá por onde nós tínhamos passado, havia apenas alguns dias, para Maquê. Mas antes denos separarmos, na manhã seguinte, após umas fotos tiradas com Titina e Ana-Maria, esta última agora com o seu companheiro Lúcio Soares, regressou connosco para Sará.                                                                                                                        

Na base de Sará/Enxalé, a nossa equipa parou um dia para permitir a organização da nossa travessia do rio Geba. Numa tranquila tarde de janeiro de 1973, passámos por Malafo, exatamente onde estamos e onde fica a nossa Mediateca, para a frente leste na chamada “Zona 7”. A travessia do rio Geba fez-se por Enxalé, que é a minha tabanca natal, a bordo de uma canoa remada por Fóna na Mbitna, da minha idade. 

No meio dessa tristeza toda, regressa aos lugares da sua infância. 

Aquilo foi quase a roçar uma lancha que patrulhava o rio, de motor em silêncio, a favor da corrente. Eu, com aquela emoção de estar a passar por onde andei em criança, descrevia o local ao Oleg Ignátiev, em voz queda, quando o Fóna me avisou com palavrões da lancha que a nossa piroga ia a roçar em sentido contrário, com destino a Ponta Varela. Escapámos por um triz! Fiquei muito tempo a olhar para aquela luz de presença da lancha, que se afastava, e a pensar no que aconteceria se fôssemos apanhados, com o Oleg a bordo, enquanto a nossa canoa avançava muito lentamente, pois íamos a contra-corrente. Mal pisamos o solo lodoso de Ponta Varela, os homens de Caetano Semedo atacavam o aquartelamento do Xime. A resposta dos tugas não se fez esperar e alguns obuses de canhão do batalhão de Xime vieram dar-nos as boas vindas à Zona 7, obrigando-nos a cair de borco sobre o lodaçal. Já depois de passar pelos arredores de Xime, tropeçamos com os nossos camaradas, autores do ataque nocturno precedente, que regressavam à base. Serviram-nos de guias, até o Caetano Semedo e o Ansumane Mané, aliás Bric-brac, seu adjunto. Tão bem que mal, discretamente, Caetano Semedo e eu matámos saudades de uma separação de quase sete anos, quando ele na altura partia para a Academia Militar de Nanking, na China, e me deixara em Bumal para abrir a minha escola. 

Sana na N'hada no DocsKingdom, 2017Sana na N'hada no DocsKingdom, 2017

É impressionante a sua capacidade de lembrança com precisão…

Doravante, debilitado pela marcha forçada e pela pouca alimentação, não tenho muita lembrança dos acontecimentos. Só sei que o Oleg mal aceitava tragar a pouca comida que aparecia. Partimos da Zona7 para Gbotchol, Quinára, onde só fizemos uma pequena pausa antes de prosseguir, às 4 horas da manhã, para Unal. À tarde desse dia atravessamos a estrada Buba/Quebo e chegamos ao destino às 19 horas locais. Pelo caminho, tivemos de fazer uma pausa entre as 10 e as 16 horas porque o Oleg não aguentava o tórrido calor e o clima muito húmido, ele que também estava tão enfraquecido como nós todos. O Oleg já só tomava uns comprimidos, “para mitigar os efeitos da fome”, dizia-me ele.

A Unal chegámos a uma base abandonada. A nossa escolta não sabia para onde os camaradas se tinham mudado. Oleg pediu-me para verificar qual o tempo necessário para encontrar a nova base. Ninguém sabia. Oleg insiste, eu tenho que repetir a pergunta. O homem diz não saber e prossegue: “a nova base pode ser longe ou não muito longe”. Oleg perde as estribeiras. Como é que um lugar pode ser longe e não muito longe ao mesmo tempo? Estão a brincar comigo?! Eu sou o representante de um grande país que vos ajuda a lutar pela vossa liberdade… O homem não entende, mas sabe que o meu hóspede está furioso. O escolta toma uma decisão, dispara uma longa rajada de Kaláshnicov ao ar, que tem o condão de enfurecer ainda mais Oleg. Ele faz uma longa tirada a dizer que estamos a gastar debalde as balas que custam muito a produzir. Eu já não traduzo por achar inútil. Toda a gente se olha, desafiadoramente. Lá ao longe, em resposta aos tiros do nosso escolta, chega uma réplica de balas tracesantes ao ar. Já sabemos onde ir. 

Era o sinal de código.

Na base de Unal posso conhecer por fim os camaradas Úmaro Djalló, Abubacar Barry e Iafai Camará, de quem Caetano Semedo sempre me falou, como sendo alguns dos que dirigiam a nossa luta. A partir de Unal viajamos de canoa uma noite inteira, durante umas 9 horas até chegamos a Candjafra, já ao amanhecer. Ainda na canoa, eu fui acordado pelos disparos do canhão de Guiledje, que tentava alvejar o camião que nos vinha buscar no desembarcadouro. 

Após uma viagem de 15 dias, conseguimos atravessar todo o território da Guiné, de Sambuia, perto de Bigene, a Candjafra. João da Silva, responsável local, nos recebeu sem mesmo nos deixar tempo de nos apresentarmos. Aparentemente, ele nos esperava, pois disse-nos que tínhamos de atravessar o pequeno rio/fronteira, antes do amanhecer inteiramente, pois os aviões tugas, sem mais delongas, iam começar os bombardeamentos diários, o que se verificou tão logo abandonámos a jangada, quase destruida. Mas já estávamos na República da Guiné.   

Foi muito difícil lidar com o assassinato de um grande líder? 

A realidade da morte de Amílcar Cabral começou, sub-reptícia e insidiosamente, a invadir-me a consciência. Parecia-me surrealista a ideia da matança do camarada Cabral. Eu recusava-me absurdamente a acreditar naquela ideia, mas os incessantes combates por todo o lado, traziam-me de volta à realidade: exprimia-se a raiva do combatente pela morte do seu chefe.   

Em Conacri, no Secretarido-Geral do PAIGC, logo que chegámos, a nossa equipa de 4 cineastas teve um encontro com a doravante viúva de Amilcar Cabral, a camarada Ana-Maria. 

O que é que conseguiu saber logo na altura sobre esses momentos trágicos?

Ela descreveu-nos a última jornada que passou com o seu marido antes de voltarem a casa à noite. O carro em que viajaram estava ainda no local da tragédia, com o buraco de uma bala numa das portas. A nódoa acastanhada do sangue de Cabral manchava o solo. Ana Maria disse-nos que Amílcar Cabral recusou terminantemente ser amarrado, de mãos às costas, e ainda mais ser levado para Bissau, como os seus assassinos pretendiam. Que, pelo contrário, Amílcar Cabral insistia veementemente para irem, com ele, ao seu gabinete para uma conversa séria. Que, mesmo depois de ter sido alvejado com o primeiro tiro, ele ainda queria saber o que se passava e o porquê? 

Eu ouvia aquilo tudo en état second, como se estivesse a sonhar, a delirar. Agora o mundo parecia estar a desabar sobre a minha cabeça. 

Depois fomos ver o camarada Aristides Pereira, que tinha ainda os sinais das cordas com que foi amarrado nos cotovelos. Felizmente, foi salvo antes de chegarem a Bissau com ele amarrado, como era intenção dos raptores. 

Já não me lembro do que aconteceu nesse dia comigo, nem sei como fui para a Dacar. Só sei que, ainda em Conacri, declinei o convite de ir assistir ao julgamento dos assassinos de Amílcar Cabral.  

ENCONTRO COM CHRIS MARKER E SARAH MALDOROR 

E como mostraram as imagens da luta aos guineenses?

No quadro do vigésimo aniversário do PAIGC (1976) conseguimos financiamento para arranjar câmaras de 16 mm, arranjar uma moviola (uma mesa de montagem Steenbeck), uma máquina para repicar o som de 9 a 16mm. Conseguimos uma gravadora Nagra IV-S. A Suécia financiou a revelação da nossa película, a sua tiragem e o equipamento. Depois arranjei um camião emprestado e com isso pudemos fazer cinema ambulante. 

O Chris Marker ainda no doou um projector de 16mm, muitos filmes, seus e soviéticos (do Dziga Vertov e outros, de que não me lembro). Nós andámos pelo país a projetar algumas coisas que filmamos e que estrangeiros também fizeram durante o conflito: cubanos,  ingleses, suecos, finlandeses, etc. É então que conheço o Chris Marker, que veio à Guiné com a Sarah Maldoror em 1979. Andamos muito por aí, ele e eu.

A Sarah Maldoror nessa altura lançou o filme À Bissau, le Carnaval. 

Eu fui assistente dela, estive com ela nesse filme logo depois da independência, e ainda num dos filmes de Sarah em Cabo Verde (Fogo, l’île de Feu, 1979). Cheguei a substui-la, porque não se sentia bem, quando escalámos o vulcão de Fogo. Os seus técnicos aceitaram a minha direcção na filmagem do Vulcão de Fogo que, por sorte, não estava activo. 

Sana e Sarah Maldoror. Base de Camdjambary, entrega de Credenciais dos Embaixadores da OUA ao Presidente Luís Cabral. Sana e Sarah Maldoror. Base de Camdjambary, entrega de Credenciais dos Embaixadores da OUA ao Presidente Luís Cabral.

O Chris Marker teve um papel essencial na sua vida.

Veio com a Sarah e eu tinha que transportar a equipa técnica dela: a própria Sarah, o operador de câmera e o engenheiro do som, para Cassacá, no sul. Nós íamos de helicóptero. Eu levei a equipa para o aeroporto. Volto ao hotel para buscar o Chris, afim de o acompanhar ao helicóptero para seguir a Sara. Era o próximo voo, mas só havia um lugar no helicóptero. Eu quis que o Chris fosse, mas ele não quis ir sem mim, e eu não quis ir sem ele. Então ficámos. A Sara foi e filmou a graduação dos militares que se vêem em posição em Cassacá. Foi assim que levei de volta Chris Maker ao seu hotel, mas o seu quarto já tinha um novo ocupante e não havia outra hipótese de encontrar alojamento para o meus hóspede.

Ainda fomos a minha casa, onde eu lhe ofereci alojamento enquanto Sarah não regressava de Cassacá. Apresentei-lhe a minha mulher e o meu filho; ele aceitou o jantar mas  declinou a minha oferta de alojamento dizendo-me “Vamos ao teu trabalho”. Assim foi que ele começou a ensinar-me a técnica de montagem na nossa moviola Steenbeck.

Como correu esse exercício de montagem?

Eu tinha classificado as imagem que tínhamos, algumas coisas bem distinguidas, tudo anotado, classificado no papel. Os meus colegas e eu fizemos um primeiro filme sobre as mulheres, sobre a Titina Sylla. O Chris Marker ensinou-me os truques da montagem.  

No primeiro dos 3 dias contínuos da lição, às 03 horas da manhã, eu morto de sono e o Chris nem por isso, propus uma pausa, mas ele nem queria ouvir o meu argumento, ele nunca mais dormia! Foi muita sorte minha e, em guisa de agradecimento, eu disse ao Chris que já sabia como não filmar. 

Na época eu tinha muita película; as pessoas que vinham aqui filmar deixavam uma ou duas bobines, eu ia pondo tudo na geleira, porque queria fazer um filme sobre a pesca artesanal, seguir os pescadores, nas suas frágeis canoas, à noite. Tinha película mas as marcas e os lotes eram muito misturadas, estavam mal conservadas e eu queria ter certeza que a película realmente valia alguma coisa. Então pedi ao Chris para levar algumas bobines a testar, só para ver se a película ainda servia para alguma coisa. Felizmente, ela estava boa e as imagens que eu filmei serviram ao Chris no seu filme Le Fonds de l’Air Est Rouge.

Há coisas que se resolvem logo à partida na filmagem. Ele fez isso espontaneamente, não veio com essa missão, foi uma coisa de simpatia?

Para já eu não estava a ver a dimensão do Chris Marker, só depois é que percebi a verdadeira envergadura do homem. Ele veio com a Sarah e a situação caricata em que nos encontrávamos nos obrigou a uma certa intimidade. 

Sana na N'hada  e Chris Marker na Guiné em 1979Sana na N'hada e Chris Marker na Guiné em 1979

 

E e o Sana já falava um bocadinho francês por causa de Conacri?

Aprendi francês em Bissau porque o Mário Andrade tinha um conselheiro, o Sérgio Michel, com quem andei muito tempo a preparar os estatutos do Instituto de Cinema, depois íamos discutir com o Mário Pinto de Andrade, e ainda com o presidente Luís Cabral. Depois, ainda, é que se mandou para o governo de Francisco Mendes promulgar.  Passei muito tempo com o Sérgio Michel. Eu fui lendo em francês os clássicos como Victor Hugo, do Rabelais; conhecia alguns desde Cuba. Bom, aprendi a falar com pessoas. E eu tinha aprendido um pouco inglês no Liceu. No Senegal também. Mas no Senegal o nosso estágio era em crioulo interpretado por um descendente de cabo-verdianos que estava lá, o Orlando Lopes, que fala crioulo. No Senegal comunicamos pouco porque estávamos muito isolados. Nas Actualités Senegalaises não podíamos trabalhar muito porque não havia orçamento. Davam-nos tarefas para fazer aquilo que já tínhamos visto em Cuba. O estágio era interpretado de francês para crioulo. O estágio não era muito instrutivo. Mas aprendemos sempre alguma coisa. 

O INSTITUTO NACIONAL DE CINEMA E A SUA FILMOGRAFIA

E no Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau reuniu algum material?

Começamos a arquivar essas películas que estavam confusas. Mas nunca houve apoio consistente para poder fazer um bom arquivo. Mas sabíamos o conteúdo de cada bobine, grande ou pequeno, tínhamos anotado em papel. E estávamos a fazer outros filmes, por exemplo Guiné Bissau seis anos depois, uma espécie de balanço do que o governo do país estava a fazer durante os primeiros seis anos pós-independência. Havia a fábrica de açúcar, fábrica de plástico, fábrica de oxigénio, a construção de um novo liceu que agora é Universidade Amílcar Cabral, a fábrica de sumos de caju em Bolama, tudo isso existia.

Esse filme existe?

Estávamos a terminar o filme quando houve o golpe de Estado de Nino Vieira (novembro de 1980). Passei boa parte desse ano em Catió, em Bafatá e no mato, a filmar. Eu voltei a Bissau para apresentar ao ministro da informação e ao presidente Luís Cabral, aquilo que, seguindo a minha impressão, dava para fazer um filme de 52 minutos. Íamos fazer essa reunião no próprio dia em que houve o golpe de Estado. Fiquei com a película. Mas como o nosso Nagra estava com problemas porque andou à chuva e à pancada, precisava de reparação. Havia um convite de Mário P. Andrade para ir Paris a uma conferência do que é agora a Organização Internacional da Francofonia, como ele já não estava cá no país e o seu sucessor não estava interessado em viajar nessa altura, aproveitei o bilhete e levei a película que tínhamos filmado e a Nagra para reparar. Deixei lá a película para revelar, e hoje temos esse material, foi uma sorte, mas não foi possível fazer o filme porque já não havia orçamento.

As dificuldades para fazer os seus filmes foram muitas, mas conseguiu fazer muitas coisas como funcionário do Instituto.

Para fazer reportagens sobre política, sempre houve dinheiro. Para acompanhar o presidente Luís Cabral, ou Nino Vieira, para tudo isso havia dinheiro. Era chamado e como funcionários do Instituto tínhamos que fazer, é claro. Mesmo assim fiz O Regresso de Cabral (1976) que é produção de Estado, em 1979 fiz Os Dias de Anconó, para o ano internacional da criança de 1979, com a ajuda de Sérgio Michel, arranjamos financiamento da UNICEF. Em 1984, com as bobinas películas que fui colhendo aqui e acolá, fiz o filme Fanado, filmei o Fanado Balanta que é um pouco mais espetacular, com cânticos, de norte a sul, em sete aldeias diferentes. Em 2004 fiz o filme A nossa Guiné, sobre o estado de degradação social, económica e os transportes. Filmei um boi enorme a ser içado para um barco de carga à mão, no sul. 

O esforço hercúleo para levantar o país…

Pois! O filme foi financiado pelo Centro Cultural Francês, pedi para me arranjarem uma canoa para seguir o barco com mulheres e filhos às costas, que tinham que subir para um barco enorme por uma escada de corda, como os pára-quedistas. Uma mulher que sobe com a filha, outra que soube com uma cabra, com um porco. O barco vai até Cacine e volta. Disseram-me “não, isso é muito caro, não temos dinheiro para isso”. Bom eu fui por via terrestre, subo no barco que vai de Catió a Cabochangue; dou uma volta, espero o próximo barco no porto de Cachil. O filme foi difundido na TV Cinco de França. Cá o filme foi proibido, como alguns outros meus. Em 2005 o Luís Correia, da Lx Filmes, dizia que havia uma verba para fazer um documentário em cada país dos PALOP. O prazo era curto mas fiz, um pouco de improviso, o Bissau d’Isabel, onde acompanhamos as dificuldades económicas de Guiné-Bissau.

E colaborou com outros realizadores.

Com a Sarah Maldoror, e nos anos 1980 até 1990 trabalhei para um programa de 10 minutos na televisão sueca, da Antena 2, com a senhora Leila Assaf-Tengroth. Com ela, filmámos a África ocidental sob diferentes temas, lixos tóxicos, projetos agrícolas. Na fronteira do Senegal e do Mali, fui ao festival de cinema Fespaco, em Ouagadougou, como convidado e como repórter da televisão sueca; fiz outra sobre a praga dos gafanhotos no Senegal. Enfim, tínhamos dez minutos na televisão para falar da África Ocidental. Ainda assisti essa senhora em duas longas metragens sobre temas sociais aqui em Bissau. Portanto, trabalhei como assistente de realização e de produção. Em 1987, o Flora Gomes fez a sua primeira longa-metragem, Mortu Nega, aí fiz de assistente de realização, diretor de produção. Tudo sem dinheiro: o filme não tinha orçamento próprio, ninguém foi pago aqui.

Como fazer acontecer um filme desses sem dinheiro?

Filmamos na mata muito perto daqui. Eu ia a Bissau, às dez horas da noite, requisitava frangos, arroz, óleo, coisa assim, para comer. Deixava lá, eles batiam à máquina, entregavam, depois na noite seguinte ia assinar as requisições, e eles batiam outra de novo, deixavam lá. Saía daqui onze horas da noite e assinava o que tinha deixado nas noites anteriores e saber se já tinham conseguido ou não aquilo que eu pedi às empresas para darem: víveres, combustível, viaturas. Pedi aos militares um voo de helicóptero para simular um ataque de helicóptero. O CEMFA foi simpático, ajudando muito a produção.

Tinha que ser alguém como o Sana que conhecesse bem o terreno. 

Sim, também conhecia o tipo de munições, de calibre, foguetes de 120 mm havia muitos do tempo luta, aquilo dá para guardar algum tempo.

Então é um milagre, o filme Motu Negra?

Sim e muito empenho do realizador. O orçamento só dava para os técnicos, e aproveitaram para pôr o equipamento como parte do contrato. Então, o governo pagou aquilo, mais nada. Um dia eles estavam a filmar e os pilotos começaram a fazer uma manobra militar com aviões a jato. O engenheiro do som, Pierre Donnadieu, me diz, “Faz-me calar aquela coisa” E eu pensei, “mas eu não posso dar ordens aos militares”. Bom, fui lá e afinal conheço o chefe deles, pedi “faça os voos um pouco mais longe, meia hora depois volta para cá.” Disse ao diretor de fotografia que podia filmar mas tão só durante 30 minutos

Mais tarde, o INCA ficou muito abandonado. Lembro-me de ir lá visitar em 2010 quando estava o Carlos Vaz na direção e o material estava todo abandonado, à chuva e às moscas.

Isso foi o resultado de alguém (um Secretário de Estado para Cultura e Desportos, por sinal um licenciado em História, que o PAIGC mandou estudar na Rússia), que disse que precisava do nosso pequeno quartinho, a nossa sala de montagem, para criar uma agência de notícia. Por isso tínhamos de tirar toda a película para fora. Mas para onde? Tivemos de tirar o nosso arquivo de onde estava e ele deixou tudo no átrio, o material passou a época seca com poeira e a chuva molhou tudo. Enfim, perdemos sessenta por cento daquilo que nós tínhamos como arquivo.  Foi o descalabro, quase me levava ao suicídio. A única coisa que o  INC fazia era pagar combustível e os salários, estávamos a ganhar como serventes. 

Destruir um arquivo que fora salvo em parte com tanta dificuldade.

Nessa altura eu estava meio maluco, não podia dormir, bebia muito café, depois eu ia para o Centro Cultural Francês ler alguma coisa, eu estava desesperado. 

Mas percebeu como podia ser feito de outra maneira.

Nas várias viagens de Chris Marker para aqui, mandou para cá a Anita Fernandez para nos ensinar a montar filmes realmente. Então no fim deste estágio escrevemos um guião juntos e ela fez um filme que se chama Le Balcon, com o Flora na câmara e eu como operador de som. Chris começou a falar-me de uma coisa privada porque tem uma produção em França, que fosse falar com ele. Certa vez, quando eu vinha da Suécia, passo por Paris em 84 e mostro-lhe o meu filme Fanado para ele ver. Ele começa a falar-me que, em vez de uma coisa de Estado que não nos leva a lado nenhum, pensarmos em coisas  assim. O resultado disso é a carta sobre a Videoteca que a Filipa César mandou tecer em panu-de-penti. Falámos muito, Chris e eu; levei-o a Bafatá, a casa nativa de Amílcar Cabral Cabral, ao forte de Cacheu, onde estavam as estátuas derrubadas dos heróis portugueses, que tinham sido levadas para lá. Filmei as estátuas do colonialismo caídas que descobri em Bissau, antes de as levarem para Cacheu.

AS ESTÁTUAS DERRUBADAS DO COLONIALISMO E O NASCIMENTO DO PAÍS 

Já usou essas imagens nalgum filme?

Vou usar agora neste filme. Tenho outra ideia para fazer o nascimento deste país, eu e Flora filmamos a Proclamação do Estado (nessa reportagem eu filmei apenas curtos retratos dos deputados e convidados, porque eu tinha problemas de baterias), faz cinquenta anos disso, o centenário de Amílcar Cabral. Mas tenho de terminar a longa-metragem que estou a fazer. Penso que podemos fazer muita coisa com essas imagens. Em Bissau havia uma fábrica de espuma para colchões, perto da minha casa. Eu fui lá enquanto estava à espera de comprar um colchão de espuma. Por puro hazard vejo umas coisas, eram as estátuas de Teixeira Pinto, Nuno Tristão. Estavam lá abandonados à sua sorte, em Bafatá deitaram abaixo tudo. Fui buscar a câmera e filmei aquilo como está, com ervas a nascer. Depois tive a ideia de filmar tudo aquilo no porto de Chim, no porto de Bafatá, no porto de Bissau, no quartel da Marinha em Bissau, filmei tudo. Daí que surge a ideia da Guiné, seis anos depois. Eu queria fazer disso um filme, como é que este país nasceu.

Lennart Maalmer. Madina Boe. Proclamação do Estado. foto de Bruna Amico (Itália) ou Ingela Romare (Suécia)Lennart Maalmer. Madina Boe. Proclamação do Estado. foto de Bruna Amico (Itália) ou Ingela Romare (Suécia)

E como precisa de ter maturidade. 

Neste filme que estou a montar já abordo isso. O filme chama-se Nome e Tótala. É uma longa-metragem O resumo da ideia é o que nos custou muito a criação deste país e o que estamos a fazer dele. Vão-me cair à porrada. Em crioulo dizemos que “um peixe seco não tem medo da água quente”, portanto…

COLABORAÇÃO COM FILIPA CÉSAR E A MEDIATECA ABOTCHA

A partir de 2011 a Filipa César ajudou a reabilitar o arquivo com apoio da Alemanha. Como tem sido a vossa colaboração ?

Eu costumo dizer que o surgimento da Filipa César em Bissau foi uma espécie de milagre para o nosso arquivo; para mim a Filipa foi uma oportunidade incrível. Estivemos a promover as nossas imagens de arquivo pela Europa, pelas Américas, pela Guiné-Bissau e mesmo no Egipto. A Filipa fez com elas um documentário comentado aos jovens por mim e por Flora Gomes.

Marta Lança, Sana na N'hada e Filipa CésarMarta Lança, Sana na N'hada e Filipa CésarInaugurámos a Mediateca Abotcha numa comunidade balanta, em Malafo, que conhece muito bem. Quais são as suas ambições e inquietações quanto ao funcionamento? 

Se houver acontecimentos aqui como uma grande avalanche, tenho medo que isto submerja. Quero que possamos digerir bem tudo isto; que ela sirva como informação para a comunidade. Que haja também pessoas nacionais que venham do exterior da região. Que eles se lembrem de tudo aquilo que podem valorizar;  a natureza daqui, as potencialidades económicas agrícolas, ecológicas. Temos que valorizar. Por exemplo, fizemos um workshop sobre abelhas. Tinha que ver como eles reagem. Porque as pessoas vão buscar o mel e matam a abelha com fogo. Como é tratada assim, a abelha passou a ser muito furiosa, muito agressiva.

Na Alemanha a multa é alta se se mata uma abelha, é um crime.

Claro, estamos a extinguir-nos. Sem isso não há agricultura. Mas eu quero que eles digiram tudo pouco a pouco, não vamos acelerar muito. Porque também têm coisas para nos ensinar. 

Quais são os pontos fortes da Mediateca? 

A Mediateca como tal, a parte que toca aos filmes, não só eu, como a Filipa, o Flora, o Suleiman, outras pessoas que estão na televisão vão ter que se empenhar em fazer filmes curtos que não implicam muito orçamento. Coisas sempre a fazer a partir daqui, pode-se fazer muita coisa aqui sobre agricultura. Para já eu quero fazer um filme sobre como é que o arroz chegou a ser o alimento de base na Guiné Bissau. Quero fazer coisas curtas que provocam reação. Como é que isso se tornou possível porque essa gente balanta habitualmente não migra, se migrar é porque está à procura de uma planície alagada. Se migra é porque descobriu uma bolanha. Uma forte comunidade migrou para o norte e para o sul. 

A CULTURA COMUNITÁRIA DOS BALANTA 

As bolanhas (arrozais) aqui estão ameaçadas? 

Porque o habitual é conquistarem o mangal para fazer a bolanha. Mas as coisas são difíceis porque os diques não são bem feitos… O dique tem de ser feito na época seca, com a lama ainda mole, quando ainda o solo é mole, a argila se cola, bate-se muito com o arado. Depois aquilo seca e aguenta quando começa a chover.. Então o dique tem o inimigo que é o caranguejo que o fura. Quando há águas vivas e o nível de água sobe, esses buracos que o caranguejo deixa é que fazem desmoronar os diques. Aqui as pessoas gostam muito da natureza, mas na ilha de Bubaque ainda são muito mais ecologistas do que no resto da vida. Respeitam muito a natureza. São muito bons em ecologia. Aquilo é nato entre eles. E os bijagós têm uma sociedade diferente da nossa, é hierárquica e cada um diz e faz aquilo que deve fazer, os papéis estão bem distribuídos. E aí é a mulher que decide com quem quer casar é ela que decide, quem toma a iniciativa e se não se sente bem arruma outra coisa e muda. E são muito fortes. Eles têm uma estrutura muito forte, muito hierarquizada, muito fechada. Aqui a mulher balanta, em relação a outras etnias também é muito mais livre, parecida aos bijagós mas aqui o trabalho é dividido. Cortar árvores, subir às árvores, ir pescar, é trabalho de homem. Lavrar a terra na bolanha para fazer o canteiro, é o homem que faz. Aqui e lá. Sim. Para fazer viveiro é o homem que faz. Arrancar as plantas, transplantar para a bolanha é a mulher. Mas se o homem já terminou de fazer o canteiro, ajuda a mulher. 

Quais são os outros papéis da mulher? 

Uma mulher faz muita coisa, nunca descansa. Tem de fazer a comida, tem de descascar e pilar o arroz. Em todas as etnias o pilão é da mulher. O homem não faz isso. A cozinha é da mulher. Mas todos os dias temos de comer. Então todo o dia a mulher trabalha. A mulher bijagó é que constrói a casa, ela é que faz a casa. 

Os balanta são muito bons construtores, não é?

Sim, e todos colaboram. O homem corta o capim mas a mulher ajuda a transportar. Eu nasci numa casa dessas tradicionais. Mas nessa altura não se fazia com blocos, era com lama ou uma faixa de lama assim, põe em cima, vai moldando moldando, espera que o sol seque. E depois outra camada. Uma vez de manhã, uma vez à tarde. Tem de se ir devagar, não se pode construir rapidamente. Mas é muito bom e não faz calor lá dentro. Nunca sentes calor lá dentro. Tem uma estrutura de paus do mangal, depois cruza umas lianas, depois faz-se uma escada de capim, não há pregos, é tudo amarrado. O teto é feito de tal maneira, que você pode dormir lá em cima. Tem uma abertura aqui para evitar que os felinos, as hienas, entrem de noite, faz uma pequena escada e os pintos e a galinha sobem com os filhos lá para cima e de manhã descem. Todos em harmonia. E os galos são emasculados depois tornam-se muito bons, têm uma carne macia. A mulher é que cria os animais como as galinhas, os porcos. O homem só se interessa por bodes para o casamento. Se tem uma cerimónia em que é preciso um boi, então mata um. Está aí. O homem que foi já ao Fanado então já só pode criar vacas. 

Como é a relação com gado, nessa divisão de tarefas?

Os rapazes devem criar as vacas porque ele é que vai tocar o choro. E a mulher tem que vestir os filhos. No trabalho coletivo da família quem manda é o homem. Mas depois da colheita, aquilo é guardado num cilo para grão. Por acaso é enorme. Há aqui vários. Para a semente, para a comida. No fim da colheita, divide-se arroz para cada membro da família, para as suas necessidades, para comprar roupa, para suas necessidades pessoais. Depois fica o arroz que toda a gente vai comer. Então quando se lavra, pensa-se na reserva anual, quando essa reserva acaba, acabou-me o arroz coletivo, a mulher, o filho pode fazer uma lavra particular para ele. A mulher cria o gado menor. Quando vês numa família uma cabra, uma galinha, um pato, é assunto da mulher. Mas às vezes o homem pode tomar emprestado um animal, se há necessidade, mas tem de pagar. Vestir uma rapariga é assunto de mulher. Para o homem é o Fanado, mas tem de ser no mato, onde ninguém vai, a não ser os iniciados. Aquilo requer muita sabedoria e muito sigilo. Depois da iniciação, não se pode comentar. Fica o segredo. De acordo com o comportamento deles, sabemos quem foi à iniciação ou não. 

Pretende-se que este espaço da Mediateca obedeça à cultura balanta?

Vão ter de manter aquilo, mostrar coisas. Não são crianças. Sabem muito e têm de entender. Há muita coisa que vemos de uma maneira e eu sei como é que eles entendem, porque estou no ponto de vista deles, nasci aqui e conheço. O problema é que nós estamos a propor coisas que às vezes eles têm dificuldade de entender. Vocês são cartesianos, eu sou animista e cartesiano. A religião é melhor deixá-la para os outros. Não digo que não, não digo sim, mas evito.

Malafo 2022. foto de Marta LançaMalafo 2022. foto de Marta Lança

Então é fundamental ter esse empreendimento de dentro para que as coisas tenham fluidez sem ser uma imposição.

A todo o custo há que evitar imposições. Porque eles podem ver aquilo como uma espécie de prepotência. Pretender que sabemos tudo, quando não sabemos. 

E quais são as garantias que isso vai ser assim? 

É persistir. Persistir sim. 

Mas a equipa tem um bom entendimento. 

Eu sei como o Bedan percebe, porque vivo isso, sinto e sei convencer o Pereira, que também já esteve na universidade, na Romênia. Já falei com o Beden para aceitar a função do régulo que ele não quer. Mas na prática não pode fugir, as pessoas vêm buscar aqui tudo aquilo que necessitam, que não sabem. Aqui já tivemos que resolver problemas da minha aldeia, que é maior e mais povoada. É um problema étnico e religioso. No dia seguinte o Pereira e o Bedan foram lá e já estavam todos amigos. Eles já viram o que a guerra faz, pois as guerras ninguém as ganha. Têm mania que vencemos os portugueses, não vencemos, ninguém venceu nada, o país existe mas não tem uma estrutura. 

Sem falar nos efeitos da guerra, em termos psicológicos… 

Somos todos neuróticos e toda a gente pensa que ganhou a guerra. Eu tento fazer ver isso com o filme que estou a montar. Uma guerra não se ganha. Você fica com problemas sociais, problemas psicológicos. Há muita gente que ficou marcada de vez. Vai à minha aldeia vê assim vestígios de famílias que a guerra levou, por inteiro.

Já foi há tantos anos e ainda não regenerou.

Regenera de outra forma. A vegetação é muito resiliente. As árvores rápido cicatrizam, a alma humana já não!

por Marta Lança
Cara a cara | 1 Março 2023 | Abotcha, Amílcar Cabral, Cabo Verde, cinema, cuba, Filipa César, Guiné Bissau, Guiné-Conacry, Independência, PAIGC, Sana Na 'Hada, Sarah Maldoror